Não
gosto de espaços subterrâneos. Assalta-me uma pequena ameaça de pânico
sempre que permaneço debaixo de terra. Uma visita turística às entranhas do
subsolo – uma mina, uma gruta, as magníficas catacumbas da minha adorada Roma – ou,
simplesmente, andar de metro sob o chão da cidade, qualquer cidade e há cidades
de metros vertiginosos, deixa-me entregue à quase irracionalidade. Não deixo de
fazer nada do que ali disse, se me apetecer muito ou precisar de, mas, fazê-lo,
exige-me um esforço de concentração extenuante, o domínio absoluto do meu racional.
Se não estiver acompanhada, sou capaz de não ser capaz. Mas esforço-me por ser
capaz, e para isso finjo que posso controlar todas as variáveis humanas.
Entre demais observações em cujo rigor me deixo iludir, preciso de saber com a
maior exactidão possível quanto tempo vou ficar soterrada – acho que é bastante próximo de como aí me sinto: soterrada. Se me perder numa linha de metro – e já me perdi numa
linha de metro, espantosamente – posso precisar urgentemente de subir à
superfície e, então, eventualmente, voltar a descer. Não sei como seria capaz
de sobreviver dois meses nos túneis subterrâneos de Azovstal, sob os escombros
do Inferno em ebulição. E não vejo como vá ser possível estancar esta orgia de
morte e destruição. E a morte pode ser o menor dos horrores. Bem sei que o
mundo é um perpétuo e renovado palco de guerra desde que o Homem é Homem; que
há, neste exacto momento, outras guerras, outras vítimas, outras mantas de
horrores que não enchem jornais e directos diários e comentários e análise e
actualizações sobre actualizações, repetições à náusea dos detalhes mais
tenebrosos do confronto, mas sou outro desses seres imperfeitos e esta é, de
momento, a guerra que mais me repugna.
Um
destes dias, alguém que gosto de ler (d)escrevia um céu azul-azul, como que “pintado de fresco”. Eu vi esse céu azul-azul, um pedaço desse Céu azul-azul, como que “pintado de fresco”. Como uma capela de Michelangelo. Estava no
carro, enfiada no trânsito e, quando O vi, no rolar lento da fila de automóveis,
por entre os ramos das árvores, demorei uns segundos a percebê-Lo: parecia-me realmente
uma mancha de azul derramado entre as nuvens, porque havia uma muralha branca
de nuvens e, depois, aquele pequeno pedaço de céu a espreitar a loucura dos
homens.
O
verso do título é de Manuel António Pina, evidentemente. Invocado numa das
primeiras páginas de “Que Importa a Fúria do Mar”, da Ana Margarida de
Carvalho. Ando enamorada. Bem sei que há igual, sei bem que há melhor, mas ando
enamorada. Apesar de tudo.