terça-feira, 31 de maio de 2022

“A partir do momento em que foi reconhecido, o absurdo é uma paixão, a mais lancinante de todas. Mas o problema está em saber se podemos viver com as nossas paixões, se podemos aceitar a sua lei profunda, que é a de queimar o coração que elas ao mesmo tempo exaltam. Ainda não é este, porém, o problema que vamos pôr. Está no centro desta experiência e temos que voltar a ele. Reconheçamos antes estes impulsos nascidos do deserto. Basta enumerá-los. Também são hoje conhecidos de todos. Sempre houve homens para defender os direitos do irracional. A tradição daquilo a que se pode chamar pensamento humilhado nunca deixou de estar viva. A crítica do racionalismo foi feita tantas vezes que até parece impossível refazê-la. No entanto, a nossa época vê renascer esses sistemas paradoxais que se esforçam por fazer tropeçar a razão, como se, na verdade, ela sempre tivesse caminhado em frente. Isto, porém, não é tanto uma prova de eficácia da razão como da vivacidade das suas esperanças. No plano da História, esta constância de duas atitudes ilustra a paixão essencial do homem atormentado entre o seu apelo à unidade e a visão clara que pode ter das paredes que o encerram.”

O Mito de Sísifo

Albert Camus

domingo, 29 de maio de 2022

Ontem fiquei a ver e a ouvir o documentário de Anton Corbijn, Depeche Mode  Espíritos da Floresta, na RTP2. Gosto de música, embora o meu refúgio não seja a música: os livros serão sempre o meu reduto, os meus anjos de guarda, e os meus demónios também. Mas há música de que gosto muito, e concertos de que gosto muito. Ontem prometi a mim mesma que não me deixo morrer sem voltar a ver um concerto dos Depeche Mode. Lembrei-me do meu amigo A., na minha adolescência longínqua (longínqua tem superlativo desses que terminam em íssimo – ou íssima, no caso?), que foi quem me deu a conhecer os Depeche Mode. Se Anton Corbijn tivesse acompanhado algum fã português, o meu amigo A. seria a escolha acertada. 

Impressionou-me o testemunho da mulher que sofreu um grave acidente de automóvel, aos vinte e cinco anos, e que, ao acordar do coma, dois dias depois, não recordava nada da sua vida até aí – nem os pais, nem o namorado, nem os contornos da cidade onde vivia –, mas foi capaz de reconhecer uma música dos Depeche Mode. Nunca experimentei essa devoção absoluta, com sabor a culto; não na música. Espanto-me sempre com a gente que chora nos concertos. A música não tem esse efeito sobre mim. Suponho que não serei bem o que se pode chamar uma fã. Também não há muitos livros que me façam chorar, na verdade, talvez seja só um defeito meu, o de não saber chorar, muito menos em público. Também não danço em público, e não há nada de extraordinário nisso. 



 


Photograph: Asahi Shimbun/Getty Images


sexta-feira, 27 de maio de 2022

De Abril a Junho precisava que cada um dos meus dias tivesse mais duas horas, que o meu tempo se relativizasse à escala do visível e eu pudesse moldá-lo segundo uma qualquer teoria da necessidade. De Julho a Setembro pagaria com juros o magro empréstimo e, nos restantes meses, regressaria a um tempo qualquer-coisa-normal.

É verdade, o mundo embruteceu.




 

quinta-feira, 26 de maio de 2022



quarta-feira, 25 de maio de 2022

Bom, o “Ocidente” também se deixou enredar num equívoco. A catártica união da União Europeia deu-nos uma falsa sensação de vitória. Acossada por sansões como nunca se viu, a Rússia de Putin seria obrigada a recuar – é uma potência militar, mas não uma potência económica, ouvi dizer, várias vezes, a quem percebe mais disto do que eu, não fosse a impossibilidade evidente de racionalizar sobre o absurdo.

Vladimir Putin “já perdeu” esta guerra várias vezes, excepto aquela vez que conta e que parece cada vez mais longe, mais ambígua. Mas há-de vir a ser um mundo melhor, aquele que se render a Putin e à sua batalha contra a ditadura do Ocidente, esse canto indecente do mundo onde, todos os dias, as liberdades individuais são coarctadas e o povo é amordaçado, amaldiçoado e violentado por regimes democráticos imperfeitos.

Também se podia tentar uma prova-cega em política. Eliminar os nomes dos partidos, das nações, a geografia das guerras, o rosto das vítimas e dos carrascos, e testar a consistência do repúdio, a fronteira desse tal absurdo. A Democracia – regime a que me importo menos de obedecer, se é de obediência que se trata – não sairia ilesa, evidentemente, mas sempre gostaria de saber da resistência desse desapego.

De resto, não há muito mundo para além do mundo desta guerra. Não há um país, um projecto, um esboço de ambição. Vai haver eleições no PSD, alguém se lembra de que vai haver eleições no PSD?



terça-feira, 24 de maio de 2022

Aqui onde estou não chegaram poeiras de África. Não se ainda ou se já cá não voltam. Mas soprou um vento vadio que despiu todos os dentes-de-leão do jardim. O chão cobriu-se de um espantoso manto branco de neve, de minúsculas plumas serrilhadas, extenso e fofo como um tapete de algodão. Não se vêem as rendinhas das plumas, obviamente, só daquelas que voaram para dentro do carro assim que abri a porta e que apanhei com a mão. Nunca percebi por que se chama dentes-de-leão aos dentes-de-leão. Diz-se que o rendilhado, mesmo minúsculo, das pequenas cerdas lembra os dentes de um leão, e as flores amarelas a sua juba farta: não deviam ter nome de coisa frágil, os dentes-de-leão, tão frágil como as trémulas penas dos pompons brancos que um pequeno sopro faz esvoaçar em finos fios de lã? Também dizem que há quem lhes chame amor-dos-homens. Não sei se é suficientemente frágil, só conheci homens de amores densos, imutáveis. Faltou-me um daqueles amores de Verão que só dura um Verão. Vou anotar na agenda. Podiam chamar amor-de-Verão aos dentes-de-leão.

quinta-feira, 19 de maio de 2022



terça-feira, 17 de maio de 2022



domingo, 15 de maio de 2022

 



Vou sempre atrás da Lua também.



Gosto muito mais do que da versão original. Também gosto mais da versão dos The Cure do Hello, Goodbye, mas o meu gosto musical nem é bem um gosto musical. Ou se calhar é exactamente aquilo a que devia chamar-se gosto musical, porque não respeita qualquer critério a não ser o do gosto, agora com “o” aberto: ou gosto – e posso ouvir mil vezes num dia, e vez nenhuma no dia seguinte –, ou não gosto neste momento preciso, mas o desgosto pode não durar para sempre. Posso ouvir Tarja Turunen e Adele logo a seguir, Alice Cooper e Ed Sheeran, sem que se desafine uma única nota desse meu gosto, o primeiro, o do “o” ovalado. Nem sei se posso falar de bandas preferidas, músicas preferidas, a maior virtude, o mais vil dos defeitos, ou outros (di)lemas do género. Daria um péssimo inquérito de Proust, de vez em quando esbarro num inquérito de Proust. Quase me aflige, perceber que dificilmente seria capaz de responder decentemente a mais de uma mão cheia daquelas perguntas: não tenho um propósito que possa resumir num bonito slogan; nenhum “favorito” que sobreviva ao virar das páginas do tempo, ao espanto seguinte; desprezo gente que nem isso merece e admiro gente respeitável e gente odiosa, entre os vivos e os mortos – não sei se “admirar” é expressão que se aplique no segundo caso, mas sei que parte do meu subconsciente demasiado consciente vive suspensa de um certo fascínio perplexo pela mente demoníaca de certas personalidades muito pouco recomendáveis, entre o estupor e a curiosidade: o quê?, porquê?, de onde vem tanta maldade demente, ausente de empatia e remorso?, e não me refiro àquela maldade vesga, primária, capaz de violentar uma criança como arma de guerra ou de matar a tiro dez pessoas, num supermercado, por ódio racial, dizem, mas a uma maldade complexa, muito mais complexa. Também não sei onde nem quando terei sido mais feliz – já fui imensamente feliz várias vezes e miseravelmente infeliz noutras vezes, e espero não ter acabado ainda. Mas sei que talento gostaria de ter, sei como não gostaria de morrer e vivem perto de mim todos os heróis que conheço – suponho que seja suficiente, mesmo que dê um péssimo inquérito de Proust.

Mas, falava era de música, não era? Ando a ouvir compulsivamente Muse. E Diana Krall. Consegui convencer uns amigos que nem sabem se gostam de Muse a ir ver os Muse. Em troca, deixei que me convencessem a ir ver a Diana Krall (mentira, comprámos os bilhetes para ver a Diana Krall antes de se suspeitar dos Muse no Rock in Rio, posso ser muito fácil de convencer). Já vi os Muse em Lisboa, mas nunca no Rock in Rio – não é o meu tipo de espectáculo: será uma primeira vez, se até lá o mundo não enlouquecer de vez, e, desta vez, apetece-me muito.

Há outra amiga, esta, a tentar convencer-me a aderir aos ebooks. Mostra-me como é fácil, muito mais barato e cómodo, que sim, que posso marcar as páginas e anotar e sublinhar, partilhar, inclusivamente, e, claro, é muito mais leve e perfeito para ler na cama, mas ler na cama está nos antípodas do que considero perfeito, embora não tenha sido exactamente isso o que ela disse. Perfeito-perfeito é ter um livro-livro no colo. Sentir-lhe o peso e o cheiro, ouvir-lhe o rumorejar das páginas sob a pressão leve das minhas mãos, tocar-lhes, seguir o compasso das linhas na ponta dos dedos, se quiser, num latejar mudo de palavras tamborilantes, nada, portanto, que seja conciliável com a facilidade com que se lê num écran. Mas também sempre jurei falsos, mil vezes falsos, esses laços que se tecem em linhas virtuais, invisíveis, impossíveis, sem cheiro, nem pele, nem nome, por isso, quem sabe?


sexta-feira, 13 de maio de 2022



segunda-feira, 9 de maio de 2022

 


“Se não queres estafar o espírito e o olhar,

Vai sempre atrás do Sol – mesmo na sombra!”

 

Poemas

Friedrich Nietzsche

sexta-feira, 6 de maio de 2022



quarta-feira, 4 de maio de 2022

"A realidade é uma hipótese repugnante"

Não gosto de espaços subterrâneos. Assalta-me uma pequena ameaça de pânico sempre que permaneço debaixo de terra. Uma visita turística às entranhas do subsolo – uma mina, uma gruta, as magníficas catacumbas da minha adorada Roma – ou, simplesmente, andar de metro sob o chão da cidade, qualquer cidade e há cidades de metros vertiginosos, deixa-me entregue à quase irracionalidade. Não deixo de fazer nada do que ali disse, se me apetecer muito ou precisar de, mas, fazê-lo, exige-me um esforço de concentração extenuante, o domínio absoluto do meu racional. Se não estiver acompanhada, sou capaz de não ser capaz. Mas esforço-me por ser capaz, e para isso finjo que posso controlar todas as variáveis humanas. Entre demais observações em cujo rigor me deixo iludir, preciso de saber com a maior exactidão possível quanto tempo vou ficar soterrada – acho que é bastante próximo de como aí me sinto: soterrada. Se me perder numa linha de metro – e já me perdi numa linha de metro, espantosamente – posso precisar urgentemente de subir à superfície e, então, eventualmente, voltar a descer. Não sei como seria capaz de sobreviver dois meses nos túneis subterrâneos de Azovstal, sob os escombros do Inferno em ebulição. E não vejo como vá ser possível estancar esta orgia de morte e destruição. E a morte pode ser o menor dos horrores. Bem sei que o mundo é um perpétuo e renovado palco de guerra desde que o Homem é Homem; que há, neste exacto momento, outras guerras, outras vítimas, outras mantas de horrores que não enchem jornais e directos diários e comentários e análise e actualizações sobre actualizações, repetições à náusea dos detalhes mais tenebrosos do confronto, mas sou outro desses seres imperfeitos e esta é, de momento, a guerra que mais me repugna.

Um destes dias, alguém que gosto de ler (d)escrevia um céu azul-azul, como que “pintado de fresco”. Eu vi esse céu azul-azul, um pedaço desse Céu azul-azul, como que “pintado de fresco”. Como uma capela de Michelangelo. Estava no carro, enfiada no trânsito e, quando O vi, no rolar lento da fila de automóveis, por entre os ramos das árvores, demorei uns segundos a percebê-Lo: parecia-me realmente uma mancha de azul derramado entre as nuvens, porque havia uma muralha branca de nuvens e, depois, aquele pequeno pedaço de céu a espreitar a loucura dos homens.

O verso do título é de Manuel António Pina, evidentemente. Invocado numa das primeiras páginas de “Que Importa a Fúria do Mar”, da Ana Margarida de Carvalho. Ando enamorada. Bem sei que há igual, sei bem que há melhor, mas ando enamorada. Apesar de tudo.


Let's conspire to ignite



terça-feira, 3 de maio de 2022


Penso-te por razão nenhuma, e por todas as outras também.