quinta-feira, 31 de dezembro de 2020
Não tenho resoluções de ano novo. Um ano é uma imensidão de tempo, independentemente da forma como o medimos, pelo que, nunca sou capaz de dizer “que ano magnífico!” nem, ao contrário, que “ano horrível!” foi este que acabou agora mesmo. Esforço-me por dispor felicidades (e desgostos) uma-a-uma, peça-a-peça, como numa construção de legos. Só saberei se valeu a pena quando chegar ao fim e, para isso, preciso de mais do que um ano, ainda assim; preciso de uma vida, e ainda não acabei.
Tenham, então, uma boa vida, mais do que um bom ano.
Aquele pedacinho de texto, escrevi-o há cerca de um ano. Começava 2020, passavam uns dias desde que o Papa Francisco se irritara com uma "devota" demasiado devota e lhe dera uma palmada na mão, e eu tinha acabado de ver "Dois Papas", de Fernando Meirelles.
A esta distância, parece uma premonição. Aquela espécie de mensagem de Ano Novo. É muitas vezes assim. As coisas assumem uma outra dimensão, quando o contexto muda dramaticamente.
Trago-a para aqui. A mensagem. Porque me parece que se aplica melhor ainda este ano, prestes a começar.
quarta-feira, 30 de dezembro de 2020
Bela Croácia
Notas mais ou menos pandémicas
Depois de dez penosos
e longuíssimos meses da pornografia telediária dos números de infectados e
mortos por, de, com covid-19, travestida de notícias angelicamente
servidas e seguidas de sermão dominical pelos pivôs de referência nos canais da
mesma, chegou agora a vez dos números dos tomadores da vacina com direito a
directos pungentes, com e sem camisa, e mais uma procissão de egrégios especialistas
a debitar conjuros sobre o passado, o presente e o futuro. Sem esquecer um outro
número, de um outro circo. Parece que a PSP e a GNR se desentenderam (que novidade!) sobre quem
recaía a glória de transportar as vacinas d’aqui-ali, não percebi bem de onde para onde, nem me
apeteceu confirmar. Perdi-me na extravagância da cena. Portuguesa, com certeza.
Seria só ridículo, não fossem estes tempos estes tempos. Menos mal, que, até ao momento, nos livrámos do exagero de aplicar cinco doses da vacina de uma só vez, a uma mesma pessoa. Ou a oito. O que seria.
Ainda assim, bendita Ciência, que nos permitiu chegar até aqui. Acho imensa graça aos descrentes porque sim, não vá a mole confundi-los com a ovelhinha do presépio. Há ovelhinha no presépio, por falar nisso? Na dúvida, antes acreditar na senhora que lê a mão, do que na mão que forjou a vacina, que até a língua pode ser traiçoeira. E o elogio da dúvida – fundamental para o avanço da Ciência, note-se – tem servido suculentas análises de pensamento alternativo baseado no terror de se pertencer a esse bando desprezível de gente que decide ouvir falar de saúde quem percebe de saúde e, pasme-se!, fazer-lhes caso, em vez de dar ouvidos a livre-pensadores de outra área qualquer – não interessa qual desde que se duvide, muito, sempre e sob qualquer pretexto, como fazem os avisados. Palermas. Os outros.
Entretanto, faltam dois dias, mais coisa menos coisa, para acabar este ano medonho. Para muitos, a vida deu uma volta de 180º, para outros, nem tanto. E, para um grupo restrito de gente, a vida até melhorou. É quase sempre assim, a vida é um magnífico acaso, nem sempre fácil de contrariar. Para nós, os que nascemos do lado certo do mundo, não é fácil pormo-nos na pele daqueles que nunca deixaram de viver nas profundezas do inferno. Podemos ensaiar a nossa aflição pelo infortúnio alheio em prosas semi-sentidas de solidariedade e pesar, mas saberá sempre um pouco a fraude; um interlúdio inconsequente que se alterna de forma mais ou menos elegante com a partilha de experiências mais mundanas, muito primeiromundista mundanas, entre deleites gastronómicos, gulosos, viagens ao redor deste nosso mundo e desse outro, e uma pitadinha de arreliado desdém por quem não se preocupa com as coisas e causas certas. Digo eu, que tenho nas viagens e na boa gastronomia dois dos meus maiores luxos. E, como se não bastasse, padeço, igualmente, de tempos a tempos, em pequeníssimos intervalos, dessa mania soberba de achar que tenho lições de moral para distribuir pelos outros. Por isso mesmo, fujo dos santos.
Por falar em moral, também me escandalizei com as imagens dos animais abatidos na Herdade da Torre Bela. Não sei se posso. Afinal, gosto de comer carne, não gosto de caça mas sei disparar e, para cúmulo, tenho um cão. De estimação. Por tudo isso e o mais que tenho lido, não estou habilitada a sentir-me enojada com o que ali se passou. Valha-me, ao menos, aquela outra imagem das duas crianças com a cara untada de sangue, uma forma de baptismo, dizem, a que o orgulho soez dos progenitores não terá resistido.
Como
há manchas e manchas e não há quem não goste de ficar bem na fotografia, mesmo
na mais ignóbil, mesmo naquela que, por vergonha afinal, se apaga, monta-se, agora uma romaria de penitentes enjeitando culpas, gritando inocência, desconhecimento, violação disto
e daquilo, como se o grupo armado tivesse tomado o terreno de assalto, à
socapa, por sua conta e risco.
Ainda uma nota – muitas notas,
na verdade – para a TAP, noutro modo de maldizer. Há (há?) uma restruturação em
curso e um plano dramático de corte de salários para evitar, segundo o ministro
Pedro Nuno Santos, um número maior de despedimentos. Não há muito tempo, em
entrevista a José Gomes Ferreira e João Vieira Pereira, Pedro Nuno Santos justificava-se,
em parte, com o “exagero” (não o disse exactamente assim) dos salários auferidos
pelos pilotos da nossa, mesmo nossa, companhia aérea. Mas, hoje, ou ontem, ficámos a
saber que nunca é demais duplicar alguns salários. De alguns administradores. A crise, quando chega, nunca
é para todos. Por pressão ou por vergonha (parece que foi mesmo por pressão), Miguel Frasquilho terá abdicado da sua estrondosa subida salarial. Restam os outros.
E ainda há o Brexit. Finalmente, o Brexit. Mas não vi pormenores. Não sei se Boris Johnson conseguiu a desejada proeza de livrar o Reino ainda Unido das maçadas da outra União, sem largar os benefícios de dela fazer parte. Alguém se lembra do outro senhor, o tal Nigel Farage?
E Trump continua no seu estertor de morte. Estraçalhando democraticamente tudo o que puder, enquanto puder. Apelando ainda (ainda?!) à rebelião, entre partidas de golfe.
E morreu Pierre Cardin. Não que a sua morte me tenha sensibilizado mais do que outras mortes que nem cheguei a referir. Mas gosto de boas histórias. De boas memórias. De boas conversas. Não sendo bem uma conversa estas linhas que aqui vou deixando, dá-se o caso de me ler mais gente do que imaginava, quando decidi transladar-me para este canto. Aos que por aqui se perdem, obrigada pelo vosso tempo. “Bom Ano Novo” não sei se será a expressão mais adequada, neste fim de ano em particular. Ou, pelo contrário, talvez seja este, precisamente, o tempo em que esse voto faça mais sentido. O mundo, esse, continuará alheio à nossa vontade.
domingo, 27 de dezembro de 2020
Em jeito de não-balanço
Este costuma ser o
tempo de “passar o ano em revista”. Ir atrás no tempo e enumerar os momentos
marcantes do ano que está prestes a terminar. Raramente (acho que “nunca” é o
termo correcto) o faço, mas, este ano, quase pensei abrir uma excepção. Ia
começar pelas fotografias que mais me marcaram, a reboque da pandemia. As primeiras
ruas desertas, a praça de São Pedro, imensa e vazia e o Papa Francisco na sua
extraordinária celebração Urbi et Orbi, quando alguns achavam que tinha
chegado o momento em a Humanidade se faria Una, acudindo ao próximo, amando-o,
finalmente, como a si mesmo, esquecendo as diferenças e unindo esforços,
sacrifícios, em volta de um bem comum. Estávamos em Março e no mesmo barco, não
era? Como os mal-afortunados passageiros do admirável Titanic. Mas, já nessa
altura, o Papa Francisco lembrava que ninguém se salva sozinho e evocava as
“pessoas comuns”, fora do espectáculo mediático, dos médicos e enfermeiros, às
pessoas que nos recolhem o lixo. Provavelmente, antevendo o que a pandemia
deixaria a nu quando nos despisse do sentimentalismo de pechisbeque; esse que
levava tanta gente ao pranto fácil, emocionadíssima com o sinal que o Universo – ou
Deus, depois do filho – nos tinha enviado, para nos salvar de nós mesmos. Há
muito que deixei de acreditar nesse Deus, mas ainda acredito em algumas dessas
pessoas comuns. E, se ainda alguém for capaz de me recolocar no caminho da fé,
há-de ser o Papa Francisco. Com todos os seus defeitos.
Entretanto, desisti.
Do tal compêndio. O das fotografias que marcaram o ano. Descobri que ainda não
consigo suportar muitas delas. Doem-me aqueles abraços feitos de plástico
asséptico. O rosto dos velhos atrás dos acrílicos, vendo os filhos e os netos à distância adequada, que se quer limpa e segura. O cansaço vincado nos rostos dos que lutam para
salvar vidas. O desespero dos que perderam tanto. As lágrimas dos lutos
despedaçados pelo distanciamento que se diz físico, mas é muito para além disso. Quando tudo isto passar – porque há-de passar –, haveremos de contar estas
e outras histórias e não sei se o balanço nos salvará dos pecados que fomos
cometendo, ou dos que deixámos que fossem cometidos, nesta tentativa de
conciliar liberdades individuais com o direito à saúde; entre este e a
sustentabilidade de uma economia permanentemente a soro, no nosso caso, ora de mão estendida à
esmola do Estado e às bazucas da UE, ora de mão no bolso dos nossos impostos, para acudir a todos os desvarios de um país confortavelmente pobre e entregue a uma "elite" apodrecida, com a bênção de todos.
Por falar em liberdades individuais, vem-me à memória um acontecimento perfeitamente banal. Há uns meses – que, a esta distância feita de pandemia e confinamentos, mais me parecem anos, de cansaço acumulado –, na esplanada de um restaurante relativamente conhecido na zona onde vivo, um casal de idosos almoçava numa mesa afastada da minha por uma outra mesa. Nessa outra mesa, almoçava um amoroso e jovem casal, aparentemente, desses jovens muito tímidos, com receio de incomodar a própria sombra. Ao contrário do casal de idosos, sem pejo algum em incomodar quem quer que fosse. E, neste jogo esvaziado de forças, o velho da primeira mesa fumava, despreocupadamente, o seu prepotente cigarro, de rosto voltado para a segunda mesa. O fumo espesso e revolto, travesso, assim liberto também das amarras da boa educação e do bom-senso, ia fazendo o seu caminho sobre a relativamente curta (nesse tempo) distância entre as duas mesas, acabando o malcheiroso alvoroço mesmo em cima da esmerada tábua de queijos e enchidos que o casal jovem escolhera para dar início à refeição. Era tão obscena a cena que estive a menos de nada de meter eu própria o nariz onde não era chamada; e, quando me lembro dela, ainda me arrependo de não o ter feito. Parece um exagero. Estapafúrdio e presunçoso. O que não falta, afinal, são exemplos de gente que se está nas tintas para os outros – quais outros, então não sou só eu?, como diz uma amiga minha, em modo de maldizer – e o que é proibido é fumar no interior, não no exterior. Mas é daquelas coisas que só visto, como também é comum dizer-se. O caso é que aquela imagem do idoso expelindo toda a sua liberdade cavernícola sobre o direito daquele outro casal a usufruir da sua refeição intencionalmente prazerosa (pelo menos, a princípio), tem-me surgido como um modesto – e desajeitado, admito – retrato de um conflito maior entre direitos e liberdades que a pandemia veio exaltar, muitas vezes, da pior forma possível, confundindo um dever de solidariedade com uma suposta subserviência de manada (dizem) e a obediência à Ciência com a adulação que (não!) se deve às seitas.
E, por falar em Ciência, apesar de todas as contrariedades deste annus horribilis, 2020 termina com uma pequena dose de esperança. Injectável, em duas tomas, contrariando todas as expectativas pré-anunciadas e a clarividência da Raquel Varela. Ao contrário do nu (salvo seja) de Marcelo Rebelo de Sousa, animou-me (salvo seja outra vez) este nu de António Sarmento. A vacina é um pequeno passo, mas é um passo importante. Um passo que se espera que possa também chegar aos países mais pobres.
Escolho uma fotografia, afinal. Para imagem de marca deste 2020. Não será a melhor, mas escolho-a, ainda assim.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2020
domingo, 20 de dezembro de 2020
sábado, 19 de dezembro de 2020
sexta-feira, 18 de dezembro de 2020
Como dizia eu, um destes dias...
..sobre a relação Twitter vs políticos.
Talvez a culpa não seja, de facto, do Twitter. Inacreditável...
quinta-feira, 17 de dezembro de 2020
Os olhos dele esbarram nos meus, por momentos. Pelos olhos, essa forma não nova de comunicação que a nova forma de comunicação veio exaltar, adivinho-lhe o sorriso que a máscara esconde e creio que lho devolvo. O sorriso. Cordiais, ambos. O corredor é estreito, não caberíamos os dois mesmo que o distanciamento físico não fosse o novo normal (não se pode dizer, já sei; e há um distanciamento físico que sempre cultivei, ainda a pandemia não era pandemia, e outro distanciamento físico a que não há pandemia que me obrigue), e ele desvia-se para me deixar passar. A mulher que o acompanha abespinha-se, atira-lhe um resmungo ressequido, és tão simpático para toda a gente, só para mim nunca és tão simpático, ou qualquer coisa assim, e fico a pensar se a culpa de todas as misérias que nos atormentam a alma é deste ano mafarrico, ou se 2020 é só a desculpa ideal para alguns dos nossos desacertos mais sombrios.
“Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer.”
Fernando Pessoa, “Livro do Desassossego”.
De quando em quando, preciso de me
lembrar disto. Só assim sobrevivo à avidez da perfeição alienada com que se
entopem os novos dias de moralismos exacerbados, tão torpes e inúteis quanto maltrapilhos,
senão mesmo postiços. Só assim me livro (livro?) do mesmo pecado.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2020
Mais que miseráveis
Começava na historieta idiota do vencimento das
crónicas de Eduardo Lourenço. Se fosse necessária uma metáfora sobre a
ligeireza mole com que se produzem especialistas em série, sobre tudo e nada e
mais alguma coisa, para directos sobre directos sobre directos
reproduzidos ad nauseam sobre um mesmo acontecimento, seria
essa; um verdadeiro espanto. Depois, foi aquele magnífico momento querido, encolhe-te
mais um bocadinho até desapareceres e levares contigo o que sobra de um outrora
respeitado partido político, esse que nem sequer sei a que pertences porque te
vejo trocado. Por um segundo, fiquei na dúvida se o “trocado” teria que ver
com a ameaça de desfalecimento provocado pela fraqueza do corpo e da alma, ou
se era mesmo trocado, trocado, isto é, trocado o Chicão a prazo por um líder
partidário a sério. A sério, foi demasiado penoso. Nunca é boa política
metermo-nos com cretinos se não soubermos estar à altura do desaforo. Mas não
sei se pode chamar cretino ao chef. Ou é chefe? Adiante.
A seguir (ou antes, já não recordo
cronologia exacta) foi a Ana Gomes e a rábula das vacinas, farmacêuticas,
reservas, empresas, amigos e afins. Já não é a primeira vez que o penso, digo e
escrevo, como se também isso valesse de muito: gente com responsabilidade
política – pelo menos essa – devia ser proibida de ter contas em redes sociais.
Principalmente no Twitter. Aquilo deve ter lá qualquer coisa que
deixa os utilizadores em modo embaciado, ou assim. Há quem diga que o problema
não é o meio, virtual ou não virtual; um imbecil é um imbecil é um imbecil, coisa que Ana Gomes não é, e a virtualidade da outra coisa não tem nada que
ver com a (des)virtualidade do carácter. Pois, talvez seja…Também não acho que
seja a ocasião a fazer o ladrão, mas é possível que o ladrão nunca chegasse a
sair do esgoto se a ocasião não se lhe apresentasse descaradamente a cada
tremeluzir de consciência.
Depois, foi outro Rodrigues dos Santos a
levantar poeira. Não vi a entrevista. Contaram-me, e fui espreitar o pedaço da
polémica. O problema deste Rodrigues dos Santos, o José, já não é não haver
livros que ele não goste de ler e, portanto, tenha decidido escrever uns de que goste mais. É
ter-se intoxicado de si mesmo, de vaidade em causa e cousa própria. Acontece
aos melhores e ele acha-se dois melhores: um no jornalismo e
outro na escrita. Dois amores que amalgamou de forma brilhante numa imbatível
fórmula de sucesso, mesmo que já não haja grande segredo quanto aos
ingredientes da dita. É como a Coca-Cola: 90% de água ou mais e a ameaça de
êxtase sobre as papilas gustativas de outros 90% da população mundial, ou lá o
que é, que não fui confirmar. E não pertenço a essa estatística, seja ela qual
for, porque abomino o sabor daquilo, em qualquer circunstância e/ou ocasião,
embora não possa dizer exactamente o mesmo dos livros de José Rodrigues dos
Santos: li alguns e gostei. Sacrilégio. Redimo-me desprezando-o, de algum tempo
a esta parte, como jornalista. Também há quem me diga que o contrário seria
mais inteligente. Mas a maioria desses bebe coca-cola. Além disso, quantos
escritores – péssimos que sejam – são capazes de escrever àquele ritmo? Claro
que há uma certa batota: misturar factos com ficção fingindo, com ou sem
intenção, um conhecimento (sobre alguns temas) que, na verdade, é bastante mais
modesto, o que pode baralhar os mais inocentes. Isto tudo para dizer que, sim,
é, no mínimo, idiota conseguir olhar humanitariamente para
aquele “e porque não com gás?”, mas, talvez o objectivo do baile tenha sido,
mais uma vez, cumprido.
E, no meio de tanto ruído, ouviu-se,
finalmente, o grito de horror, entre o nojo, a indecência, e a vergonha. Os
contornos do dantesco episódio que culminou com o bárbaro assassínio de Ihor Homeniuk às
mãos de uns rufias sebentos e cobardes, em representação do Estado
Português – de todos nós, portanto – deixa uma mancha difícil de
carregar. Quanto mais se atenta nos detalhes macabros, mais insuportável é
olhar para Marcelo, Costa e Cabrita, ouvi-los nas suas explicações patéticas,
retorcidas, totalmente desprovidas de decência. Uns fantoches. Uns fantoches,
todos, da esquerda à direita. Nunca tive tanto desprezo pela nossa classe
política. O silêncio ensurdecedor, cúmplice, pelo menos, com a indiferença que
mereceu a descoberta da tragédia, deu, agora, lugar a um miserável discurso que
tresanda à mediocridade engalanada desta classe de “servidores públicos” que
pouco servem, afinal, apesar da empoeirada pompa e circunstância que gostam de
esbanjar. E, Eduardo Cabrita, mesmo tresandando a podre, é bem capaz de se aguentar no cesto
do Governo, ao colo do amigo Costa. Há quem não se incomode em servir de
estandarte mesmo das causas mais abjectas. Deve ser o caso. O outro, é a terrível
desconfiança de que o terror a que Ihor foi sujeito não seja um acto isolado,
mas uma prática tão comum quanto ilegal, hedionda, cujo desfecho, mais porrada menos
porrada, acabaria como acabou. É quase inevitável, quando um ou mais rufias sem
escrúpulos gozam do poder de intimidar pela força bruta aliado à sensação de
impunidade que vai crescendo e escalando até ser demasiado tarde para voltar atrás.
Agora, é um ror de gente a apontar dedos – porque eu disse e vós não dissestes, porque eu escrevi e vós não escrevestes, porque eu me indignei a tempo e vós indignastes-vos a reboque de modas e redes e obediências saloias. E, claro, a comparação inevitável com o alvoroço que provocou a morte de Floyd nos EUA, como se – folclores à parte e da parte dos histéricos habituais, que fique claro – não fosse entendível (sei bem que a palavra é horrível, neste contexto) ainda que não desculpável, que uma morte a que se assiste quase em directo, pelo mundo inteiro, pudesse causar mais comoção. No imediato. Pelo poder impactante da imagem. Mesmo que a violência dessa morte não tenha comparação com a violência da tortura e morte de Ihor Homeniuk. Supondo que a morte seja comparável, dentro das circunstâncias arrepiantes em que ocorreram ambas. Com excepção das jornalistas que não largaram este crime medonho, não há muito mais quem possa encher-se de brios (como se fosse essa a questão) e atirar pedras.
quarta-feira, 9 de dezembro de 2020
Ihor Homeniuk. Tudo nesta história me causa asco. E vergonha.
"Esta semana, ficámos a saber que foram instalados, nos quartos do EECIT do
Aeroporto de Lisboa, botões de pânico. A sua
ativação fica registada, assim como o motivo. O alarme soa na portaria, onde
estão inspetores do SEF e seguranças. Ou é uma confissão de incapacidade de
impor o respeito pelos direitos humanos em instalações do Estado, ou uma
inutilidade. Se fosse para proteger alguém, o botão não evitaria o que
aconteceu a Ihor Homeniuk. Porque a cumplicidade de muitos inspetores demonstra
que não foram uns insubordinados a ir longe demais. Porque ele não foi
espancado no seu quarto, mas numa sala sem câmaras (que obviamente não teria
botão algum). Porque,
algemado, não é fácil pressionar num botão."
sexta-feira, 4 de dezembro de 2020
Do fundo do tempo
O homem do bazar
pergunta-me se falo árabe. É um daqueles velhos sem idade, apesar das rugas do
tempo marcadas no rosto moreno.
Não falo. Conheço
meia dúzia de expressões curtas, de cortesia, que aprendi a pronunciar
irrepreensivelmente e que, naquela fracção ínfima de tempo que dura um encontro casual, criam a brevíssima
ilusão de que posso manter a conversa nessa cacofonia de sílabas. Não posso. Um
dos arrependimentos que guardo desse tempo, é o de nunca me ter decidido por
aprender a língua. A estranheza dos sons – em forte contraste com a grafia galante
– afastaram-me da vontade de saber falá-la e, estupidamente, menosprezei o
privilégio de aprender com a gente, todos os dias, na rua, nas compras, no
banco, nas filas para pagar serviços, quando para pagar serviços não havia outra forma a não ser fazendo filas; separadas por género, no caso. Mas, o som arranhado, estalado, uma espécie de ralho permanente até
nas palavras que falam de amor, desencantou-me irremediavelmente. Fui bastante
idiota. Talvez venha a redimir-me um dia.
Numa das outras
línguas que por ali se falam, confesso ao homem o meu desalento, o difícil que
é aprender árabe. Ele sorri-me um sorriso cheio, generoso e limpo, e confirma:
o árabe pode ser bastante difícil de aprender, para um estrangeiro.
Da rua chegam outros
sons. O som timbrado a pequenas marteladas que os artesãos arrancam às peças de
metal disformes, de onde hão-de sair belas peças de latão e cobre: facas,
caçarolas, espadas decorativas, vasos, candeeiros de parede em variadas formas
geométricas, colossais, em tons baços ou brilhantes, magníficas todas elas.
Só há homens a bater
a chapa, sentados no chão ou em pequenos bancos de madeira trôpegos, nas bordas
dos passeios, nos degraus das lojas atulhadas de tralha; como a língua, um
outro aparente caos no meio do qual apenas eles se entendem. Uns vestem trajes
típicos e usam até o tradicional tarbush. Outros vestem ocidentalmente,
jeans e malhas correntes ou t-shirts e bonés de pala larga. Alguns traçam
circunferências de largo diâmetro, com o auxílio de compassos de ferro, toscos
mas precisos, razoavelmente, que erguem à altura do ombro, desde o colo onde deixam pousar as
lâminas de metal. Perco-me por uma peça daquelas. Hei-de regateá-la, como
convém, mais logo, ao fim do dia, sabendo que pagarei sempre mais do qualquer
um dos locais, mas que isso também faz parte do jogo. Desde que não nos pareça indecoroso, para nenhuma das partes, é esse o preço justo do negócio.
No bazar, há um pequeno
terraço sobranceiro à rua, onde nos podemos sentar e tomar o famoso chá de
hortelã (e menta, às vezes) cujo cheiro insuportavelmente doce me deixa sempre
uma sensação de enjoo. Nunca fui apreciadora de chá. Amargo e preto, muito raramente. Prefiro
o café, mesmo que haja poucos lugares nos mundos que eu conheço onde se possa
tomar o café como eu gosto; como o nosso.
Sento-me num dos bancos corridos, de almofadado gasto, debruçada sobre a rua. As batidas metálicas vibram,
frenéticas, num compasso sem maestro, embalando os passos dos que passam, o ar extasiado
do bairro num voluptuoso festim de fim de tarde. É quase uma trégua depois das tinturarias,
do labor desconcertante dos curtidores, do seu odor lancinante, da azáfama dos seus
homens e crianças (rapazes, todos) que mergulham até à anca, empurrando com as
pernas as peles de vaca, cabra, carneiro, para dentro dos tanques quase cheios,
ora brancos-cal de mistelas liquefeitas à base de excremento de pombo, ora vibrantes
de cores, vorazes como a ancestral sina dos seus artesãos.
A rapariga traz-me o
café. Pergunta-me se quero provar aquele doce típico, de farinha de trigo e amêndoa,
aromatizado com açafrão e anis estrelado, e mais umas quantas coisas a que não presto a atenção devida. Acabaram de chegar, os doces, e ainda estão mornos. Agradeço,
mas recuso delicadamente. Fico a vê-la afastar-se, belíssima na sua túnica
larga e longa, no mesmo laranja pálido do açafrão da terra.
Em baixo, na rua, as sombras mudam de pouso e calam-se alguns acordes. Devo ir ao encontro dos outros. E quero um daqueles candeeiros de parede. Dourado, estampado num círculo quase perfeito, de malha rendada e fina, como num delicado crochet.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2020
O maravilhoso mundo do marketing...ou não
Parece que o mais recente top de vendas da Amazon na categoria "Ciência Política" é um livro sobre Matteo Salvini, escrito por um analista político que ninguém sabe bem quem é. E escrito é menos do que uma força de expressão: tirando as palavras da capa, são 110 páginas vazias, com excepção de um traçado de linhas paralelas, onde cada um poderá escrever o que lhe apetecer. Eventualmente. Dizem que, quem compra, sabe ao que vai e que o best-seller já ultrapassou em vendas "Uma Terra Prometida", o livro de memórias presidenciais de Barak Obama. Vá lá saber-se porquê, lembrei-me daquele café em Tel Aviv que servia nada, literalmente, tudo com a devida elegância, evidentemente, porque o que conta é a experiência, ou lá o que é.
Fico sempre pasmada com o que somos capazes de fazer com o cérebro mais avançado que a vida tal como a conhecemos foi capaz de criar. O que esta malta se deve divertir...
terça-feira, 1 de dezembro de 2020
segunda-feira, 30 de novembro de 2020
"De tudo o que é escrito, amo apenas aquilo que alguém escreveu com o seu próprio sangue."
Friedrich Nietzsche
Dessas palavras que se escrevem a sangue, escolho cuidadosamente as que parecem falar-me ao ouvido; saber quem sou. Ouço-as uma e outra vez, sabendo bem que me deixo confundir. Se não fosse o ar frio da manhã, que aquieta, por momentos, o meu mundo, o próprio vento me traria pedaços das histórias que guardo em segredo.
domingo, 29 de novembro de 2020
Qualquer coisa sobre a (ir)racionalidade dos afectos
Há muito tempo (creio que desde que tenho consciência da minha finitude) que me decidi pela vontade de, quando morrer, ser cremada. A ideia do meu corpo desabitado fechado numa
coisa a que se dá o nome de caixão, onde, depois, desceria às entranhas da terra, entre arremessos
de flores, para aí apodrecer entre vermes, em repouso eterno, causa-me mais repulsa do que a certeza
de que, um dia – lá longe, muito, muito longe, espero – a minha vida, como
todas as outras vidas, chegará a seu termo. Como não acredito na reencarnação,
não preciso de preservar nada mais para além da certeza de ter valido a pena. O tempo que por cá passar. Também
não tenho nenhum desejo especial para o que sobrar de mim. Desde que não me
lancem ao mar: prefiro continuar a admirá-lo de longe, se se der o caso não
provado ainda de restar um leve vestígio de memória entre os átomos de que me
faço.
Morrer anonimamente há-de ser uma bênção. Talvez mais do que viver anonimamente. Ouvir gente desconhecida
falar dos nossos – mesmo que os nossos se tenham lançado por vontade própria nos
braços mercenários do mundo, ou o mundo os tenha arrancado a ferros à mudez de uma
existência livre de lendas em vida e em morte – é uma insolência. Mesmo quando esse
falar se faz de admiração exaltada, incontida. Os tributos que se devem (devem?) aos que
morrem publicamente, vertidos em elogios fúnebres que se multiplicam abruptamente
em editoriais, artigos de opinião, entrevistas curtas, posts nas redes
sociais e toda uma parafernália acrescida de revisitações das vidas que se
apagam violentamente, deixam muitas vezes a impressão (injusta, talvez) de que
só a morte é capaz de destapar as virtudes encobertas até aí. Há um certo pudor
em falar mal dos mortos e talvez seja esse pudor a permitir o exagero da vénia.
Os últimos dias encheram-se de homenagens histéricas a Diego Maradona. Histéricas, não necessariamente no sentido detestável do termo (mas também). Eu – que não gosto especialmente do futebol jogado e abomino a veneração pornográfica que se oferece, quer ao espectáculo em si, quer aos seus protagonistas – posso perceber que haja quem lamente destemperadamente a morte de alguém que, pelo que me dizem, foi o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Mais do que um génio, um deus. E, quando se dedica algum tempo a admirar a Física em acção, na sua transmutação profana em golos e passes de bola arrancados às leis de Newton, é fácil deixarmo-nos enamorar pela magia dos equilíbrios escondidos nos misteriosos centros de gravidade. De que Maradona saberia muito pouco, aliás. Da parte teórica e aborrecida da coisa, entenda-se. É como a geometria por detrás de uma bela partida de bilhar, com a diferença de que ninguém enlouquece pelo melhor jogador disso do mundo. O futebol tem um lugar especial e cativo no delírio (anti-)desportivo colectivo, talvez por permitir que durante 90 minutos, pelo menos, os adeptos se portem com a indecência que o desporto tolera, com a complacência irresponsável de muitos. Para alimentar a ilusão – e o arrebatamento –, a arte não só não está ao alcance de todos, mesmo que se perceba muito da Ciência que comanda o jogo, como é (quase) possível acreditar que, por um breve momento, é a própria Ciência que se verga a esse génio endeusado. Que eu não honro, no que toca a "futebóis", não é ao que venho. Aflige-me sempre o culto de massas. Hiperbólico em quase tudo. A questão é outra. O Homem é bastante imperfeito (e aquele homem, em particular) e há umas imperfeições mais desculpáveis do que outras. Até onde pode chegar a admiração por alguém que, em algum momento da sua vida, ou numa vida inteira desses maus momentos, se portou como um imoral? Várias vozes se levantaram contra o exemplo de Maradona. Como assim, venerar um homem cheio de tantos pecados, mesmo que esse homem seja “el pibe de oro”, amado até pelo Papa Francisco (sendo que o Papa tem, pelo menos, a desculpa dos santos, que mandam amar o próximo como a si mesmo)? Um artigo publicado no The Guardian no passado dia 27 falava da facilidade com que se esqueceu a violência contra as mulheres, nas homenagens a Maradona. Como já antes se a havia esquecido, nos tributos a Sean Connery, que, ao contrário do génio da bola, admirei bastante em vida. Como continuar a ouvir as músicas de Michael Jackson depois de saber das denúncias dos abusos sobre crianças; depois de ver Leaving Neverland? Como ler Pablo Neruda, mesmo morto, depois de conhecido o relato, na primeira pessoa, da violação de uma mulher, no tempo da colónia britânica do Ceilão (e terá sido "apenas" essa)? Como é possível erguermos heróis sobre os escombros dos seus crimes? Quantos anos precisam de passar para nos ser permitido perdoá-los? Pois, não sei bem. Não sei nada. Continuo a ler Neruda e a ouvir Michael Jackson, entre outros ultrajes; de que não constam, de facto, a devoção ao futebol, mas isso não me torna menos infame. Não há como branquear o lodo dos monstros que amamos e não partilho da tentativa de racionalização que alguns ensaiam sobre quem podemos ou não podemos homenagear, como se uma vítima fosse mais ou menos vítima de acordo com o estatuto do abusador. Nem acato bem a ideia de que o que é importante e é preciso é separar a magnificência da obra da miséria do autor: isso é só o que nos dizemos para nos redimirmos. Acho apenas que devemos aceitar a nossa parte da culpa. E que até os mais puros têm o seu lado bafiento, tenebroso. Mesmo quando nos querem convencer do contrário.
E desviei-me de quase tudo o que queria dizer quando comecei isto. Vinha principalmente falar de afectos, desses, capazes de nos desordenar a razão, se nos faltarem, e acabei na irracionalidade das paixões por que nos perdemos. Não é bem a mesma coisa. Tudo porque tropecei na notícia sobre o novo livro de António Damásio, enquanto procurava as minhas fotografias do belíssimo cemitério Mirogoj. Mais ou menos. Percebo que faço muito pouco sentido.
sexta-feira, 27 de novembro de 2020
Orçamento de(t)Estado
Diz-me como te orçamentas, dir-te-ei quanto duras.
De orçamento em orçamento até ao estertor (ou estupor) final.
Atrás de um queijo limiano virá quem da negociata do orçamento pior fará.
Podia continuar, mas acho que é mais ou menos isto. Entretanto, plagiei outro título, mas, desta vez, é meu, pelo que a culpa será menor. Espero.
quinta-feira, 26 de novembro de 2020
Sobre coisas realmente abjectas
Segundo a organização internacional Save the Chlidren, nos últimos dez anos “a guerra matou ou mutilou 93 236 crianças”. Li esta notícia há dois dias, pelo que, hoje, muito provavelmente, aquele número já estará desactualizado.
O sofrimento
das crianças que (sobre)vivem em palcos de guerra – guerra mesmo guerra – é tão terrível,
tão obsceno, que nunca seremos (nós, os ocidentais privilegiados; mesmo os “remediados”)
capazes de imaginar o inferno que se vive nesses países. O esquecimento que
dedicamos à miséria dessa gente desfeita pela acaso de ter nascido no lado errado do mundo deve ser uma forma de preservarmos a nossa sanidade mental. De outro
modo, seríamos incapazes de levar uma vida normal, para lá do empecilho das
máscaras e do abuso do Estado sobre o controlo da hora a que nos devemos recolher. “Todos
os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, mas, para
uma insuportavelmente extensa parte da população mundial, essa igualdade e
liberdade outorgada em declarações e decretos morre no próprio acto de nascer.
No mesmo dia e no
mesmo jornal, li sobre as mais de 33 mil pessoas que fugiram para o Sudão em menos de três semanas: são
etíopes que tentam, assim, escapar ao conflito que opõe o Governo de Abiy Ahmed
à “Frente de Libertação do Povo Tigré”. O acordo de paz entre a Etiópia e a Eritreia provocou descontentamento entre rebeldes e,
aparentemente, o adiamento das eleições legislativas e presidenciais motivado
pela gestão da crise pandémica da covid-19 fez, ou desfez, tudo o resto. Podia ser só uma ironia.
E, por cá, o ano de 2020 já viu morrer 30 mulheres em contexto de violência doméstica. Até há uns dias, que o malfadado ano ainda não terminou. Embora, este ano, no que toca a este drama, não seja muito diferente de outros anos.
Em alguns casos (invariavelmente, ano após ano), houve crianças a assistir aos crimes. Pergunto-me sempre – e, obviamente, não sou a única – por que motivo serão sempre as mulheres e as crianças as obrigadas a fugir e a viver escondidas dos seus agressores, quando deveriam ser estes a permanecer em casas, ou celas, de isolamento, privados da sua rotina de espancar porque sim, abusar porque o dia correu mal, matar porque tropeçaram noutra qualquer frustração que o mau génio alimenta. Há, no entanto, outro número assustador: o de jovens que acham "normal" a existência de violência no namoro. Controlar, proibir, enciumar-se, querer violentamente são, para muitos – ou, mais exactamente e desgraçadamente, para muitas – sinónimos de amar muito e amar bem.
Ainda sobre a violência extrema sobre o outro – que, de tão banal e normal, deixou de chocar fora da orgia persecutória das redes sociais –, soube-se que a directora do SEF admitiu que Ihor Homenyuk foi torturado, evidentemente, mas achou por bem manter-se em silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto lhe foi possível e não considera demitir-se.
Os contornos deste assassínio continuam a provocar-me náuseas. Pela morte e tortura de um homem, gratuitamente, às mãos de uns cobardes nojentos e por ser evidente que só se pode ser tão levianamente criminoso no exercício de um cargo de poder quando se goza de uma imensa sensação de impunidade dentro da instituição a que se pertence. Há tantas pontas soltas nesta história de horror, tanta indecência, que se tornaria insuportável num país que se quer civilizado. Mas, não parece ser o caso.
E, não há muitos dias, a SIC Notícias exibia uma reportagem sobre suspeitas de negligência num lar ilegal na zona de Palmela. Negligência é um brutal eufemismo para o que ali se viu e ouviu. Não sei bem se a SIC deveria ter mostrado aquelas imagens ou não. Há sempre uma dúvida, quando a situação é tão grave que roça o absurdo. Às vezes desejo que exista isso a que alguns chamam Inferno. O bíblico. E que seja realmente eterno.
segunda-feira, 23 de novembro de 2020
Entre Livros e Estórias
Nunca vivi longe do
mar. Não sei se seria capaz de viver longe do mar. É uma intransigência (não é
bem) um pouco desentoada, porque o uso apenas como abrigo e repouso. Para o ver
e o ouvir nas histórias que conta. Como a daquele casal (do que parece ter-se
convencionado chamar “de idade”) sentado em frente àquela imensidão de azul,
cada um na sua cadeira portátil, de azul petróleo, a dela, de riscas coloridas
como um arco-íris, a dele, colocadas lado a lado entre as pedras das arribas
que o Sol inunda generosamente antes da hora do recolher. Conversam
serenamente, com o mar como uma tela de fundo, os dois de jeans e
pulôver de malha, encostados à altura do ombro, sem pressa, perdidos em si mesmos
e, imagino, no balanço das ondas que o mar agita, também num compasso próprio e
alheio a angústias. Não sei se já o faziam antes desta peste. A conversa
íntima, de frente para o mar, entre as pedras e as ervas rasteiras, no conforto
das cadeiras trazidas de casa. Nunca os vi antes, e passo naquela estrada
tantas vezes que já lhes perdi a conta. Passo, fico, pasmo e, por vezes, também
converso. Talvez o faça mais agora, sim. Talvez o façam eles mais agora, também.
Entre os que
passeiam ao longo da linha de mar, não há ninguém de rosto enfiado no écran do
telemóvel. Bem sei que, normalmente, quem procura encontrar-se com o mundo real
– eventualmente, procurando refúgio em passeios ao ar livre, enchendo de vida a
vida que se agarra com desejo – é menos tentado por distracções daquele género.
Mas, ainda assim, creio que sempre vi algum prevaricador fortuito. Não é,
agora, o caso. Há uma comunhão de vontades, um quadro perfeito, que dispensa
devaneios estéreis.
Na tranquilidade
aparente do tempo, aproveito para ajustar a leitura. Não costumo deixar um
livro antes de o terminar. Mesmo quando me desiludo às primeiras páginas, o que
nem era o caso daquele que tinha em mãos. Mas, estava desatenta e, a propósito
de listas de livros que revisito e actualizo com regularidade, (re)apareceu-me o Cosmos
de Carl Sagan. Já não sei bem quando o li pela primeira vez. Sei que foi há
muitos anos e, apesar de o considerar um dos mais belos livros que já li – de
Ciência, mas não só – apercebi-me de que nunca tinha lá voltado. Para ler outra
vez, de uma ponta à outra, sem batota, como se fosse a primeira vez. Na
verdade, não é difícil. Não é nada difícil. E sorrio sempre quando recordo a curiosidade teimosa de Eratóstenes. Aquela curiosidade astuta, de desconfiança sadia, não a
dúvida torpe dos livres pantomineiros, enlameados no embuste novo-chique
do finjo que penso, logo, se assim não penso, nada disso existe.
“Um livro é feito a partir de uma árvore. É um conjunto de partes planas e flexíveis (ainda chamadas “folhas”) impressas de rabiscos tingidos a negro. Um olhar rápido e ouvimos a voz de outra pessoa – talvez de alguém morto há milhares de anos. Através dos milénios, o autor fala, clara e silenciosamente, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita talvez seja a maior das invenções humanas, unindo pessoas, cidadãos de distantes épocas, que nunca se conheceram. Os livros rompem as amarras do tempo, provam que o Homem é capaz de realizar magia.”
Carl Sagan
Depois, há a ameaça de segredos revelados nas palavras que escrevemos. Que partes de nós entregámos? Quantas te bastam? Quantas me perdem?
quinta-feira, 19 de novembro de 2020
Admirável Mundo Novo
Plagiei o título (mais ou menos). Não sei se se pode. E nunca li o livro (mais exactamente, “ainda não"), o que é, além de uma vergonha, um risco, porque, nas próximas linhas, posso vir a plagiar mais qualquer coisa, desta vez de forma não intencional e com menos competência ainda.
Adiante.
Dizem-me que o Miguel Sousa Tavares fez uma não-entrevista ao André Ventura, mas não tive paciência para ver. Há muito tempo que gosto mais de o ler do que de o ouvir. Ao primeiro. O segundo é um charlatão vaidoso e oportunista, defensor do direito de dizer uma coisa e o seu contrário sempre que isso sirva os seus intentos (pois, se calhar, não é modelo único) e que só ainda não atingiu o estatuto de estrela do semi-homólogo americano porque ninguém leva muito a sério um durão (assim mesmo, em modo de adjectivo, nada de confusões) que tem como animal de companhia uma coelhinha chamada Acácia, ou lá o é. Mas Portugal é um prodígio para lá dos fenómenos do Entroncamento e dos entendimentos nos Açores e, como tal, André Ventura vai ganhando palco. Um imenso palco. Ansiávamos pelo nosso “fascista” popularucho com a mesma avidez com que esperámos pelo nosso primeiro caso de Covid-19. Aí o temos, cheio de “eu faço”, a não ser que não faça, “eu aconteço”, a não ser que não aconteça, eu ameaço e nem preciso de esbracejar demasiado porque a desorientação que se instalou (“tem algum amigo preto”; a sério?!), da comunicação social à classe política, aquém e além mar, serve todos os propósitos destes santos de pau oco que a Democracia também alimenta, porque a Liberdade é a bela e é o monstro do nosso descontentamento. Não sei há quantos dias anda o André Ventura nas bocas do nosso mundo, mas, ultimamente, a cada vez que o vejo – de relance, numa ameaça de flash noticioso –, parece-me mais jovial, mais solto, mais de bem com a vida, e percebe-se porquê. Percebe-se que ainda não se percebe bem qual a melhor maneira de lidar com aquilo, como não se percebeu ainda qual a melhor maneira de lidar com ex-actual-ou-actual-ex-presidente dos EUA, que continua na sua senda negacionista, mimada e birrenta, com o mundo suspenso dos seus humores e das suas partidas de golfe: que outro regime político seria capaz de parir tamanho espectáculo? Há as ditaduras, sim, mas começam a ser bastante aborrecidas. Nada como deixar o povo escolher. Desde que sejamos nós a escolher o povo que deve poder escolher. Sem qualquer confusão, portanto.
Entre outras venturas e desventuras, há boas (aparentemente) notícias sobre os avanços relativamente à milagrosa vacina que vai tornar o nosso mundo normal outra vez, seja lá o que isso for. Veremos se este normal que não se pode dizer novo dará lugar a uma realidade que, em não podendo vir a chamar-se de velha, se aproxime, pelo menos, de algo suportável. Também ouvi qualquer coisa sobre a necessidade de renovar o estado de emergência, sucessivamente, tantas vezes quantas as que forem necessárias, até “esmagar” a danada da curva que teima em desafiar a nossa capacidade de resistência. Menos mal que aguentamos, não é?, como já nos garantiram em ocasião anterior. Entretanto, quer-se impedir que profissionais de saúde abandonem o SNS rumo aos hospitais privados, que o tempo é de pandemia e de colapso iminente dos serviços, enquanto os colégios privados perdem professores para as escolas públicas, porque os professores a mais que Portugal tem há anos, afinal não chegam para garantir o anormal funcionamento das aulas em tempo de covid. E sei bem que tudo isto merece maior reflexão e cuidado, mas ando mesmo, mesmo com pouca paciência. Como toda a gente, provavelmente. Percebo, aliás, que não tenho sido sequer capaz de ler o livro que tenho em mãos. Vou virando páginas sem dar acordo do que se passa dentro, as letras como uns gatafunhos medonhos tingidos de um negro a que não acho graça. Falta-me a tranquilidade necessária para pôr ordem nas linhas, sorvê-las com o mesmo prazer com que tomo o café acabado de fazer, numa chávena de louça, amargo e forte, puro e intenso como algumas das melhores recordações. Suspendo-o, por isso. Ao livro, já que o mesmo não posso fazer aos dias, a estes dias, e aguardo que a tempestade esmoreça e se desfaça num vento inquieto capaz de mordiscar as folhas sem as rasgar e de apressar o mar sem o dilacerar.
Também soube que a Hungria e a Polónia vetaram o Orçamento Comunitário e o Fundo de Recuperação, a "bazuca" com que a União Europeia pretende ajudar os Estados-membros a minimizar os efeitos devastadores da pandemia sobre a economia dos diferentes países. Victor Órban e Mateusz Morawiecki não querem ver o acesso aos fundos europeus condicionado a coisas miúdas, como o respeito pelas regras do Estado de direito. Não há-de ser grave. Não há regra que não tenha a sua excepção nem direito que não possa ser beliscado. Tudo vai acabar bem. Mas, enquanto não chegam melhores ventos, aproveito o sol de Outono, que prefiro ao de Verão (como prefiro o de Inverno) porque aquece sem estalar e deixa na pele uma carícia suave que me reconcilia com a obrigação de usar máscara, de dosear os afectos, de evitar abraços, de fingir que os dias se aguentam melhor se afogarmos a saudade numa manhã como a de hoje.
domingo, 15 de novembro de 2020
domingo, 8 de novembro de 2020
Destes dias
Não conheço ninguém
que viva num lar. Mesmo que seja possível, isso de viver num lar. Dizem que há lares que são mesmo Lares. Espero nunca vir a precisar, nem para mim própria, nem para os meus mais queridos. Até à presente data, os meus
dois únicos familiares com necessidade de acompanhamento permanente numa
determinada fase da sua vida tiveram a possibilidade, afortunada, de ficar em
casa até ao fim da agonia. Na impossibilidade de afastar as doenças, terríveis as duas, o segundo privilégio foi a agonia não se ter prolongado por
tempo demasiado indecente. Há um tempo minimamente decente para aguentar uma espécie de coisa
que já não é vida. Para quem resiste e para quem assiste, impotente, mesmo que faça todo o possível para fazer muito mais. E quem passa pelo horror da experiência, passa por ela de
forma diferente, pelo que não há muito mais a dizer. A não ser que não tenho medo de
envelhecer. Creio que nem sequer tenho um medo estapafúrdio da morte. Tenho
pena de deixar de viver, e tenho medo de deixar de viver muito antes da morte
chegar. Comungo da ideia de que a morte não chega exactamente com o último
sopro.
Entre os mais desprotegidos dos mais desprotegidos, continuam os mais velhos, os mais doentes e os mais pobres. Prepara-se outra etapa de combate à pandemia que, temo, ameaça tornar-se num outro remendo. Mas nada disto é fácil. Inevitavelmente, com o SNS à beira do colapso, o Governo decretou o recolhimento obrigatório em alguns dos concelhos com maior número de infectados. Parece que andamos a portar-nos muito mal. Talvez seja, não sei. Sei que andamos a usar as máscaras mal desde o início. Já não sei se isso chega para explicar tudo. Tenho tido – como todos – muita dificuldade em equilibrar o deve e o haver (se posso dizer assim) da nossa gestão desta pandemia que o final de ano não vai levar, afinal. Nossa, enquanto país, nossa, individualmente. Nesta fase, imagino, serão poucos os que ainda não conhecem alguém doente. No mínimo. Talvez sejam mais os que ainda não perderam ninguém para a doença. Para outras doenças, atiradas para um canto por esta. Cada um de nós terá tido a sua dose. Mais uma vez, pessoal e intransmissível. Acresce que também não vejo os meus pais há muito mais tempo do que queria – do que quereríamos e do que nos devemos – e debato-me entre a vontade de os abraçar e o medo de poder contaminá-los. Fala-se muito sobre a liberdade que os nossos pais e avós devem ter, impreterivelmente, de decidir se querem ou não abdicar dos seus afectos em favor de um imperativo maior que é viver sanitariamente o tempo que têm pela frente. Eu concordo com isso, mas só em parte. Ou melhor: não é tanto uma questão de concordar ou não concordar, é o que fazer com a culpa que fica depois, caso haja esse depois que ninguém deseja; que eu, pessoalmente, não quero sequer equacionar. Será egoísmo meu.
O celebrado milagre
português – que, afinal, não foi bem – foi forjado sobre os ombros dos
profissionais de saúde dedicados e com enorme espírito de sacrifício; parece-me
bastante certo. Além, claro, da nossa vontade de ficar em casa; motivada pelo
medo, sim. Maioritariamente, talvez. Do mesmo modo que, agora, por exemplo, muitas escolas
se têm aguentado à custa da dedicação e espírito de sacrifício de professores e
funcionários. Claro que não de todos, evidentemente, não há nenhuma classe
profissional livre da sua nodoazinha de marca. Mas dos suficientes para o caos
não ser maior ainda. Há funcionários a reduzir, por iniciativa própria, as suas
pausas para almoço, para conseguirem (outro exemplo) limpar todas as salas entre
horários de manhã e tarde, quando rodam as turmas. E professores a duplicar parte
das tarefas, porque, aparentemente, em alguns concelhos toda a turma fica em
casa quando há um ou mais alunos infectados e, noutros concelhos, só ficam em
casa os alunos infectados: a restante turma continua com aulas presenciais e
não há dois professores diferentes para o efeito. Entretanto, o Governo
continua a falar nos computadores que chegam aos alunos mais carenciados, e há
escolas aonde não chegaram, ainda, nem computadores nem professores. Evidentemente,
um sistema de colocação de professores obsoleto e apodrecido pesa nas contas cada
vez mais inconciliáveis.
E, sim, nos últimos dias andei obcecada com as eleições americanas. É-me indiferente (talvez "quase indiferente" seja mais honesto) o rumo da política na América, assunto sobre o qual percebo pouco mais que nada. Para mim, a questão não era essa. Há maldade e maldade, escuridão e escuridão, trevas para além das linhas que nos arrancam pedaços, ou da sombra negra das nuvens antes da tempestade perfeita. Donald Trump é maldade na sua forma nauseabunda. Ventura é um menino de fralda. É esse o grande legado de Trump. Não só por cá. Veremos por quanto tempo. Fico aliviada com a vitória de Biden (mesmo que Trump e a sua corja esperneiem e possam, ainda, ressuscitar), não porque Biden seja uma competentíssima promessa, mas porque tenho mais facilidade em explicá-lo a ele à criança que pus no mundo e que vou tantando educar. Não tem nada a ver com ser boazinha. Também já fui capaz de o ensinar a não bater em ninguém por sua iniciativa, aconselhando-o, contudo, a que se alguém lhe batesse primeiro, que pensasse duas vezes entre ir, ou vir, fazer queixinhas, ou defender-se também pela força física: da primeira vez, pode resultar bem em ambos os casos, mas é bem possível que apenas no segundo o problema se resolva logo de vez. Sou um mãe cheia de incongruências. Mas a vida sem os nossos demónios talvez também não seja bem vida.
sexta-feira, 6 de novembro de 2020
Só porque alguém mo lembrou...
... e fui ouvir outra vez. Pronto, tirava de lá a Sarah Palin, se calhar.
Crónica de uma morte anunciada: a da Democracia Americana.
Pelo seu presidente in-chief, ainda. Ou in-shit, já não parece grande diferença. Trump é um homem miserável. Se ainda restasse alguma dúvida, bastava tê-lo ouvido (e visto) ontem. É inacreditável como ainda há, pelo menos, setenta milhões de eleitores americanos que o escolhem. Como ainda não existe, nesta altura, uma vitória clara, expressiva, do seu opositor.
O ainda presidente dos EUA jogou a penúltima cartada para se manter, histericamente, no poder. A última, a mais desesperada, talvez venha a ser convocar, loud and clear, mais loud and clear ainda do que o stand back and stand by atirado em directo, os seus rapazes e raparigas para um motim armado, que o segure na sua Sala Oval. A que sequestrou com a cumplicidade vergonhosa do partido republicano. E os elogios que tenho ouvido, por cá, às suas políticas enojam-me. Há uma diferença entre não alinhar no "politicamente correcto" nem em falsos moralismos - com que, muitas vezes, conocordo - e aquilo que Trump representa. O que se diria do homem se o homem fosse uma mulher.
Espero que Joe Biden ganhe estas eleições. Espero que as instituições americanas resistam, que haja um pingo de decência que, no limite há muito ultrapassado, haja alguém capaz de bater com a porta e dizer enough is enough e que a América vá a tempo de sarar. Eu, na minha arrogância enorme de achar que há uma linha que não poderia nunca ter sido cruzada.
quinta-feira, 5 de novembro de 2020
De manhã, ao acordar, há uma pequena fracção de segundo em que tudo parece vazio. Um estado de semi-inconsciência, muito ténue, fugaz, em que o mundo ainda não se abateu sobre mim e, por um minúsculo instante, não há mortos, nem números, nem distâncias, nem contágios ou contagens, nem ruína iminente. Nem saudade. Não há, sequer, o canto dos pássaros, nem os gritos esganiçados das gaivotas. Nem uma ameaça de sobressalto. Apenas um nada, imenso, de quietude, imediatamente antes do alarme.
Despido o embuste, há um mundo em ebulição. Há uma linha de calendário, um ano miserável, sôfrego, calamitoso - espantoso, simultaneamente -, que não dá tréguas. Vivemos - nós, no presente - um momento histórico. Diz-se isso, muitas vezes: um momento histórico. Mas, este, é mesmo um tempo extraordinário. Gostaria de viver o suficiente para vir a poder olhá-lo com o distanciamento que merece. Para tentar entender o que, de momento, é absolutamente insano.
quarta-feira, 4 de novembro de 2020
Alianças e Ameaças (não necessariamente por esta ordem e não mutuamente exclusivas)
Se Trump sair vencedor destas eleições, vou chorar. Se for Biden o vencedor, vou chorar na mesma. Só preciso de um rastilho que me permita reconciliar-me comigo mesma. Ainda não sei bem o que a pandemia e o confinamento fizeram de mim, mas pertenço àquele grupo de gente (seca e desagradecida, seguramente) a quem o Universo não deu qualquer sinal. Não descobri talentos adormecidos, não aprendi a fazer pão, não vi unicórnios nem ouvi chamamentos da Natureza e não tive uma epifania nem nada que se lhe assemelhasse. Não fui sequer capaz de bater palmas à janela, mas, neste caso, nem sei bem por que não me terei deixado levar pelo momento: continuo convencida de que a ilusão de que assistíamos ao tal milagre português ficou a dever-se mais à dedicação e capacidade de trabalho e sacrifício de muitos desses profissionais "da linha da frente" - que não passou apenas, é verdade, pelos profissionais de saúde - do que por uma gestão competente do pandemónio em que fomos metidos. Mas era essa, a da saúde, a frente mais visível, na altura e, sim, houve palmas merecidas.
Enquanto a América continua a contar votos contra a vontade de Trump (antes de sair de casa, ouvi alguém dizer que Trump é como aqueles rufias espertalhaços - rufias espertalhaços sou eu que digo - que querem terminar a partida ao intervalo, desde que, nesse momento, estejam a ganhar), parece que o CHEGA está em conversações com vista a uma solução de governação nos Açores. Li, muito por alto, que o CHEGA-Açores quer, mas o Ventura não deixa, o que não deixa de ser uma coisa extraordinária. Eu preocupada com a América e o caos aqui tão perto.
segunda-feira, 2 de novembro de 2020
Tudo bons rapazes
Estou obcecada com o processo em curso para as eleições presidenciais americanas. Entre o estupor e uma espécie de fascínio macabro. Posso perguntar-me quinhentas mil vezes ou mais e nunca hei-de perceber como alguém com a dose mínima de decência consegue apoiar alguém como Donald Trump. Para o cargo mais alto da nação, quero dizer. Como personagem de entretenimento, é uma figura imbatível.
Na semana que
terminou, apoiantes seus, de carro, perseguiram a caravana de campanha de Biden que se dirigia para um qualquer evento no Texas. Um dos veículos conduzido por um dos
fanáticos adeptos de Trump abalroou, intencionalmente, um veículo conduzido por
um dos apoiantes de Biden. Claro, ninguém está livre de ter um apoiante maluco.
Mas, o caso não é esse. Com Trump, o caso nunca é só esse. Apressou-se, como
sempre, a tuitar que adora o Texas, como já disse – no típico tom pateta e
indecente fora dos moldes de um reality-show (aqui, já toda a gente sabe
ao que vai), que espera por terça-feira para despedir Anthony Fauci. Como já
antes tinha gozado com a deficiência de um jornalista, perante uma assembleia
de idiotas que baba (no mínimo, que é o se pode ver) cada vez que o idiota-mor
vomita qualquer insulto. Começo a ter mais “respeito” (com muitas, muitas
aspas) pelos supremacistas brancos assumidíssimos, do que por aquela gente que
se enche de sedas e folhos e botões de punho para dizer que Biden é que jamais
– assim, em francês, com a elegância que se espera. E eu até gosto de francês.
E até acho que há gente que merece ser gozada. À bruta.
Por falar em eleições, parece que os Açores vão ensaiar uma geringonça insular. Passada a quase apoplexia (se ainda não passou – e há gente para quem ainda não passou – passará agora) do PSD com a marosca política de António Costa, é tempo de tentar o mesmo. Como é sabido, todas as indecências políticas por que se rasgam vestes na oposição, passam a aceitáveis, e respeitáveis, quando fazem antever a conquista do tal Poder, seja lá o que isso for. O Poder. Até o CHEGA pode passar a, sim, sim, já chega para haver o entendimento que sempre repudiámos. O sistema é um nojo apenas enquanto não se lhe deita a mão e, na verdade, nesse aspecto, não parece haver grande diferença daquele partido para os outros.
E prepara-se outro
confinamento. Pergunto-me quanto tempo mais (nos) vamos aguentar. O meu filho
pergunta se eu acho que isto acaba alguma vez, como se eu
soubesse alguma coisa sobre o assunto; mas, juro-lhe que sim, que vai acabar,
claro que vai acabar, e abraço-o e encho-o de beijos enquanto posso (posso, não
posso?), enquanto ele ainda me deixa. Há uma idade menos desgraçada para passar
por isto, afinal. São estes 13 anos, em que já não se está a dar os primeiros
passos neste mundo às avessas, mas também ainda não se chegou bem àquela
maravilhosa loucura da adolescência. Como será? Viver a adolescência nestes tempos,
sem poder cometer pecados, sem viver arrebatadamente, a primeira paixão, o
primeiro beijo, a primeira mentira a merecer castigo?
Pela Europa,
multiplicam-se as manifestações contra as restrições impostas pelos diferentes
governos. Porém, há manifestações e manifestações. Há vontades e vontades. Não
consigo perceber as lutas pela liberdade de fazer o que me apetece
quando me apetece e onde me apetece que, mais coisa menos coisa, acabam em
destruição porque sim. Manifestações violentas de gente que acredita em teorias
da conspiração mirabolantes. Outra coisa são as manifestações pela liberdade de
se viver do trabalho e não de subsídios, ou de caridade. Este equilíbrio –
entre a economia e a saúde, no limite indecente da salvaguarda de ambas – é
terrível de fazer. Não queria estar no lugar de nenhum daqueles que têm esta
tarefa entre mãos, neste momento. Não sei se já não teria atirado a toalha e
dado lugar a outro, com a quantidade de gente que sabe qual é a melhor
estratégia a aplicar para tourear o bicho. Há quem julgue que se mantêm lugares exclusivamente pela ganância, pelo interesse próprio, pelo poder (ia dizer pelo prestígio, mas, creio que, em política, isso já não existe). Eu também. Excepto, talvez, em
casos destes. Alguém consegue passar por tudo isto sem uma pontinha que seja de
sentido de Estado e de serviço público? Se calhar há e eu estou só a ser demasiado ingénua, ou coisa pior.