domingo, 15 de maio de 2022



Gosto muito mais do que da versão original. Também gosto mais da versão dos The Cure do Hello, Goodbye, mas o meu gosto musical nem é bem um gosto musical. Ou se calhar é exactamente aquilo a que devia chamar-se gosto musical, porque não respeita qualquer critério a não ser o do gosto, agora com “o” aberto: ou gosto – e posso ouvir mil vezes num dia, e vez nenhuma no dia seguinte –, ou não gosto neste momento preciso, mas o desgosto pode não durar para sempre. Posso ouvir Tarja Turunen e Adele logo a seguir, Alice Cooper e Ed Sheeran, sem que se desafine uma única nota desse meu gosto, o primeiro, o do “o” ovalado. Nem sei se posso falar de bandas preferidas, músicas preferidas, a maior virtude, o mais vil dos defeitos, ou outros (di)lemas do género. Daria um péssimo inquérito de Proust, de vez em quando esbarro num inquérito de Proust. Quase me aflige, perceber que dificilmente seria capaz de responder decentemente a mais de uma mão cheia daquelas perguntas: não tenho um propósito que possa resumir num bonito slogan; nenhum “favorito” que sobreviva ao virar das páginas do tempo, ao espanto seguinte; desprezo gente que nem isso merece e admiro gente respeitável e gente odiosa, entre os vivos e os mortos – não sei se “admirar” é expressão que se aplique no segundo caso, mas sei que parte do meu subconsciente demasiado consciente vive suspensa de um certo fascínio perplexo pela mente demoníaca de certas personalidades muito pouco recomendáveis, entre o estupor e a curiosidade: o quê?, porquê?, de onde vem tanta maldade demente, ausente de empatia e remorso?, e não me refiro àquela maldade vesga, primária, capaz de violentar uma criança como arma de guerra ou de matar a tiro dez pessoas, num supermercado, por ódio racial, dizem, mas a uma maldade complexa, muito mais complexa. Também não sei onde nem quando terei sido mais feliz – já fui imensamente feliz várias vezes e miseravelmente infeliz noutras vezes, e espero não ter acabado ainda. Mas sei que talento gostaria de ter, sei como não gostaria de morrer e vivem perto de mim todos os heróis que conheço – suponho que seja suficiente, mesmo que dê um péssimo inquérito de Proust.

Mas, falava era de música, não era? Ando a ouvir compulsivamente Muse. E Diana Krall. Consegui convencer uns amigos que nem sabem se gostam de Muse a ir ver os Muse. Em troca, deixei que me convencessem a ir ver a Diana Krall (mentira, comprámos os bilhetes para ver a Diana Krall antes de se suspeitar dos Muse no Rock in Rio, posso ser muito fácil de convencer). Já vi os Muse em Lisboa, mas nunca no Rock in Rio – não é o meu tipo de espectáculo: será uma primeira vez, se até lá o mundo não enlouquecer de vez, e, desta vez, apetece-me muito.

Há outra amiga, esta, a tentar convencer-me a aderir aos ebooks. Mostra-me como é fácil, muito mais barato e cómodo, que sim, que posso marcar as páginas e anotar e sublinhar, partilhar, inclusivamente, e, claro, é muito mais leve e perfeito para ler na cama, mas ler na cama está nos antípodas do que considero perfeito, embora não tenha sido exactamente isso o que ela disse. Perfeito-perfeito é ter um livro-livro no colo. Sentir-lhe o peso e o cheiro, ouvir-lhe o rumorejar das páginas sob a pressão leve das minhas mãos, tocar-lhes, seguir o compasso das linhas na ponta dos dedos, se quiser, num latejar mudo de palavras tamborilantes, nada, portanto, que seja conciliável com a facilidade com que se lê num écran. Mas também sempre jurei falsos, mil vezes falsos, esses laços que se tecem em linhas virtuais, invisíveis, impossíveis, sem cheiro, nem pele, nem nome, por isso, quem sabe?