quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

 


Não tenho resoluções de ano novo. Um ano é uma imensidão de tempo, independentemente da forma como o medimos, pelo que, nunca sou capaz de dizer “que ano magnífico!” nem, ao contrário, que “ano horrível!” foi este que acabou agora mesmo. Esforço-me por dispor felicidades (e desgostos) uma-a-uma, peça-a-peça, como numa construção de legos. Só saberei se valeu a pena quando chegar ao fim e, para isso, preciso de mais do que um ano, ainda assim; preciso de uma vida, e ainda não acabei. 

Tenham, então, uma boa vida, mais do que um bom ano.


Aquele pedacinho de texto, escrevi-o há cerca de um ano. Começava 2020, passavam uns dias desde que o Papa Francisco se irritara com uma "devota" demasiado devota e lhe dera uma palmada na mão, e eu tinha acabado de ver "Dois Papas", de Fernando Meirelles.

A esta distância, parece uma premonição. Aquela espécie de mensagem de Ano Novo. É muitas vezes assim. As coisas assumem uma outra dimensão, quando o contexto muda dramaticamente. 

Trago-a para aqui. A mensagem. Porque me parece que se aplica melhor ainda este ano, prestes a começar.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020



 

Bela Croácia

A minha última viagem de férias foi à Croácia, em Agosto do ano passado. 2019 parece-me tão distante, que precisei de confirmar a data. 
Foi tão bonita, tão bonita! Uma das viagens mais belas que fiz.

Um terramoto. É um dos desastres naturais que mais me atormentam. Não há muito para dizer, nestes momentos. Ou eu nunca sei bem o que dizer. As catástrofes nunca nos atingem da mesma maneira. Mas há sempre gente que resiste, que se ergue do pó sem lamentos e deixa as feridas para lamber depois. 

Bela Croácia. De tantos encantos.





Notas mais ou menos pandémicas

Depois de dez penosos e longuíssimos meses da pornografia telediária dos números de infectados e mortos por, de, com covid-19, travestida de notícias angelicamente servidas e seguidas de sermão dominical pelos pivôs de referência nos canais da mesma, chegou agora a vez dos números dos tomadores da vacina com direito a directos pungentes, com e sem camisa, e mais uma procissão de egrégios especialistas a debitar conjuros sobre o passado, o presente e o futuro. Sem esquecer um outro número, de um outro circo. Parece que a PSP e a GNR se desentenderam (que novidade!) sobre quem recaía a glória de transportar as vacinas d’aqui-ali, não percebi bem de onde para onde, nem me apeteceu confirmar. Perdi-me na extravagância da cena. Portuguesa, com certeza. Seria só ridículo, não fossem estes tempos estes tempos. Menos mal, que, até ao momento, nos livrámos do exagero de aplicar cinco doses da vacina de uma só vez, a uma mesma pessoa. Ou a oito. O que seria.

Ainda assim, bendita Ciência, que nos permitiu chegar até aqui. Acho imensa graça aos descrentes porque sim, não vá a mole confundi-los com a ovelhinha do presépio. Há ovelhinha no presépio, por falar nisso? Na dúvida, antes acreditar na senhora que lê a mão, do que na mão que forjou a vacina, que até a língua pode ser traiçoeira. E o elogio da dúvida – fundamental para o avanço da Ciência, note-se – tem servido suculentas análises de pensamento alternativo baseado no terror de se pertencer a esse bando desprezível de gente que decide ouvir falar de saúde quem percebe de saúde e, pasme-se!, fazer-lhes caso, em vez de dar ouvidos a livre-pensadores de outra área qualquer – não interessa qual desde que se duvide, muito, sempre e sob qualquer pretexto, como fazem os avisados. Palermas. Os outros.

 

Entretanto, faltam dois dias, mais coisa menos coisa, para acabar este ano medonho. Para muitos, a vida deu uma volta de 180º, para outros, nem tanto. E, para um grupo restrito de gente, a vida até melhorou. É quase sempre assim, a vida é um magnífico acaso, nem sempre fácil de contrariar. Para nós, os que nascemos do lado certo do mundo, não é fácil pormo-nos na pele daqueles que nunca deixaram de viver nas profundezas do inferno. Podemos ensaiar a nossa aflição pelo infortúnio alheio em prosas semi-sentidas de solidariedade e pesar, mas saberá sempre um pouco a fraude; um interlúdio inconsequente que se alterna de forma mais ou menos elegante com a partilha de experiências mais mundanas, muito primeiromundista mundanas, entre deleites gastronómicos, gulosos, viagens ao redor deste nosso mundo e desse outro, e uma pitadinha de arreliado desdém por quem não se preocupa com as coisas e causas certas. Digo eu, que tenho nas viagens e na boa gastronomia dois dos meus maiores luxos. E, como se não bastasse, padeço, igualmente, de tempos a tempos, em pequeníssimos intervalos, dessa mania soberba de achar que tenho lições de moral para distribuir pelos outros. Por isso mesmo, fujo dos santos.

 

Por falar em moral, também me escandalizei com as imagens dos animais abatidos na Herdade da Torre Bela. Não sei se posso. Afinal, gosto de comer carne, não gosto de caça mas sei disparar e, para cúmulo, tenho um cão. De estimação. Por tudo isso e o mais que tenho lido, não estou habilitada a sentir-me enojada com o que ali se passou. Valha-me, ao menos, aquela outra imagem das duas crianças com a cara untada de sangue, uma forma de baptismo, dizem, a que o orgulho soez dos progenitores não terá resistido. 

Como há manchas e manchas e não há quem não goste de ficar bem na fotografia, mesmo na mais ignóbil, mesmo naquela que, por vergonha afinal, se apaga, monta-se, agora uma romaria de penitentes enjeitando culpas, gritando inocência, desconhecimento, violação disto e daquilo, como se o grupo armado tivesse tomado o terreno de assalto, à socapa, por sua conta e risco.

 

Ainda uma nota – muitas notas, na verdade – para a TAP, noutro modo de maldizer. Há (há?) uma restruturação em curso e um plano dramático de corte de salários para evitar, segundo o ministro Pedro Nuno Santos, um número maior de despedimentos. Não há muito tempo, em entrevista a José Gomes Ferreira e João Vieira Pereira, Pedro Nuno Santos justificava-se, em parte, com o “exagero” (não o disse exactamente assim) dos salários auferidos pelos pilotos da nossa, mesmo nossa, companhia aérea. Mas, hoje, ou ontem, ficámos a saber que nunca é demais duplicar alguns salários. De alguns administradores. A crise, quando chega, nunca é para todos. Por pressão ou por vergonha (parece que foi mesmo por pressão), Miguel Frasquilho terá abdicado da sua estrondosa subida salarial. Restam os outros.

 

E ainda há o Brexit. Finalmente, o Brexit. Mas não vi pormenores. Não sei se Boris Johnson conseguiu a desejada proeza de livrar o Reino ainda Unido das maçadas da outra União, sem largar os benefícios de dela fazer parte. Alguém se lembra do outro senhor, o tal Nigel Farage? 

E Trump continua no seu estertor de morte. Estraçalhando democraticamente tudo o que puder, enquanto puder. Apelando ainda (ainda?!) à rebelião, entre partidas de golfe.

E morreu Pierre Cardin. Não que a sua morte me tenha sensibilizado mais do que outras mortes que nem cheguei a referir. Mas gosto de boas histórias. De boas memórias. De boas conversas. Não sendo bem uma conversa estas linhas que aqui vou deixando, dá-se o caso de me ler mais gente do que imaginava, quando decidi transladar-me para este canto. Aos que por aqui se perdem, obrigada pelo vosso tempo. “Bom Ano Novo” não sei se será a expressão mais adequada, neste fim de ano em particular. Ou, pelo contrário, talvez seja este, precisamente, o tempo em que esse voto faça mais sentido. O mundo, esse, continuará alheio à nossa vontade.

domingo, 27 de dezembro de 2020

Em jeito de não-balanço

Este costuma ser o tempo de “passar o ano em revista”. Ir atrás no tempo e enumerar os momentos marcantes do ano que está prestes a terminar. Raramente (acho que “nunca” é o termo correcto) o faço, mas, este ano, quase pensei abrir uma excepção. Ia começar pelas fotografias que mais me marcaram, a reboque da pandemia. As primeiras ruas desertas, a praça de São Pedro, imensa e vazia e o Papa Francisco na sua extraordinária celebração Urbi et Orbi, quando alguns achavam que tinha chegado o momento em a Humanidade se faria Una, acudindo ao próximo, amando-o, finalmente, como a si mesmo, esquecendo as diferenças e unindo esforços, sacrifícios, em volta de um bem comum. Estávamos em Março e no mesmo barco, não era? Como os mal-afortunados passageiros do admirável Titanic. Mas, já nessa altura, o Papa Francisco lembrava que ninguém se salva sozinho e evocava as “pessoas comuns”, fora do espectáculo mediático, dos médicos e enfermeiros, às pessoas que nos recolhem o lixo. Provavelmente, antevendo o que a pandemia deixaria a nu quando nos despisse do sentimentalismo de pechisbeque; esse que levava tanta gente ao pranto fácil, emocionadíssima com o sinal que o Universo – ou Deus, depois do filho – nos tinha enviado, para nos salvar de nós mesmos. Há muito que deixei de acreditar nesse Deus, mas ainda acredito em algumas dessas pessoas comuns. E, se ainda alguém for capaz de me recolocar no caminho da fé, há-de ser o Papa Francisco. Com todos os seus defeitos.

Entretanto, desisti. Do tal compêndio. O das fotografias que marcaram o ano. Descobri que ainda não consigo suportar muitas delas. Doem-me aqueles abraços feitos de plástico asséptico. O rosto dos velhos atrás dos acrílicos, vendo os filhos e os netos à distância adequada, que se quer limpa e segura. O cansaço vincado nos rostos dos que lutam para salvar vidas. O desespero dos que perderam tanto. As lágrimas dos lutos despedaçados pelo distanciamento que se diz físico, mas é muito para além disso. Quando tudo isto passar – porque há-de passar –, haveremos de contar estas e outras histórias e não sei se o balanço nos salvará dos pecados que fomos cometendo, ou dos que deixámos que fossem cometidos, nesta tentativa de conciliar liberdades individuais com o direito à saúde; entre este e a sustentabilidade de uma economia permanentemente a soro, no nosso caso, ora de mão estendida à esmola do Estado e às bazucas da UE, ora de mão no bolso dos nossos impostos, para acudir a todos os desvarios de um país confortavelmente pobre e entregue a uma "elite" apodrecida, com a bênção de todos.

Por falar em liberdades individuais, vem-me à memória um acontecimento perfeitamente banal. Há uns meses – que, a esta distância feita de pandemia e confinamentos, mais  me parecem anos, de cansaço acumulado –, na esplanada de um restaurante relativamente conhecido na zona onde vivo, um casal de idosos almoçava numa mesa afastada da minha por uma outra mesa. Nessa outra mesa, almoçava um amoroso e jovem casal, aparentemente, desses jovens muito tímidos, com receio de incomodar a própria sombra. Ao contrário do casal de idosos, sem pejo algum em incomodar quem quer que fosse. E, neste jogo esvaziado de forças, o velho da primeira mesa fumava, despreocupadamente, o seu prepotente cigarro, de rosto voltado para a segunda mesa. O fumo espesso e revolto, travesso, assim liberto também das amarras da boa educação e do bom-senso, ia fazendo o seu caminho sobre a relativamente curta (nesse tempo) distância entre as duas mesas, acabando o malcheiroso alvoroço mesmo em cima da esmerada tábua de queijos e enchidos que o casal jovem escolhera para dar início à refeição. Era tão obscena a cena que estive a menos de nada de meter eu própria o nariz onde não era chamada; e, quando me lembro dela, ainda me arrependo de não o ter feito. Parece um exagero. Estapafúrdio e presunçoso. O que não falta, afinal, são exemplos de gente que se está nas tintas para os outros – quais outros, então não sou só eu?, como diz uma amiga minha, em modo de maldizer – e o que é proibido é fumar no interior, não no exterior. Mas é daquelas coisas que só visto, como também é comum dizer-se. O caso é que aquela imagem do idoso expelindo toda a sua liberdade cavernícola sobre o direito daquele outro casal a usufruir da sua refeição intencionalmente prazerosa (pelo menos, a princípio), tem-me surgido como um modesto – e desajeitado, admito – retrato de um conflito maior entre direitos e liberdades que a pandemia veio exaltar, muitas vezes, da pior forma possível, confundindo um dever de solidariedade com uma suposta subserviência de manada (dizem) e a obediência à Ciência com a adulação que (não!) se deve às seitas.


E, por falar em Ciência, apesar de todas as contrariedades deste annus horribilis, 2020 termina com uma pequena dose de esperança. Injectável, em duas tomas, contrariando todas as expectativas pré-anunciadas e a clarividência da Raquel Varela. Ao contrário do nu (salvo seja) de Marcelo Rebelo de Sousa, animou-me (salvo seja outra vez) este nu de António Sarmento. A vacina é um pequeno passo, mas é um passo importante. Um passo que se espera que possa também chegar aos países mais pobres


Escolho uma fotografia, afinal. Para imagem de marca deste 2020. Não será a melhor, mas escolho-a, ainda assim.

LUSA/ José Coelho


Ah, e lá acabei por ver "Gambito de Dama". A tal série sobre xadrez que não é sobre xadrez e que, se não fosse pela Anya Taylor-Joy, seria outra coisa qualquer. Gostei bastante. Da Anya também. Além disso, tem o tamanho certo: 6 ou 7 episódios. Não tenho paciência para mais. Mesmo assim, parte da minha disposição para tal jornada adveio da falta do sossego de que fui dispondo para ler. Da ausência do silêncio de que preciso e que me tem faltado.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

domingo, 20 de dezembro de 2020

sábado, 19 de dezembro de 2020

Há quem escreva um livro numa fotografia. Componha uma valsa, dance um tango, pinte um quadro, cante uma ópera, grite em silêncio. Viva uma vida, intensamente, do primeiro ao último instante. E há quem nos despedace, em palavras escritas. Palavras que doem como punhais e amam com urgência. Que beijam e mordem sem pedir licença. É mais que encantamento, mais que alquimia. Como as nuvens que se desfazem quando o Céu desperta e o Sol se incendeia. Às vezes em fúria, às vezes com sabor a abandono. Colho-as para mim, guardo-as como relíquias. Sem remorso. Mesmo sabendo que não me pertencem.


sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Como dizia eu, um destes dias...

..sobre a relação Twitter vs políticos. 


Talvez a culpa não seja, de facto, do Twitter. Inacreditável...

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Os olhos dele esbarram nos meus, por momentos. Pelos olhos, essa forma não nova de comunicação que a nova forma de comunicação veio exaltar, adivinho-lhe o sorriso que a máscara esconde e creio que lho devolvo. O sorriso. Cordiais, ambos. O corredor é estreito, não caberíamos os dois mesmo que o distanciamento físico não fosse o novo normal (não se pode dizer, já sei; e há um distanciamento físico que sempre cultivei, ainda a pandemia não era pandemia, e outro distanciamento físico a que não há pandemia que me obrigue), e ele desvia-se para me deixar passar. A mulher que o acompanha abespinha-se, atira-lhe um resmungo ressequido, és tão simpático para toda a gente, só para mim nunca és tão simpático, ou qualquer coisa assim, e fico a pensar se a culpa de todas as misérias que nos atormentam a alma é deste ano mafarrico, ou se 2020 é só a desculpa ideal para alguns dos nossos desacertos mais sombrios.

“Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer.” 

Fernando Pessoa, “Livro do Desassossego”.

 


De quando em quando, preciso de me lembrar disto. Só assim sobrevivo à avidez da perfeição alienada com que se entopem os novos dias de moralismos exacerbados, tão torpes e inúteis quanto maltrapilhos, senão mesmo postiços. Só assim me livro (livro?) do mesmo pecado.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Mais que miseráveis

Tem-me faltado a vontade de passar por cá. Deixei a meio uma data de resmungos endiabrados, uns mais injustos do que outros. De cada vez que pensava ter acabado, outro espanto qualquer inflamava a minha fúria e achei melhor deixar tudo em suspenso, embora lhes tivesse dado título e tudo: “Momentos eh pá, calem-se!”, que era o que me apetecia dizer, se isso valesse de alguma coisa.

Começava na historieta idiota do vencimento das crónicas de Eduardo Lourenço. Se fosse necessária uma metáfora sobre a ligeireza mole com que se produzem especialistas em série, sobre tudo e nada e mais alguma coisa, para directos sobre directos sobre directos reproduzidos ad nauseam sobre um mesmo acontecimento, seria essa; um verdadeiro espanto. Depois, foi aquele magnífico momento queridoencolhe-te mais um bocadinho até desapareceres e levares contigo o que sobra de um outrora respeitado partido político, esse que nem sequer sei a que pertences porque te vejo trocado. Por um segundo, fiquei na dúvida se o “trocado” teria que ver com a ameaça de desfalecimento provocado pela fraqueza do corpo e da alma, ou se era mesmo trocado, trocado, isto é, trocado o Chicão a prazo por um líder partidário a sério. A sério, foi demasiado penoso. Nunca é boa política metermo-nos com cretinos se não soubermos estar à altura do desaforo. Mas não sei se pode chamar cretino ao chef. Ou é chefe? Adiante.

A seguir (ou antes, já não recordo cronologia exacta) foi a Ana Gomes e a rábula das vacinas, farmacêuticas, reservas, empresas, amigos e afins. Já não é a primeira vez que o penso, digo e escrevo, como se também isso valesse de muito: gente com responsabilidade política – pelo menos essa – devia ser proibida de ter contas em redes sociais. Principalmente no Twitter. Aquilo deve ter lá qualquer coisa que deixa os utilizadores em modo embaciado, ou assim. Há quem diga que o problema não é o meio, virtual ou não virtual; um imbecil é um imbecil é um imbecil, coisa que Ana Gomes não é, e a virtualidade da outra coisa não tem nada que ver com a (des)virtualidade do carácter. Pois, talvez seja…Também não acho que seja a ocasião a fazer o ladrão, mas é possível que o ladrão nunca chegasse a sair do esgoto se a ocasião não se lhe apresentasse descaradamente a cada tremeluzir de consciência.

Depois, foi outro Rodrigues dos Santos a levantar poeira. Não vi a entrevista. Contaram-me, e fui espreitar o pedaço da polémica. O problema deste Rodrigues dos Santos, o José, já não é não haver livros que ele não goste de ler e, portanto, tenha decidido escrever uns de que goste mais. É ter-se intoxicado de si mesmo, de vaidade em causa e cousa própria. Acontece aos melhores e ele acha-se dois melhores: um no jornalismo e outro na escrita. Dois amores que amalgamou de forma brilhante numa imbatível fórmula de sucesso, mesmo que já não haja grande segredo quanto aos ingredientes da dita. É como a Coca-Cola: 90% de água ou mais e a ameaça de êxtase sobre as papilas gustativas de outros 90% da população mundial, ou lá o que é, que não fui confirmar. E não pertenço a essa estatística, seja ela qual for, porque abomino o sabor daquilo, em qualquer circunstância e/ou ocasião, embora não possa dizer exactamente o mesmo dos livros de José Rodrigues dos Santos: li alguns e gostei. Sacrilégio. Redimo-me desprezando-o, de algum tempo a esta parte, como jornalista. Também há quem me diga que o contrário seria mais inteligente. Mas a maioria desses bebe coca-cola. Além disso, quantos escritores – péssimos que sejam – são capazes de escrever àquele ritmo? Claro que há uma certa batota: misturar factos com ficção fingindo, com ou sem intenção, um conhecimento (sobre alguns temas) que, na verdade, é bastante mais modesto, o que pode baralhar os mais inocentes. Isto tudo para dizer que, sim, é, no mínimo, idiota conseguir olhar humanitariamente para aquele “e porque não com gás?”, mas, talvez o objectivo do baile tenha sido, mais uma vez, cumprido.

E, no meio de tanto ruído, ouviu-se, finalmente, o grito de horror, entre o nojo, a indecência, e a vergonha. Os contornos do dantesco episódio que culminou com o bárbaro assassínio de Ihor Homeniuk às mãos de uns rufias sebentos e cobardes, em representação do Estado Português – de todos nós, portanto – deixa uma mancha difícil de carregar. Quanto mais se atenta nos detalhes macabros, mais insuportável é olhar para Marcelo, Costa e Cabrita, ouvi-los nas suas explicações patéticas, retorcidas, totalmente desprovidas de decência. Uns fantoches. Uns fantoches, todos, da esquerda à direita. Nunca tive tanto desprezo pela nossa classe política. O silêncio ensurdecedor, cúmplice, pelo menos, com a indiferença que mereceu a descoberta da tragédia, deu, agora, lugar a um miserável discurso que tresanda à mediocridade engalanada desta classe de “servidores públicos” que pouco servem, afinal, apesar da empoeirada pompa e circunstância que gostam de esbanjar. E, Eduardo Cabrita, mesmo tresandando a podre, é bem capaz de se aguentar no cesto do Governo, ao colo do amigo Costa. Há quem não se incomode em servir de estandarte mesmo das causas mais abjectas. Deve ser o caso. O outro, é a terrível desconfiança de que o terror a que Ihor foi sujeito não seja um acto isolado, mas uma prática tão comum quanto ilegal, hedionda, cujo desfecho, mais porrada menos porrada, acabaria como acabou. É quase inevitável, quando um ou mais rufias sem escrúpulos gozam do poder de intimidar pela força bruta aliado à sensação de impunidade que vai crescendo e escalando até ser demasiado tarde para voltar atrás.

Agora, é um ror de gente a apontar dedos – porque eu disse e vós não dissestes, porque eu escrevi e vós não escrevestes, porque eu me indignei a tempo e vós indignastes-vos a reboque de modas e redes e obediências saloiasE, claro, a comparação inevitável com o alvoroço que provocou a morte de Floyd nos EUA, como se – folclores à parte e da parte dos histéricos habituais, que fique claro – não fosse entendível (sei bem que a palavra é horrível, neste contexto) ainda que não desculpável, que uma morte a que se assiste quase em directo, pelo mundo inteiro, pudesse causar mais comoção. No imediato. Pelo poder impactante da imagem. Mesmo que a violência dessa morte não tenha comparação com a violência da tortura e morte de Ihor Homeniuk. Supondo que a morte seja comparável, dentro das circunstâncias arrepiantes em que ocorreram ambas. Com excepção das jornalistas que não largaram este crime medonho, não há muito mais quem possa encher-se de brios (como se fosse essa a questão) e atirar pedras.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Ihor Homeniuk. Tudo nesta história me causa asco. E vergonha.

"Esta semana, ficámos a saber que foram instalados, nos quartos do EECIT do Aeroporto de Lisboa, botões de pânico. A sua ativação fica registada, assim como o motivo. O alarme soa na portaria, onde estão inspetores do SEF e seguranças. Ou é uma confissão de incapacidade de impor o respeito pelos direitos humanos em instalações do Estado, ou uma inutilidade. Se fosse para proteger alguém, o botão não evitaria o que aconteceu a Ihor Homeniuk. Porque a cumplicidade de muitos inspetores demonstra que não foram uns insubordinados a ir longe demais. Porque ele não foi espancado no seu quarto, mas numa sala sem câmaras (que obviamente não teria botão algum). Porque, algemado, não é fácil pressionar num botão."

Daniel Oliveira, EXPRESSO


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

"The week in wildlife", The Guardian

 EPA

Do fundo do tempo

O homem do bazar pergunta-me se falo árabe. É um daqueles velhos sem idade, apesar das rugas do tempo marcadas no rosto moreno.

Não falo. Conheço meia dúzia de expressões curtas, de cortesia, que aprendi a pronunciar irrepreensivelmente e que, naquela fracção ínfima de tempo que dura um encontro casual, criam a brevíssima ilusão de que posso manter a conversa nessa cacofonia de sílabas. Não posso. Um dos arrependimentos que guardo desse tempo, é o de nunca me ter decidido por aprender a língua. A estranheza dos sons – em forte contraste com a grafia galante – afastaram-me da vontade de saber falá-la e, estupidamente, menosprezei o privilégio de aprender com a gente, todos os dias, na rua, nas compras, no banco, nas filas para pagar serviços, quando para pagar serviços não havia outra forma a não ser fazendo filas; separadas por género, no caso. Mas, o som arranhado, estalado, uma espécie de ralho permanente até nas palavras que falam de amor, desencantou-me irremediavelmente. Fui bastante idiota. Talvez venha a redimir-me um dia.

Numa das outras línguas que por ali se falam, confesso ao homem o meu desalento, o difícil que é aprender árabe. Ele sorri-me um sorriso cheio, generoso e limpo, e confirma: o árabe pode ser bastante difícil de aprender, para um estrangeiro.

 

Da rua chegam outros sons. O som timbrado a pequenas marteladas que os artesãos arrancam às peças de metal disformes, de onde hão-de sair belas peças de latão e cobre: facas, caçarolas, espadas decorativas, vasos, candeeiros de parede em variadas formas geométricas, colossais, em tons baços ou brilhantes, magníficas todas elas.

Só há homens a bater a chapa, sentados no chão ou em pequenos bancos de madeira trôpegos, nas bordas dos passeios, nos degraus das lojas atulhadas de tralha; como a língua, um outro aparente caos no meio do qual apenas eles se entendem. Uns vestem trajes típicos e usam até o tradicional tarbush. Outros vestem ocidentalmente, jeans e malhas correntes ou t-shirts e bonés de pala larga. Alguns traçam circunferências de largo diâmetro, com o auxílio de compassos de ferro, toscos mas precisos, razoavelmente, que erguem à altura do ombro, desde o colo onde deixam pousar as lâminas de metal. Perco-me por uma peça daquelas. Hei-de regateá-la, como convém, mais logo, ao fim do dia, sabendo que pagarei sempre mais do qualquer um dos locais, mas que isso também faz parte do jogo. Desde que não nos pareça indecoroso, para nenhuma das partes, é esse o preço justo do negócio.

 

No bazar, há um pequeno terraço sobranceiro à rua, onde nos podemos sentar e tomar o famoso chá de hortelã (e menta, às vezes) cujo cheiro insuportavelmente doce me deixa sempre uma sensação de enjoo. Nunca fui apreciadora de chá. Amargo e preto, muito raramente. Prefiro o café, mesmo que haja poucos lugares nos mundos que eu conheço onde se possa tomar o café como eu gosto; como o nosso.

Sento-me num dos bancos corridos, de almofadado gasto, debruçada sobre a rua. As batidas metálicas vibram, frenéticas, num compasso sem maestro, embalando os passos dos que passam, o ar extasiado do bairro num voluptuoso festim de fim de tarde. É quase uma trégua depois das tinturarias, do labor desconcertante dos curtidores, do seu odor lancinante, da azáfama dos seus homens e crianças (rapazes, todos) que mergulham até à anca, empurrando com as pernas as peles de vaca, cabra, carneiro, para dentro dos tanques quase cheios, ora brancos-cal de mistelas liquefeitas à base de excremento de pombo, ora vibrantes de cores, vorazes como a ancestral sina dos seus artesãos.  

 

A rapariga traz-me o café. Pergunta-me se quero provar aquele doce típico, de farinha de trigo e amêndoa, aromatizado com açafrão e anis estrelado, e mais umas quantas coisas a que não presto a atenção devida. Acabaram de chegar, os doces, e ainda estão mornos. Agradeço, mas recuso delicadamente. Fico a vê-la afastar-se, belíssima na sua túnica larga e longa, no mesmo laranja pálido do açafrão da terra.

Em baixo, na rua, as sombras mudam de pouso e calam-se alguns acordes. Devo ir ao encontro dos outros. E quero um daqueles candeeiros de parede. Dourado, estampado num círculo quase perfeito, de malha rendada e fina, como num delicado crochet

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O maravilhoso mundo do marketing...ou não

Parece que o mais recente top de vendas da Amazon na categoria "Ciência Política" é um livro sobre Matteo Salvini, escrito por um analista político que ninguém sabe bem quem é. E escrito é menos do que uma força de expressão: tirando as palavras da capa, são 110 páginas vazias, com excepção de um traçado de linhas paralelas, onde cada um poderá escrever o que lhe apetecer. Eventualmente. Dizem que, quem compra, sabe ao que vai e que o best-seller já ultrapassou em vendas "Uma Terra Prometida", o livro de memórias presidenciais de Barak Obama. Vá lá saber-se porquê, lembrei-me daquele café em Tel Aviv que servia nada, literalmente, tudo com a devida elegância, evidentemente, porque o que conta é a experiência, ou lá o que é. 

Fico sempre pasmada com o que somos capazes de fazer com o cérebro mais avançado que a vida tal como a conhecemos foi capaz de criar. O que esta malta se deve divertir... 

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

"Estar-se sem livros é já ter morrido."

Eduardo Lourenço

segunda-feira, 30 de novembro de 2020


"De tudo o que é escrito, amo apenas aquilo que alguém escreveu com o seu próprio sangue."

Friedrich Nietzsche


Dessas palavras que se escrevem a sangue, escolho cuidadosamente as que parecem falar-me ao ouvido; saber quem sou. Ouço-as uma e outra vez, sabendo bem que me deixo confundir. Se não fosse o ar frio da manhã, que aquieta, por momentos, o meu mundo, o próprio vento me traria pedaços das histórias que guardo em segredo.

domingo, 29 de novembro de 2020

Qualquer coisa sobre a (ir)racionalidade dos afectos

Há muito tempo (creio que desde que tenho consciência da minha finitude) que me decidi pela vontade de, quando morrer, ser cremada. A ideia do meu corpo desabitado fechado numa coisa a que se dá o nome de caixão, onde, depois, desceria às entranhas da terra, entre arremessos de flores, para aí apodrecer entre vermes, em repouso eterno, causa-me mais repulsa do que a certeza de que, um dia – lá longe, muito, muito longe, espero – a minha vida, como todas as outras vidas, chegará a seu termo. Como não acredito na reencarnação, não preciso de preservar nada mais para além da certeza de ter valido a pena. O tempo que por cá passar. Também não tenho nenhum desejo especial para o que sobrar de mim. Desde que não me lancem ao mar: prefiro continuar a admirá-lo de longe, se se der o caso não provado ainda de restar um leve vestígio de memória entre os átomos de que me faço.

Morrer anonimamente há-de ser uma bênção. Talvez mais do que viver anonimamente. Ouvir gente desconhecida falar dos nossos – mesmo que os nossos se tenham lançado por vontade própria nos braços mercenários do mundo, ou o mundo os tenha arrancado a ferros à mudez de uma existência livre de lendas em vida e em morte – é uma insolência. Mesmo quando esse falar se faz de admiração exaltada, incontida. Os tributos que se devem (devem?) aos que morrem publicamente, vertidos em elogios fúnebres que se multiplicam abruptamente em editoriais, artigos de opinião, entrevistas curtas, posts nas redes sociais e toda uma parafernália acrescida de revisitações das vidas que se apagam violentamente, deixam muitas vezes a impressão (injusta, talvez) de que só a morte é capaz de destapar as virtudes encobertas até aí. Há um certo pudor em falar mal dos mortos e talvez seja esse pudor a permitir o exagero da vénia.

Os últimos dias encheram-se de homenagens histéricas a Diego Maradona. Histéricas, não necessariamente no sentido detestável do termo (mas também). Eu – que não gosto especialmente do futebol jogado e abomino a veneração pornográfica que se oferece, quer ao espectáculo em si, quer aos seus protagonistas – posso perceber que haja quem lamente destemperadamente a morte de alguém que, pelo que me dizem, foi o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Mais do que um génio, um deus. E, quando se dedica algum tempo a admirar a Física em acção, na sua transmutação profana em golos e passes de bola arrancados às leis de Newton, é fácil deixarmo-nos enamorar pela magia dos equilíbrios escondidos nos misteriosos centros de gravidade. De que Maradona saberia muito pouco, aliás. Da parte teórica e aborrecida da coisa, entenda-se. É como a geometria por detrás de uma bela partida de bilhar, com a diferença de que ninguém enlouquece pelo melhor jogador disso do mundo. O futebol tem um lugar especial e cativo no delírio (anti-)desportivo colectivo, talvez por permitir que durante 90 minutos, pelo menos, os adeptos se portem com a indecência que o desporto tolera, com a complacência irresponsável de muitos. Para alimentar a ilusão – e o arrebatamento –, a arte não só não está ao alcance de todos, mesmo que se perceba muito da Ciência que comanda o jogo, como é (quase) possível acreditar que, por um breve momento, é a própria Ciência que se verga a esse génio endeusado. Que eu não honro, no que toca a "futebóis", não é ao que venho. Aflige-me sempre o culto de massas. Hiperbólico em quase tudo. A questão é outra. O Homem é bastante imperfeito (e aquele homem, em particular) e há umas imperfeições mais desculpáveis do que outras. Até onde pode chegar a admiração por alguém que, em algum momento da sua vida, ou numa vida inteira desses maus momentos, se portou como um imoral? Várias vozes se levantaram contra o exemplo de Maradona. Como assim, venerar um homem cheio de tantos pecados, mesmo que esse homem seja “el pibe de oro”, amado até pelo Papa Francisco (sendo que o Papa tem, pelo menos, a desculpa dos santos, que mandam amar o próximo como a si mesmo)? Um artigo publicado no The Guardian no passado dia 27 falava da facilidade com que se esqueceu a violência contra as mulheres, nas homenagens a Maradona. Como já antes se a havia esquecido, nos tributos a Sean Connery, que, ao contrário do génio da bola, admirei bastante em vida. Como continuar a ouvir as músicas de Michael Jackson depois de saber das denúncias dos abusos sobre crianças; depois de ver Leaving Neverland? Como ler Pablo Neruda, mesmo morto, depois de conhecido o relato, na primeira pessoa, da violação de uma mulher, no tempo da colónia britânica do Ceilão (e terá sido "apenas" essa)? Como é possível erguermos heróis sobre os escombros dos seus crimes?  Quantos anos precisam de passar para nos ser permitido perdoá-los? Pois, não sei bem. Não sei nada. Continuo a ler Neruda e a ouvir Michael Jackson, entre outros ultrajes; de que não constam, de facto, a devoção ao futebol, mas isso não me torna menos infame. Não há como branquear o lodo dos monstros que amamos e não partilho da tentativa de racionalização que alguns ensaiam sobre quem podemos ou não podemos homenagear, como se uma vítima fosse mais ou menos vítima de acordo com o estatuto do abusador. Nem acato bem a ideia de que o que é importante e é preciso é separar a magnificência da obra da miséria do autor: isso é só o que nos dizemos para nos redimirmos. Acho apenas que devemos aceitar a nossa parte da culpa. E que até os mais puros têm o seu lado bafiento, tenebroso. Mesmo quando nos querem convencer do contrário.


E desviei-me de quase tudo o que queria dizer quando comecei isto. Vinha principalmente falar de afectos, desses, capazes de nos desordenar a razão, se nos faltarem, e acabei na irracionalidade das paixões por que nos perdemos. Não é bem a mesma coisa. Tudo porque tropecei na notícia sobre o novo livro de António Damásio, enquanto procurava as minhas fotografias do belíssimo cemitério Mirogoj. Mais ou menos. Percebo que faço muito pouco sentido.





sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Fui apanhar uma corrente de ar.



Orçamento de(t)Estado

Diz-me como te orçamentas, dir-te-ei quanto duras.

De orçamento em orçamento até ao estertor (ou estupor) final.

Atrás de um queijo limiano virá quem da negociata do orçamento pior fará.


Podia continuar, mas acho que é mais ou menos isto. Entretanto, plagiei outro título, mas, desta vez, é meu, pelo que a culpa será menor. Espero.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Sobre coisas realmente abjectas

Segundo a organização internacional Save the Chlidren, nos últimos dez anos “a guerra matou ou mutilou 93 236 crianças”. Li esta notícia há dois dias, pelo que, hoje, muito provavelmente, aquele número já estará desactualizado. 

O sofrimento das crianças que (sobre)vivem em palcos de guerra – guerra mesmo guerra – é tão terrível, tão obsceno, que nunca seremos (nós, os ocidentais privilegiados; mesmo os “remediados”) capazes de imaginar o inferno que se vive nesses países. O esquecimento que dedicamos à miséria dessa gente desfeita pela acaso de ter nascido no lado errado do mundo deve ser uma forma de preservarmos a nossa sanidade mental. De outro modo, seríamos incapazes de levar uma vida normal, para lá do empecilho das máscaras e do abuso do Estado sobre o controlo da hora a que nos devemos recolher. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, mas, para uma insuportavelmente extensa parte da população mundial, essa igualdade e liberdade outorgada em declarações e decretos morre no próprio acto de nascer.

No mesmo dia e no mesmo jornal, li sobre as mais de 33 mil pessoas que fugiram para o Sudão em menos de três semanas: são etíopes que tentam, assim, escapar ao conflito que opõe o Governo de Abiy Ahmed à “Frente de Libertação do Povo Tigré”. O acordo de paz entre a Etiópia e a Eritreia provocou descontentamento entre rebeldes e, aparentemente, o adiamento das eleições legislativas e presidenciais motivado pela gestão da crise pandémica da covid-19 fez, ou desfez, tudo o resto. Podia ser só uma ironia.


E, por cá, o ano de 2020 já viu morrer 30 mulheres em contexto de violência doméstica. Até há uns dias, que o malfadado ano ainda não terminou. Embora, este ano, no que toca a este drama, não seja muito diferente de outros anos. 

Em alguns casos (invariavelmente, ano após ano), houve crianças a assistir aos crimes. Pergunto-me sempre – e, obviamente, não sou a única – por que motivo serão sempre as mulheres e as crianças as obrigadas a fugir e a viver escondidas dos seus agressores, quando deveriam ser estes a permanecer em casas, ou celas, de isolamento, privados da sua rotina de espancar porque sim, abusar porque o dia correu mal, matar porque tropeçaram noutra qualquer frustração que o mau génio alimenta. Há, no entanto, outro número assustador: o de jovens que acham "normal" a existência de violência no namoro. Controlar, proibir, enciumar-se, querer violentamente são, para muitos – ou, mais exactamente e desgraçadamente, para muitas – sinónimos de amar muito e amar bem. 


Ainda sobre a violência extrema sobre o outro – que, de tão banal e normal, deixou de chocar fora da orgia persecutória das redes sociais –, soube-se que a directora do SEF admitiu que Ihor Homenyuk foi torturado, evidentemente, mas achou por bem manter-se em silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto lhe foi possível e não considera demitir-se. 

Os contornos deste assassínio continuam a provocar-me náuseas. Pela morte e tortura de um homem, gratuitamente, às mãos de uns cobardes nojentos e por ser evidente que só se pode ser tão levianamente criminoso no exercício de um cargo de poder quando se goza de uma imensa sensação de impunidade dentro da instituição a que se pertence. Há tantas pontas soltas nesta história de horror, tanta indecência, que se tornaria insuportável num país que se quer civilizado. Mas, não parece ser o caso. 


E, não há muitos dias, a SIC Notícias exibia uma reportagem sobre suspeitas de negligência num lar ilegal na zona de Palmela. Negligência é um brutal eufemismo para o que ali se viu e ouviu. Não sei bem se a SIC deveria ter mostrado aquelas imagens ou não. Há sempre uma dúvida, quando a situação é tão grave que roça o absurdo. Às vezes desejo que exista isso a que alguns chamam Inferno. O bíblico. E que seja realmente eterno.

 

Olharmo-nos nos olhos sem desculpa. Para o bem e para o mal. Deve ser a única coisa boa que resulta de usar máscara grande parte dos nossos novos dias.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Entre Livros e Estórias

Nunca vivi longe do mar. Não sei se seria capaz de viver longe do mar. É uma intransigência (não é bem) um pouco desentoada, porque o uso apenas como abrigo e repouso. Para o ver e o ouvir nas histórias que conta. Como a daquele casal (do que parece ter-se convencionado chamar “de idade”) sentado em frente àquela imensidão de azul, cada um na sua cadeira portátil, de azul petróleo, a dela, de riscas coloridas como um arco-íris, a dele, colocadas lado a lado entre as pedras das arribas que o Sol inunda generosamente antes da hora do recolher. Conversam serenamente, com o mar como uma tela de fundo, os dois de jeans e pulôver de malha, encostados à altura do ombro, sem pressa, perdidos em si mesmos e, imagino, no balanço das ondas que o mar agita, também num compasso próprio e alheio a angústias. Não sei se já o faziam antes desta peste. A conversa íntima, de frente para o mar, entre as pedras e as ervas rasteiras, no conforto das cadeiras trazidas de casa. Nunca os vi antes, e passo naquela estrada tantas vezes que já lhes perdi a conta. Passo, fico, pasmo e, por vezes, também converso. Talvez o faça mais agora, sim. Talvez o façam eles mais agora, também.

Entre os que passeiam ao longo da linha de mar, não há ninguém de rosto enfiado no écran do telemóvel. Bem sei que, normalmente, quem procura encontrar-se com o mundo real – eventualmente, procurando refúgio em passeios ao ar livre, enchendo de vida a vida que se agarra com desejo – é menos tentado por distracções daquele género. Mas, ainda assim, creio que sempre vi algum prevaricador fortuito. Não é, agora, o caso. Há uma comunhão de vontades, um quadro perfeito, que dispensa devaneios estéreis.

 

Na tranquilidade aparente do tempo, aproveito para ajustar a leitura. Não costumo deixar um livro antes de o terminar. Mesmo quando me desiludo às primeiras páginas, o que nem era o caso daquele que tinha em mãos. Mas, estava desatenta e, a propósito de listas de livros que revisito e actualizo com regularidade, (re)apareceu-me o Cosmos de Carl Sagan. Já não sei bem quando o li pela primeira vez. Sei que foi há muitos anos e, apesar de o considerar um dos mais belos livros que já li – de Ciência, mas não só – apercebi-me de que nunca tinha lá voltado. Para ler outra vez, de uma ponta à outra, sem batota, como se fosse a primeira vez. Na verdade, não é difícil. Não é nada difícil. E sorrio sempre quando recordo a curiosidade teimosa de Eratóstenes. Aquela curiosidade astuta, de desconfiança sadia, não a dúvida torpe dos livres pantomineiros, enlameados no embuste novo-chique do finjo que penso, logo, se assim não penso, nada disso existe.


“Um livro é feito a partir de uma árvore. É um conjunto de partes planas e flexíveis (ainda chamadas “folhas”) impressas de rabiscos tingidos a negro. Um olhar rápido e ouvimos a voz de outra pessoa – talvez de alguém morto há milhares de anos. Através dos milénios, o autor fala, clara e silenciosamente, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita talvez seja a maior das invenções humanas, unindo pessoas, cidadãos de distantes épocas, que nunca se conheceram. Os livros rompem as amarras do tempo, provam que o Homem é capaz de realizar magia.”

Carl Sagan


Depois, há a ameaça de segredos revelados nas palavras que escrevemos. Que partes de nós entregámos? Quantas te bastam? Quantas me perdem?

sábado, 21 de novembro de 2020

Caminhos Cruzados

 

O cego vai batendo com a bengala nas pedras que dão forma à calçada bordada no passeio estreito e iluminado pelo radioso sol primaveril. Parece um pouco aflito, confundido, procurando algo que não se acha ali, mas devia, e, nessa ligeira angústia, roda sobre si próprio, ora à esquerda, ora à direita, sem nunca se distanciar demasiado daquele ruído metálico que a calçada devolve.

Do outro lado da rua, um homem atenta no desassossego urgente do cego. Encaminha-se para ele.

    -Precisa de alguma coisa?

   -Estou à procura da lavandaria, mas, parece-me que não é por aqui… - a bengala batucando, ágil e certeira, no chão e no rebordo do passeio, soltando notas, compondo sílabas desencontradas.

    -Há aqui uma lavandaria, um pouco mais à frente, eu levo-o até lá – e pega-lhe no braço, suavemente, orientando-o no caminho adiante.

Não chegam a meia-dúzia de passos. O cego sobressalta-se, olhando em frente, atento ao diálogo que arranca do chão a golpes firmes, experimentados. Estaca, teimoso, no passeio, “não, não é por aqui”, enquanto o homem insiste, “está logo ali, a lavandaria, já lhe vejo a porta de entrada”. Mas, o cego não vacila, não duvida, “não é por aqui”, e logo volta atrás, arredio e decidido.

  -Ó amigo, tenha calma. Eu levo-o aonde o senhor precisar de ir. Diga-me, exactamente, que lavandaria é essa, porque, aqui, não conheço outra além desta…

E o cego explicou, apaziguado, confiando no seu instinto e na bondade do homem.

    -Eu saio do autocarro, viro à direita, caminho uns poucos de metros à minha frente, viro novamente à direita e encontro logo a lavandaria…há dois degraus à entrada…

Então, os dois homens voltam atrás, juntos. Retomam o caminho a partir da paragem do autocarro e vão seguindo a memória do cego. A bengala vai à frente, matraqueando, marcando o passo, astuta e ligeira, materializando acordes que apenas o cego pode ler e decifrar.

   -Ah, parece-me que, agora, sim, já vou no caminho certo – alegra-se o cego, estugando o passo. O homem segue-o, expedito, suspendo daquela melodia a que não é totalmente surdo, mas que nunca chega a compreender.

Só mais uns passos, à esquina direita da rua, e, lá está ela, “sim, agora vou bem!”, a lavandaria com os seus dois degraus à entrada. De fora, não se percebe que há uma lavandaria no interior, porque a loja tem várias secções. O cego conhece-a bem, o homem nunca antes havia reparado nela.

    -Obrigado!

  -Ora essa…boa tarde! – e o homem volta à sua rotina, uma admiração alegre e prazenteira estampada no rosto.


(Numa normal Primavera passada)

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Admirável Mundo Novo

Plagiei o título (mais ou menos). Não sei se se pode. E nunca li o livro (mais exactamente, “ainda não"), o que é, além de uma vergonha, um risco, porque, nas próximas linhas, posso vir a plagiar mais qualquer coisa, desta vez de forma não intencional e com menos competência ainda.

Adiante.

Dizem-me que o Miguel Sousa Tavares fez uma não-entrevista ao André Ventura, mas não tive paciência para ver. Há muito tempo que gosto mais de o ler do que de o ouvir. Ao primeiro. O segundo é um charlatão vaidoso e oportunista, defensor do direito de dizer uma coisa e o seu contrário sempre que isso sirva os seus intentos (pois, se calhar, não é modelo único) e que só ainda não atingiu o estatuto de estrela do semi-homólogo americano porque ninguém leva muito a sério um durão (assim mesmo, em modo de adjectivo, nada de confusões) que tem como animal de companhia uma coelhinha chamada Acácia, ou lá o é. Mas Portugal é um prodígio para lá dos fenómenos do Entroncamento e dos entendimentos nos Açores e, como tal, André Ventura vai ganhando palco. Um imenso palco. Ansiávamos pelo nosso “fascista” popularucho com a mesma avidez com que esperámos pelo nosso primeiro caso de Covid-19. Aí o temos, cheio de “eu faço”, a não ser que não faça, “eu aconteço”, a não ser que não aconteça, eu ameaço e nem preciso de esbracejar demasiado porque a desorientação que se instalou (“tem algum amigo preto”; a sério?!), da comunicação social à classe política, aquém e além mar, serve todos os propósitos destes santos de pau oco que a Democracia também alimenta, porque a Liberdade é a bela e é o monstro do nosso descontentamento.  Não sei há quantos dias anda o André Ventura nas bocas do nosso mundo, mas, ultimamente, a cada vez que o vejo – de relance, numa ameaça de flash noticioso –, parece-me mais jovial, mais solto, mais de bem com a vida, e percebe-se porquê. Percebe-se que ainda não se percebe bem qual a melhor maneira de lidar com aquilo, como não se percebeu  ainda qual a melhor maneira de lidar com ex-actual-ou-actual-ex-presidente dos EUA, que continua na sua senda negacionista, mimada e birrenta, com o mundo suspenso dos seus humores e das suas partidas de golfe: que outro regime político seria capaz de parir tamanho espectáculo? Há as ditaduras, sim, mas começam a ser bastante aborrecidas. Nada como deixar o povo escolher. Desde que sejamos nós a escolher o povo que deve poder escolher. Sem qualquer confusão, portanto.

 

Entre outras venturas e desventuras, há boas (aparentemente) notícias sobre os avanços relativamente à milagrosa vacina que vai tornar o nosso mundo normal outra vez, seja lá o que isso for. Veremos se este normal que não se pode dizer novo dará lugar a uma realidade que, em não podendo vir a chamar-se de velha, se aproxime, pelo menos, de algo suportável. Também ouvi qualquer coisa sobre a necessidade de renovar o estado de emergência, sucessivamente, tantas vezes quantas as que forem necessárias, até “esmagar” a danada da curva que teima em desafiar a nossa capacidade de resistência. Menos mal que aguentamos, não é?, como já nos garantiram em ocasião anterior. Entretanto, quer-se impedir que profissionais de saúde abandonem o SNS rumo aos hospitais privados, que o tempo é de pandemia e de colapso iminente dos serviços, enquanto os colégios privados perdem professores para as escolas públicas, porque os professores a mais que Portugal tem há anos, afinal não chegam para garantir o anormal funcionamento das aulas em tempo de covid. E sei bem que tudo isto merece maior reflexão e cuidado, mas ando mesmo, mesmo com pouca paciência. Como toda a gente, provavelmente. Percebo, aliás, que não tenho sido sequer capaz de ler o livro que tenho em mãos. Vou virando páginas sem dar acordo do que se passa dentro, as letras como uns gatafunhos medonhos tingidos de um negro a que não acho graça. Falta-me a tranquilidade necessária para pôr ordem nas linhas, sorvê-las com o mesmo prazer com que tomo o café acabado de fazer, numa chávena de louça, amargo e forte, puro e intenso como algumas das melhores recordações. Suspendo-o, por isso. Ao livro, já que o mesmo não posso fazer aos dias, a estes dias, e aguardo que a tempestade esmoreça e se desfaça num vento inquieto capaz de mordiscar as folhas sem as rasgar e de apressar o mar sem o dilacerar. 

Também soube que a Hungria e a Polónia vetaram o Orçamento Comunitário e o Fundo de Recuperação, a "bazuca" com que a União Europeia pretende ajudar os Estados-membros a minimizar os efeitos devastadores da pandemia sobre a economia dos diferentes países. Victor Órban e Mateusz Morawiecki não querem ver o acesso aos fundos europeus condicionado a coisas miúdas, como o respeito pelas regras do Estado de direito. Não há-de ser grave. Não há regra que não tenha a sua excepção nem direito que não possa ser beliscado. Tudo vai acabar bem. Mas, enquanto não chegam melhores ventos, aproveito o sol de Outono, que prefiro ao de Verão (como prefiro o de Inverno) porque aquece sem estalar e deixa na pele uma carícia suave que me reconcilia com a obrigação de usar máscara, de dosear os afectos, de evitar abraços, de fingir que os dias se aguentam melhor se afogarmos a saudade numa manhã como a de hoje.

domingo, 15 de novembro de 2020

 

Entro aí sempre cheia de cautelas e saio sempre deixando-me pedaços. Há uma certa arrogância em pensar que podemos imaginar o tamanho da dor do outro; a dimensão do seu inferno. Na verdade, não sabemos nada. Excepto que há alturas em que o silêncio parece não chegar e, no entanto, as palavras parecem demasiado despidas. Quase ofensivas na sua simplicidade. Mas ainda acredito que há um tempo para sarar. Apesar da estridência obscena dos novos dias. 

domingo, 8 de novembro de 2020

Destes dias


Não conheço ninguém que viva num lar. Mesmo que seja possível, isso de viver num lar. Dizem que há lares que são mesmo Lares. Espero nunca vir a precisar, nem para mim própria, nem para os meus mais queridos. Até à presente data, os meus dois únicos familiares com necessidade de acompanhamento permanente numa determinada fase da sua vida tiveram a possibilidade, afortunada, de ficar em casa até ao fim da agonia. Na impossibilidade de afastar as doenças, terríveis as duas, o segundo privilégio foi a agonia não se ter prolongado por tempo demasiado indecente. Há um tempo minimamente decente para aguentar uma espécie de coisa que já não é vida. Para quem resiste e para quem assiste, impotente, mesmo que faça todo o possível para fazer muito mais. E quem passa pelo horror da experiência, passa por ela de forma diferente, pelo que não há muito mais a dizer. A não ser que não tenho medo de envelhecer. Creio que nem sequer tenho um medo estapafúrdio da morte. Tenho pena de deixar de viver, e tenho medo de deixar de viver muito antes da morte chegar. Comungo da ideia de que a morte não chega exactamente com o último sopro.

Entre os mais desprotegidos dos mais desprotegidos, continuam os mais velhos, os mais doentes e os mais pobres. Prepara-se outra etapa de combate à pandemia que, temo, ameaça tornar-se num outro remendo. Mas nada disto é fácil. Inevitavelmente, com o SNS à beira do colapso, o Governo decretou o recolhimento obrigatório em alguns dos concelhos com maior número de infectados. Parece que andamos a portar-nos muito mal. Talvez seja, não sei. Sei que andamos a usar as máscaras mal desde o início. Já não sei se isso chega para explicar tudo. Tenho tido – como todos – muita dificuldade em equilibrar o deve e o haver (se posso dizer assim) da nossa gestão desta pandemia que o final de ano não vai levar, afinal. Nossa, enquanto país, nossa, individualmente. Nesta fase, imagino, serão poucos os que ainda não conhecem alguém doente. No mínimo. Talvez sejam mais os que ainda não perderam ninguém para a doença. Para outras doenças, atiradas para um canto por esta. Cada um de nós terá tido a sua dose. Mais uma vez, pessoal e intransmissível. Acresce que também não vejo os meus pais há muito mais tempo do que queria – do que quereríamos e do que nos devemos – e debato-me entre a vontade de os abraçar e o medo de poder contaminá-los. Fala-se muito sobre a liberdade que os nossos pais e avós devem ter, impreterivelmente, de decidir se querem ou não abdicar dos seus afectos em favor de um imperativo maior que é viver sanitariamente o tempo que têm pela frente. Eu concordo com isso, mas só em parte. Ou melhor: não é tanto uma questão de concordar ou não concordar, é o que fazer com a culpa que fica depois, caso haja esse depois que ninguém deseja; que eu, pessoalmente, não quero sequer equacionar. Será egoísmo meu.

O celebrado milagre português – que, afinal, não foi bem – foi forjado sobre os ombros dos profissionais de saúde dedicados e com enorme espírito de sacrifício; parece-me bastante certo. Além, claro, da nossa vontade de ficar em casa; motivada pelo medo, sim. Maioritariamente, talvez. Do mesmo modo que, agora, por exemplo, muitas escolas se têm aguentado à custa da dedicação e espírito de sacrifício de professores e funcionários. Claro que não de todos, evidentemente, não há nenhuma classe profissional livre da sua nodoazinha de marca. Mas dos suficientes para o caos não ser maior ainda. Há funcionários a reduzir, por iniciativa própria, as suas pausas para almoço, para conseguirem (outro exemplo) limpar todas as salas entre horários de manhã e tarde, quando rodam as turmas. E professores a duplicar parte das tarefas, porque, aparentemente, em alguns concelhos toda a turma fica em casa quando há um ou mais alunos infectados e, noutros concelhos, só ficam em casa os alunos infectados: a restante turma continua com aulas presenciais e não há dois professores diferentes para o efeito. Entretanto, o Governo continua a falar nos computadores que chegam aos alunos mais carenciados, e há escolas aonde não chegaram, ainda, nem computadores nem professores. Evidentemente, um sistema de colocação de professores obsoleto e apodrecido pesa nas contas cada vez mais inconciliáveis.

E, sim, nos últimos dias andei obcecada com as eleições americanas. É-me indiferente (talvez "quase indiferente" seja mais honesto) o rumo da política na América, assunto sobre o qual percebo pouco mais que nada. Para mim, a questão não era essa. Há maldade e maldade, escuridão e escuridão, trevas para além das linhas que nos arrancam pedaços, ou da sombra negra das nuvens antes da tempestade perfeita. Donald Trump é maldade na sua forma nauseabunda. Ventura é um menino de fralda. É esse o grande legado de Trump. Não só por cá. Veremos por quanto tempo. Fico aliviada com a vitória de Biden (mesmo que Trump e a sua corja esperneiem e possam, ainda, ressuscitar), não porque Biden seja uma competentíssima promessa, mas porque tenho mais facilidade em explicá-lo a ele à criança que pus no mundo e que vou tantando educar. Não tem nada a ver com ser boazinha. Também já fui capaz de o ensinar a não bater em ninguém por sua iniciativa, aconselhando-o, contudo, a que se alguém lhe batesse primeiro, que pensasse duas vezes entre ir, ou vir, fazer queixinhas, ou defender-se também pela força física: da primeira vez, pode resultar bem em ambos os casos, mas é bem possível que apenas no segundo o problema se resolva logo de vez. Sou um mãe cheia de incongruências. Mas a vida sem os nossos demónios talvez também não seja bem vida.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Só porque alguém mo lembrou...

... e fui ouvir outra vez. Pronto, tirava de lá a Sarah Palin, se calhar.

Crónica de uma morte anunciada: a da Democracia Americana.

Pelo seu presidente in-chief, ainda. Ou in-shit, já não parece grande diferença. Trump é um homem miserável. Se ainda restasse alguma dúvida, bastava tê-lo ouvido (e visto) ontem. É inacreditável como ainda há, pelo menos, setenta milhões de eleitores americanos que o escolhem. Como ainda não existe, nesta altura, uma vitória clara, expressiva, do seu opositor.

O ainda presidente dos EUA jogou a penúltima cartada para se manter, histericamente, no poder. A última,  a mais desesperada, talvez venha a ser convocar, loud and clear, mais loud and clear ainda do que o stand back and stand by  atirado em directo, os seus rapazes e raparigas para um motim armado, que o segure na sua Sala Oval. A que sequestrou com a cumplicidade vergonhosa do partido republicano. E os elogios que tenho ouvido, por cá, às suas políticas enojam-me. Há uma diferença entre não alinhar no "politicamente correcto" nem em falsos moralismos - com que, muitas vezes, conocordo - e aquilo que Trump representa. O que se diria do homem se o homem fosse uma mulher.


Espero que Joe Biden ganhe estas eleições. Espero que as instituições americanas resistam, que haja um pingo de decência que, no limite há muito ultrapassado, haja alguém capaz de bater com a porta e dizer enough is enough e que a América vá a tempo de sarar. Eu, na minha arrogância enorme de achar que há uma linha que não poderia nunca ter sido cruzada.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

De manhã, ao acordar, há uma pequena fracção de segundo em que tudo parece vazio. Um estado de semi-inconsciência, muito ténue, fugaz, em que o mundo ainda não se abateu sobre mim e, por um minúsculo instante, não há mortos, nem números, nem distâncias, nem contágios ou contagens, nem ruína iminente. Nem saudade. Não há, sequer, o canto dos pássaros, nem os gritos esganiçados das gaivotas. Nem uma ameaça de sobressalto. Apenas um nada, imenso, de quietude, imediatamente antes do alarme.  

Despido o embuste, há um mundo em ebulição. Há uma linha de calendário, um ano miserável, sôfrego, calamitoso - espantoso, simultaneamente -, que não dá tréguas. Vivemos - nós, no presente - um momento histórico. Diz-se isso, muitas vezes: um momento histórico. Mas, este, é mesmo um tempo extraordinário. Gostaria de viver o suficiente para vir a poder olhá-lo com o distanciamento que merece. Para tentar entender o que, de momento, é absolutamente insano.