quinta-feira, 30 de setembro de 2021



João Rendeiro, o mártir

Não é verdade que em Portugal haja uma justiça para ricos e outra para pobres, que disparate. Em Portugal só há justiça para pobres. Ponto. Os ricos – ou os bem-relacionados, ainda que não muito ricos, não sei se são estatutos indiferenciáveis por cá – valem-se dos bons advogados, daqueles que dão bons analistas e comentadores em horário nobre, cheios de retórica e presunções de, que tratam o poder por tu e por ele e que fazem da justiça uma prostituta ao serviço dos interesses que melhor lhes servem os vícios, os próprios e os dos respeitáveis clientes. A morosidade da justiça é um expediente cozinhado nos melhores escritórios, para garantir a impunidade dos que a podem pagar. O país é pequeno e há que fazer pela vida, principalmente, se a vida for boa e os portugueses de bem. João Rendeiro é um desses portugueses de bem. A sua fuga nas nossas barbas (como a de outros) dará um belíssimo sketch no próximo programa do Ricardo Araújo Pereira, e é só. O povo ri e esquece, porque tem contas para pagar e não há legítima defesa que possa ser invocada contra o ultraje.

terça-feira, 28 de setembro de 2021



segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Sobre "incumbentes", ou nem por isso

Carlos Moedas ganhou a Presidência da Câmara Municipal de Lisboa. Celebro. Não voto em Lisboa, mas celebro como que se votasse em Lisboa. Talvez sirva para mostrar a António Costa que convém manter um certo decoro. A derrota “pessoal e intransmissível” de Fernando Medina não é assim tão pessoal e pode vir a ser fatalmente transmissível.

António Costa tomou esta campanha eleitoral como se fosse sua, encheu-se de arrogância. A mesma arrogância insuportável que lhe permitiu até agora – e veremos até quando – defender e manter em funções um ministro como Eduardo Cabrita e um secretário de Estado como Eurico Brilhante Dias, uma vergonha intolerável em qualquer país que se levasse a sério.

André Ventura não chegou a presidente da Assembleia Municipal de Moura e Suzana Garcia sai derrotada da Amadora. 

A democracia portuguesa, moribunda, ainda respira, afinal. Deve bastar-me, para início de semana. O resto ainda não vi, não sei, não me apetece.

Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.

Clarice Lispector

sexta-feira, 24 de setembro de 2021


 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Ainda a propósito do estravagante juiz no seu lugar e seus robertos, diz-me uma amiga que eu estou a desvalorizar o que não pode ser desvalorizado. Que aquele grupelho de menos que gente não é chalupa, como se diz agora, é realmente perigoso. Que se não dermos atenção à coisa, a coisa agradece, engrandece e aquilo tem tudo para correr mal. É o capitólio em versão caseira e mais não sei o quê. Que eu tenho mesmo mesmo que abrir uma conta no Twitter, outra no Facebook, e ler com os meus olhos o que por ali escorre para perceber bem percebida a amálgama de desalento e ódio que tomou algumas consciências (inconsciências, corrijo eu) de assalto e que se continuarmos a esgrimir o argumento dos brandos costumes corremos o risco de falecer sem dar pelo golpe. Ela não disse tudo exactamente assim, mas foi exactamente assim que eu a entendi. E falou da informação que, nas redes, viaja à velocidade da luz. Literalmente. Disso eu percebo melhor. Do resto, nem tanto. Tenho dificuldade em levar a sério os fantoches do senhor juiz e daquele outro patusco, o Ventura. Não porque desvalorize o perigo que possam representar, mas porque, simplesmente, não acredito na farsa que são os próprios. Donald Trump, Jair Messias Bolsonaro e Santiago Abascal são realmente maléficos. São aquilo mesmo. Acreditam nas mensagens que fazem chegar às massas e as massas, dentro e fora das redes, levam-nos a sério. Os que os veneram e os que se lhes opõem. Castro e Ventura – o desgraçado do Fernando Nobre ainda não sei bem – são uma imitação pífia. Uma encenação de quarta ou quinta categoria. Desligam-se as câmaras e esvaziam-se. Não são negacionistas, são oportunistas de vão de escada, a esgravatar na latrina dos outros à cata das sobras. É o que eu acho e o que eu acho vale o que vale. Nada, para o caso pouco provável de não ser evidente. Mas, o elogio da dívida, que tantos enaltecem e eu também, não se lhes aplica, porque a dúvida – ali, muitas vezes simulada – serve uma vontade que não procura esclarecer, antes confundir. O mundo inteiro uniu-se para nos tramar e só eles é que não vão na cantiga. É preciso desobedecer. Tão romântico. Principalmente se a desobediência for acarinhada pelas regras democráticas de que se burlam os donos dessa Verdade que só os próprios conhecem por obra e graça do espírito virtual da vontade de baralhar.

Há uma diferença tão gritante que devia ser evidente entre rejeitar que o Estado mande em nós mais do que pode e deve e embarcar nas mais estapafúrdias teorias da conspiração; entre dar voz às dúvidas da ciência e dar palco a um bando de palermas que se informa pelo divino ou pelo oculto, acusando os que acreditam na ciência de “falta de provas”, enquando a exigência dos crentes se basta na sua própria fé travestida de opinião, fundamentada noutras opiniões igualmente crendateiras. Aos devotos, basta com acreditar. A dúvida deu lugar à imbecilidade janota, comparando o que não é comparável. E a distração vai fazer-se pagar cara. Tremo só de pensar no desastre que se anuncia. Já sei que os resultados das próximas eleições autárquicas são só os resultados das próximas eleições autárquicas. Como é da praxe, os vencidos vão dizer que é exactamente e apenas isso e os vencedores farão a ponte para o prenúncio de vitória nas eleições seguintes. Temo que o PSD de Rui Rio desapareça mais depressa do que o CDS de Francisco Rodrigo dos Santos. Não morro de amores por nenhum dos dois, mas uma oposição que resista, de resistir com maiúscula, vai demorar a erguer-se. Se este PS se perpetuar no poder, adormecidos que estamos  e estamos , não imagino que Portugal nos sobrará no esgotar da bazuca. Não haverá príncipe que nos salve.

A poesia continua a não ser a minha leitura preferida. Até porque creio que a poesia existe para ser lida em voz alta, declamada de facto, os versos, insolentes, ecoando contra as entranhas. Ainda assim, nos últimos tempos tenho ensaiado uns passos. Nessas pausas entre tarefas que não me bastam para descontrair lendo meia página de um livro daqueles a que chamamos romance mesmo que encerre a mais insana das tragédias. Um poema pode caber na modéstia, na mudez, desse espaço breve. Ou um conto, uma carta, uma crónica. De momento, vou enchendo a estante e a leitura de algumas dessas coisas. Apetece-me um tempo contado e curto, exacto, que me agarre a prazo mesmo que me esmague no entretanto. E os livros são como as viagens. Os meus livros e as minhas viagens. Sete pecados capitais. Há sempre mais um volume, uma vertigem, um caminho urgente e inacabado. Um deslumbramento ainda agora desconhecido. Um soletrar na ponta dos dedos, linha a linha, boca a boca, a lua cheia à flor da pele, o desfiar aveludado do silêncio onde por vezes te encontro.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Também poderia ter escrito de ter provado no deserto

O silêncio, o dilúvio

A pequena península de água

Que o silêncio não enxuga

Daniel Faria

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Que alegria e que terror teres vindo. Conseguirei voltar a habitar este espaço outra vez sem ti?

Daniel Faria

Nos últimos dois meses caí duas vezes. Dá uma boa média. Melhor do que os meus níveis de ferro, da última vez que vi. A médica ordenou-me uma série de coisas, sob ameaças várias, e não sei se ando a cumprir. E a minha tensão anda em mínimos históricos, mesmo para mim. O calor de Verão é a minha ruína. Menos mal que acabou Agosto, Setembro vai em mais de meio e já há folhas secas no chão. Ouço-as crepitar à minha passagem. O Outono anuncia-se-me em sussurros respingados, como um vestido de folhos. Evito pisá-las. As folhas crocantes, de ouro velho e baço.

Das duas vezes, veio alguém em meu auxílio. Muito aflito, o segundo homem. Via-me e, de repente, deixou de me ver, e achou que eu tinha desmaiado. Não interessa nada. Não me magoei demasiado. Uns arranhões à superfície da pele, outros no meu mais profundo orgulho. O importante é que, por duas vezes e sem temor, um desconhecido me estendeu a mão. Nua e não sei se devidamente, institucionalmente,  higienizada. E eu aceitei. O medo ainda não nos despiu totalmente de humanidade, afinal. Não a todos.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021



quarta-feira, 15 de setembro de 2021



terça-feira, 14 de setembro de 2021

"Todos los gestos de mi cuerpo y de mi voz para hacer de mí la ofrenda, el ramo que abandona el viento en el umbral."

Alejandra Pizarnik

Não lhes Chamem Negacionistas

São só chalupas. Lamento muito pelos envolvidos, mas, olho para aquele bando de histéricos e histéricas – a inclusividade acima dos gritos –, a berrar as entranhas à porta do restaurante marcado a guinchos ou lá o que é, e só me apetece rir. Estou como o vice-almirante.

Além disso – ou talvez por isso – uma daquelas patetas é (sou só eu?) patuscamente parecida com a mãe do Gru, aquele mal-disposto adorável, sem ofensa para os bonecos. Não é possível levar aquilo a sério. É?

Ainda assim, deixem o povo em paz  ou não toquem no povo, para manter o registo –, que eu não me revejo em nada daquilo. E o Daniel Oliveira, não o intimista, o outro, é capaz de perceber mais disto do que eu.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021




quinta-feira, 9 de setembro de 2021



O meu filho pergunta-me se eu gosto de Billie Eilish. Sublinha de Billie Eilish, e não da Billie Eilish, agora tem um entendimento cabal da diferença, mas, neste caso, é quase irrelevante: creio que gosto de ambas.  Ele gosta de Queen, não sei se dos Queen, mas sei que gosta dos Rolling Stones. The Rolling Stones. Impressiona-o a forma como alguém que tem a idade de Jagger é capaz de mover-se como Jagger, que conheceu pela música dos Maroon 5, de que eu também gosto. Gosto de certeza do Adam Levine. Inofensivamente. Não gosto do tempo que envelhece depressa. A não ser pela mão de Antonio Tabucchi, embora eu insista em chamar ao livro O Tempo Envelhece Devagar, que era do que eu gostaria mais. E tudo isto vinha a propósito da adolescência, que nem o tempo se atreve a deixar que envelheça; mas, entretanto, perdi-me.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Escapo-me deste mundo sempre que posso. Vivo de frases soltas, saltitando entre umas e outras como sobre os quadrados do jogo riscado a giz no chão da minha memória. Dou a volta e recomeço. Há traços de giz no céu azul-claro do fim de tarde e no fundo das gavetas da minha secretária. Ainda gosto de escrever a giz. Às vezes. A luz do sol tomba, pálida, sobre os montes lá ao fundo. Cobre-os como um véu de seda gasta e baça, e a mesma luz morre no sopé das encostas, o rio sepultado entre as duas margens. Voltei a enamorar-me de Simon e Art Garfunkel e regresso ao concerto em Central Park. Leio-te assim. Com volúpia. Acabar e voltar ao princípio.

Tenho andado a rever coisas que escrevi noutro canto. Como não vou regressar ali (ainda não decidi o que farei com os destroços), tenho transferido para aqui, para o “arquivo”, a maioria dos textos. Um arquivo com um leve tom de falsete, porque o “outradecoisanenhuma” só existe desde Janeiro de 2020, mas um arquivo é um arquivo, não é?, e a pessoa que escreve desde aí é a mesma pessoa que escrevia até aí, tanto quanto uma pessoa possa ser a mesma ano após ano, apenas num local diferente.

Adiante.

No meio do muito que escrevi, reencontrei um texto sobre a situação que se vivia na Venezuela em Janeiro de 2019, com a autoproclamação de Juan Guaidó como presidente interino do país, como forma de resistência ao poder de Nicolás Maduro. Eram “momentos históricos”, dizia-se, a História está cheia de “momentos históricos”, evidentemente. Aqueles, levaram dezenas de países a reconhecer Juan Guaidó como Presidente da Venezuela, e eu era capaz de jurar que, na respectiva página e num dia vinte e qualquer coisa desse Janeiro, a Wikipédia o dava mesmo como o 58º Presidente da Venezuela; depois passou a presidente interino da Venezuela e, finalmente, presidente autoproclamado da Venezuela (e 10º presidente da Assembleia Nacional da Venezuela). E aonde é que eu vou com tudo isto? Em princípio, a nenhum lado, exactamente como aconteceu a Juan Guaidó, a quem a EU, pelo menos, já deixou de reconhecer como Presidente da Venezuela. Ocorreu-me, apenas, que, daqui a nada, as imagens dos vários canais de televisão no mundo livre deixarão de transmitir as manisfestações no Afeganistão contra o regime talibã, onde muitas mulheres – e não só, mas apetece-me falar sobretudo das mulheres – têm resistido como podem ao terror que se avizinha e, daqui a nada, dizia, o silêncio dará lugar ao esquecimento e o esquecimento abrirá caminho à imposição, outra vez, da Sharia, essa lei obscura que serve mais ao poder do homem e menos ao poder divino, e não consigo sequer imaginar o que é viver encarcerada numa burka, sob um regime que cala em nome de, violenta em nome de, mutila em nome de, mata em nome de. Não só mulheres, mas porque me apetece lembrar, sobretudo, as mulheres. E o que me repugna assistir ao juízo que alguns fazem da liberdade. E por esses alguns, entendo o idiota do juiz Castro mais as suas majoretes, ou o imbecil do deputado José Magalhães. Entre outros, mas, de momento, só me apetece nomear estes.

Há um tipo de desplante vilipendiado, roubado à ideia de liberdade, que me enoja.

terça-feira, 7 de setembro de 2021



Como há quem esteja absolutamente seguro de que todos os males do mundo vêm dos imigrantes, principalmente pobres, que tomaram de assalto todos os países limpos e desenvolvidos, há-de ser fácil voltar a arrumar as casas e as nações. É só construir muros e distribuir armas.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

 "A sedução

é um dom: como o da poesia.

Também tem muito a ver com a música.

A pintura e a própria escultura vêm depois."

David Mourão-Ferreira

"Censura no Feminino"



Há uns meses, o PÚBLICO reuniu dez livros numa colecção a que chamou “Censura no Feminino”, e, como se prenuncia, os livros foram escritos por mulheres e reprovados pela “Censura” (não é por respeito, a maiúscula), que os considerou, alguns, chocantes, outros, pornográficos, imorais e demais eteceteras atentatórios da moral e dos bons costumes da época.

Comecei pelo “Ida e volta duma caixa de cigarros”, de Maria Archer. Como sou curiosa em doses aceitáveis e bastante insensível às ameaças disso a que chamam spoiler pelo poder que tem, também dizem, de desmanchar certos prazeres, saltei imediatamente para as páginas que a informação do respectivo processo denuncia como impróprias: “A Censura intervém, requesita um exemplar e verificando que nas duas primeiras novelas de carácter acentuadamente erótico, a autora compraz-se na volupia do promenor sensual, que parece ser o único objectivo proíbe o livro e pede á Polícia a sua apreensão”. Uma delícia.

Na página 18 – a primeira das malditas – há tantos daqueles promenores que não imagino qual o mais culpado. Gosto de "Manuel não colhia ennebriamento ou ilusão do corpo que ia desvendando. O seio dela, redondo e firme, era clamor de triunfo, euritmia, que êle olhava como a um outro peito qualquer. Embotara o poder de admirar; a beleza apenas servia a acelerar-lhe o ritmo do desejo bruto, animal, que quere, que exige, e que, como a labareda, se extingue em cinzas e nada", mas, este trecho alonga-se pela página 19 e essa não merece reparo, pelo que, me parece que o considerado mais indecente terá sido aquele que o precede, "Momentos depois, êle vergava-a sobre as costas do divan e beijava-a no peito. Mão experiente tacteou-lhe o vestido. Marietta deixou-o prosseguir. Êle continuou o seu manejo; era hábil, estava afeito, dispunha de uma longa prática. O hábito, com o seu cortejo de indiferença e tranquilidade, transparecia-lhe nos modos".

Estou tão longe da perseguição absurda sofrida por estas mulheres que não sei se lamentá-las pelo destino ou invejá-las pela ousadia. Por acaso sei. Nem sempre é uma coisa feia, a inveja.


sábado, 4 de setembro de 2021



sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O meu Ensaio Sobre a Cegueira voltou à minha estante, depois de anos perdido até eu me lembrar de a quem o tinha emprestado: uma grande amiga que dizia não conseguir ler Saramago desde os tempos de Memorial do Convento. Convenci-a de que talvez não tivesse lido o livro certo e emprestei-lhe (e, entretanto, ofereci-lhe) aquele que continua a ser um dos melhores livros da minha vida. Tinha-lhe perdido o rasto, ao livro, não à amiga, embora seja uma amiga que vive mais longe do que eu gostaria se eu tivesse voto em matéria de distâncias do género, e encontramo-nos esta semana, não para que me restituísse o livro, mas aproveitando a oportunidade. E mandava a falta de oportunidade que se vive que não o relesse, não de momento, não neste tempo, mas não fui capaz de resistir. Continua a provocar-me, a inquietar-me, a devorar-me. 

O mesmo tempo mandava que não regressasse a Março de 2020, mas, mais uma vez, desobedeci. 

Li apenas um livro Gonçalo M. Tavares. Talvez tenha também escolhido mal, como a minha amiga (para que conste, gostei bastante de Memorial do Convento, mas não sou exemplo, como sabe qualquer um que por aqui se perca), mas não me rendi. E não sei se vou insistir. De momento não vou insistir. Pelo menos no que ao romance diz respeito. A vida é miseravelmente curta para fingir prazeres, até de leitura: preciso de linhas que me revolvam por dentro, por motivos diferentes em períodos diferentes, às vezes para fingir que não vejo o que arde lá fora. Fora das páginas dos livros que escolho.

Ainda assim. 

Ainda assim, acabei por comprar o seu “Diário da Peste”. Não é bem um livro livro, e eu sou assim, cheias de incoerências também literárias. Fui seguindo, mais ou menos, aquelas crónicas publicadas no Expresso, que surgiram no tal odioso Março de 2020. Precisava de muitos e variados olhares sobre a materialização do absurdo – como acontece outras vezes, com outros absurdos –, e revia-me em alguns daqueles atordoamentos do corpo e da alma. Comprar alimentos, conduzir o carro, fazer o essencial e voltar, a praça de São Pedro vazia, os hospitais em erupção, os hospitais em carruagens de comboio, o Palacio de Hielo convertido em morgue, os nossos velhos moribundos a engrossar a lista de mortos, fantasmas de novos números e de velhas estatísticas, a vida limitada aos écrans das salas de zoom. O vermelho e branco das fitas que nos domesticaram os hábitos: outra das mordaças indispensáveis para nos mantermos a salvo. O nosso milagre, o nojo do Outro, os sermões telediários, as epifanias em catadupa, melosas, os sinais divinos e o renascimento (não era?) de um mundo que haveria de vir, sarado e em paz, depois de atender, enfim, aos avisos do Além.

Em tudo isto estávamos, e eu sem saber nada de contrições. 

Passaram-se dezoito meses, dezanove meses – mais dia, menos dia, mais número, menos número, "um ano e meio de merda", valha-nos a clarividência de alguns candidatos a presidente de câmara  – e continuo sem ser capaz de enunciar o que aprendi, ou deveria ter aprendido, com o apocalipse. Não descobri talentos, e ansiava por vários, nem o caminho para a remissão dos meus pecados, e padeço de tantos. Há aquela coisa de aprender que nada é garantido – como se eu não o tivesse aprendido há muito, e não fosse essa a expressão mais descarnada do lugar-comum devoluto que só assiste aos privilegiados. Aprende-se ciclicamente que nada é garantido, mesmo existindo longe da obscenidade da fome e da guerra, da tragédia dos incêndios e das cheias. O horror tem muitas faces, muitas formas, muitas maneiras de se reinventar porque habita no fundo de nós, no lodo adormecido dos nossos vícios e dos nossos medos. Ausento-me na tentativa de conhecer os meus, uma necessidade voraz, às vezes infame, de recolher pensamentos. Meus e de outros. Até de pensamentos inventados e verbos pontiagudos, que posso, pelo menos, usar como contraponto, o ensaio em branco que me permite aferir do meu afastamento ao prelúdio de um outro normal. Há muito que não há um normal. O mundo é um manicómio não muito diferente das metáforas de Saramago. 

Morreu ontem Isabel da Nóbrega, de quem alguns disseram que abdicou da sua própria carreira literária para impulsionar a de José Saramago, com quem viveu um romance escandaloso à época, antes de Pilar del Rio. Também dizem que foi por causa dela que Blimunda se chamou Blimunda. Foi ao ler a biografia de José Saramago, de Joaquim Vieira, que conheci parte da paixão e da mesquinhez de Saramago: ordenar à Editorial Caminho que eliminasse das novas edições todas as dedicatórias que fizera a Isabel da Nóbrega. Numa das edições que tenho de O Memorial do Convento (descobri que tenho duas, e não é caso único), ainda consta uma dessas dedicatórias: "À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova". Depois, as contracapas encheram-se de dedicatórias a Pilar del Rio. É sabido que, pelo menos, o amor pode ser bastante volátil, e as biografias (também) servem para mostrar que é sempre da maior sensatez distinguir a obra do criador, independentemente de qual venha a sobreviver à leitura.