Pergunto
pelo bebé. Em não-frases curtas – ela praticamente
não fala português e entende-o pouco, e eu não falo nada de ucraniano.
Diz-me
que o bebé "bem, hoje seis meses, gordo", e rabisca um
número na parede em frente, com a ponta do indicador direito: "estos quilos",
mas percebo demasiado tarde e fico sem saber quantos são os quilos, afinal. "Gosta
muito sopa", e enche as bochechas de ar. Ri de olhos fechados, em quase silêncio.
O bebé é neto. Pergunto pela filha. Está bem. "E a N., como está?". Encolhe os ombros, num assento resignado. Sei que o ex-marido continua a viver na Rússia; o filho homem também.
Se a palavra “guerra” não estivesse proibida na Rússia, Putin tê-la-ia proferido no seu recente discurso à nação e ao Mundo: declaro que declaro guerra ao Ocidente encarnado na Trinidad EUA-NATO-UE, qualquer coisa assim, que tem pouco de santa, é verdade, mas continua a escapar-me a equivalência entre um e os outros, e os outros também sou eu. Prefiro este lado imperfeito, se se trata de escolher um lado. A neutralidade é um luxo ao alcance de poucos, e a racionalidade que se poderia impor para evitar ter-se chegado ao que se chegou esgotou-se. Ninguém vai ganhar, porque ninguém ganha quando o cenário é um quadro vivo de Bruegel, mas eu continuo a torcer pela Ucrânia, na sua democracia impura.
O Mundo nunca foi um lugar seguro e o que sobrar não deve ficar melhor – só não nos entendemos quanto à atribuição (ou "distribuição" – não há realmente santos, mas uns são menos bárbaros do que outros) da culpa: ouvindo alguns dos mais acérrimos defensores da virgindade de Putin, dos apelos à Paz, só a Paz e nada mais do que a Paz, anseia-se pelo futuro só para ouvir a História contar a história destes dias; de como o “Mundo Ocidental” se deixou manipular pelos EUA, pela NATO e pelo presidente Zelensky, amputados cavaleiros do apocalipse, capazes de levar a Mãe Rússia a esventrar várias cidades ucranianas contra a vontade do seu presidente, Vladimir Putin, o mais injuriado dos mártires; de como a prepotente Ucrância foi capaz da maior agressão ao seu próprio Estado, soberano contra a vontade do seu povo, torturando-o, violando-o, matando-o, de Bucha a Izium, sob a complacência do Ocidente, Belzebu, interessado apenas em vender armas, ensaiar palcos de guerra e ungir um herói: pode ser, mas é uma hipótese mais retorcida do que a da febre imperial de Putin.
A Europa não goza de grande saúde e não sei se resiste. Gosto da ideia de Europa, mas é um projecto a ameaçar ruína. Ontem, à hora de almoço, cruzei-me com um discurso de final de campanha de Giorgia Meloni – a Itália que não tem medo da gente de bem; a Itália produtiva não tem medo; não têm medo os que sonham com uma Itália orgulhosa, os que querem voltar a ter orgulho na sua nação, da sua gente, da sua bandeira; essa Itália não tem medo, essa Itália está pronta – e eu, com excepção da gente de bem que não sei bem o que seja, não vejo ali tanto escândalo (o mesmo não digo daquele ar plastificado de Silvio Berlusconi, logo ao lado) e essa é parte do problema: a ideia de que todas as urgências que enfrentamos se resolvem ignorando o descontentamento crescente de um fatia cada vez mais significativa da gente de carne e osso. Há-de haver um equilíbrio entre o chilique enjoado dos Albertos Gonçalves porque a sereia Ariel agora é negra, vejam bem, e esta tentativa de doutrinação absurda que confunde o direito à igualdade com a imposição de uma forma de pensar "boazinha", que não admite deslizes de linguagem, sob pena de nos tornarmos uns proscritos. Há uma diferença entre "não gostar de" e "atentar contra", no limite, ser idiota não é crime e do Crime deve tratar a Justiça, e a Justiça é outro pilar sem o qual uma Democracia não é uma Democracia. Ainda hoje li que "há mais de três anos que o tribunal tenta notificar João Vale e Azevedo". Já me tinha esquecido da pessoa. Já para não falar dos outros. Não é bem o CHEGA de André Ventura que ameaça a nossa Democracia, o que não desmerece em nada o desprezo que se tenha por aquilo, e eu tenho.