O homem do bazar
pergunta-me se falo árabe. É um daqueles velhos sem idade, apesar das rugas do
tempo marcadas no rosto moreno.
Não falo. Conheço
meia dúzia de expressões curtas, de cortesia, que aprendi a pronunciar
irrepreensivelmente e que, naquela fracção ínfima de tempo que dura um encontro casual, criam a brevíssima
ilusão de que posso manter a conversa nessa cacofonia de sílabas. Não posso. Um
dos arrependimentos que guardo desse tempo, é o de nunca me ter decidido por
aprender a língua. A estranheza dos sons – em forte contraste com a grafia galante
– afastaram-me da vontade de saber falá-la e, estupidamente, menosprezei o
privilégio de aprender com a gente, todos os dias, na rua, nas compras, no
banco, nas filas para pagar serviços, quando para pagar serviços não havia outra forma a não ser fazendo filas; separadas por género, no caso. Mas, o som arranhado, estalado, uma espécie de ralho permanente até
nas palavras que falam de amor, desencantou-me irremediavelmente. Fui bastante
idiota. Talvez venha a redimir-me um dia.
Numa das outras
línguas que por ali se falam, confesso ao homem o meu desalento, o difícil que
é aprender árabe. Ele sorri-me um sorriso cheio, generoso e limpo, e confirma:
o árabe pode ser bastante difícil de aprender, para um estrangeiro.
Da rua chegam outros
sons. O som timbrado a pequenas marteladas que os artesãos arrancam às peças de
metal disformes, de onde hão-de sair belas peças de latão e cobre: facas,
caçarolas, espadas decorativas, vasos, candeeiros de parede em variadas formas
geométricas, colossais, em tons baços ou brilhantes, magníficas todas elas.
Só há homens a bater
a chapa, sentados no chão ou em pequenos bancos de madeira trôpegos, nas bordas
dos passeios, nos degraus das lojas atulhadas de tralha; como a língua, um
outro aparente caos no meio do qual apenas eles se entendem. Uns vestem trajes
típicos e usam até o tradicional tarbush. Outros vestem ocidentalmente,
jeans e malhas correntes ou t-shirts e bonés de pala larga. Alguns traçam
circunferências de largo diâmetro, com o auxílio de compassos de ferro, toscos
mas precisos, razoavelmente, que erguem à altura do ombro, desde o colo onde deixam pousar as
lâminas de metal. Perco-me por uma peça daquelas. Hei-de regateá-la, como
convém, mais logo, ao fim do dia, sabendo que pagarei sempre mais do qualquer
um dos locais, mas que isso também faz parte do jogo. Desde que não nos pareça indecoroso, para nenhuma das partes, é esse o preço justo do negócio.
No bazar, há um pequeno
terraço sobranceiro à rua, onde nos podemos sentar e tomar o famoso chá de
hortelã (e menta, às vezes) cujo cheiro insuportavelmente doce me deixa sempre
uma sensação de enjoo. Nunca fui apreciadora de chá. Amargo e preto, muito raramente. Prefiro
o café, mesmo que haja poucos lugares nos mundos que eu conheço onde se possa
tomar o café como eu gosto; como o nosso.
Sento-me num dos bancos corridos, de almofadado gasto, debruçada sobre a rua. As batidas metálicas vibram,
frenéticas, num compasso sem maestro, embalando os passos dos que passam, o ar extasiado
do bairro num voluptuoso festim de fim de tarde. É quase uma trégua depois das tinturarias,
do labor desconcertante dos curtidores, do seu odor lancinante, da azáfama dos seus
homens e crianças (rapazes, todos) que mergulham até à anca, empurrando com as
pernas as peles de vaca, cabra, carneiro, para dentro dos tanques quase cheios,
ora brancos-cal de mistelas liquefeitas à base de excremento de pombo, ora vibrantes
de cores, vorazes como a ancestral sina dos seus artesãos.
A rapariga traz-me o
café. Pergunta-me se quero provar aquele doce típico, de farinha de trigo e amêndoa,
aromatizado com açafrão e anis estrelado, e mais umas quantas coisas a que não presto a atenção devida. Acabaram de chegar, os doces, e ainda estão mornos. Agradeço,
mas recuso delicadamente. Fico a vê-la afastar-se, belíssima na sua túnica
larga e longa, no mesmo laranja pálido do açafrão da terra.
Em baixo, na rua, as sombras mudam de pouso e calam-se alguns acordes. Devo ir ao encontro dos outros. E quero um daqueles candeeiros de parede. Dourado, estampado num círculo quase perfeito, de malha rendada e fina, como num delicado crochet.