segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Podia, simplesmente, deixar este canto ao abandono, sem dar cavaco… salvo seja. Até porque será a segunda vez que apago um blogue. Da primeira vez pensei que o problema estava na plataforma, e agora sei que o problema sou mesmo eu. E problema é apenas uma forma de expressão infeliz. Acabou; é só. Não sou do mundo virtual. 

Podia deixar este canto ao abandono, blogues ao abandono é coisa que não falta, mas tal renúncia requer também um certo desapego de que não sou capaz. Parte disto sou eu, custar-me-ia bastante; mas, se por um lado já não quero, por outro, sabe quem me conhece, sou desastradamente incompetente nas despedidas. Isto nem chega bem a ser uma despedida – o blogue termina, mas, para lá do blogue, estarei onde sempre estive: a um email de distância, no máximo. Uma coisa quase arcaica, isso do email, mas muito razoável ainda.

Grata pelo vosso tempo.

Vivam bem.


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sexta-feira, 15 de setembro de 2023

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Serviço Público

Gosto de gente capaz de dizer basta. Essa teoria muito bíblica de dar a outra face e amar os nossos inimigos não faz bem o meu género. Evito comprar guerras miúdas, posso exercer com enorme dignidade e a bem da minha paz de espírito o exercício do ignoramento, mas, com pouca gente e por pouco tempo – devia acrescentar-se ao ditado; para tudo há um limite, e quem cala não consente tudo, mas há calar e calar, consentir e consentir.

Este breve solilóquio a propósito de José Pacheco Pereira e João Lemos Esteves. O primeiro, para o bem ou para o mal, dispensa apresentações. O segundo, mais para o mal, foi professor assistente na Faculdade de Direito na Univesidade de Lisboa; não nessa qualidade mas enquanto nessa qualidade, inventou, escreveu e publicou no jornal Sol, where else?, uma calúnia em forma de artigo, visando José Pacheco Pereira: este seria um agente a mando do Governo do Irão, a quem os ayatollahs mimavam com luxos e privilégios vários a troco de uma espécie de consultoria e etceteras que cabiam apenas na imaginação injuriosa de João Lemos Esteves – era a “liberdade de expressão” do senhor professor de Direito na versão colunista a funcionar. José Pacheco Pereira exigiu provas da liberdade que Esteves expressava e, como não existissem, o caso seguiu com uma queixa-crime.  

O ex-professor, ex-colunista e, agora, caluniador assumido, confesso e condenado, apresentou-se em tribunal, munido de um rol de vinte testemunhas, entre as quais, Donald Trump e Michael Pompeo: se é para sonhar, que seja em great, como n'América daquele outro senhor, desculpando o termo.

A montanha de invenções pariu um rato careca, e João Lemos Esteves foi obrigado a admitir a infâmia e a ler um delicioso desmentido que começa assim: "Afirmo publicamente não corresponder à verdade tudo o que escrevi sobre a relação de José Pacheco Pereira com o Irão num artigo publicado no jornal Sol de 9 de Janeiro de 2021, que acabou por ser republicado em várias publicações anónimas", além de ter sido condenado a pagar uma indemnização a Pacheco Pereira; e Pacheco Pereira, ao zelar pelo seu nome, exerceu, também, um rigoroso acto de serviço público  será uma pequena gota na oceano da liberdade da calúnia, mas é qualquer coisa.


quarta-feira, 13 de setembro de 2023

terça-feira, 12 de setembro de 2023

O Atlas não se conta. É preciso ter lá estado, no meio daquele nada em estado bruto, embriagante, quilómetros e quilómetros de estrada que às vezes nem é bem sem avistar uma alma viva e, nada mais parar o carro – todo-o-terreno, e um jerrican na mala porque nunca se sabia –, ver surgir gente sabe-se lá de onde, crianças curiosas que caminham horas para chegar a uma quase escola e conversam e falam francês. Pedem esferográficas, a lata vazia de rebuçados e umas sapatilhas velhas, que trazemos de reserva, porque dizem Nike, e os miúdos caminham quase descalços. Os desfiladeiros de rocha vermelha e árida, e, aninhadas nos seus vales pequenas aldeias de adobe, casas cor-de-rosa, cor da terra; ao longe, parecem de brincar, pouco mais do que barro moldado à mão, e, ainda assim, algumas com três e quatro andares e um sistema rudimentar de saneamento básico: um canal escavado na parede, do último ao primeiro andar, para um buraco enterrado no chão. Junto aos rios há verde, às vezes palmeiras, às vezes não chegam a ser rios, e tudo se mistura num cenário irreal de violentos contrastes. Por algum motivo não recordo os homens dessas minhas viagens pelo Atlas, na minha memória moram apenas as crianças; e, das mulheres, a das mãos de barro também, que nos ofereceu do pão acabado de cozer sobre a pedra quente – é bom, muito bom – os olhos fechados num sorriso pela alegria de partilhar o pouco que tinha, recusá-lo seria um insulto. A essa gente perdida nas entranhas da terra não há ajuda que chegue.


quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Mais que uma varanda, a morte é um brevíssimo Ocaso. O que o olhar não alcança ainda é, e os que lembramos nunca nos morrem.




quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Há muito anos que não passava férias em Espanha. Espanha e um pedacinho de França, mesmo ali à mão, um pulinho para visitar Saint-Jean-de-Luz e L’Église Saint-Jean-Baptiste, a bela igreja basca onde se celebrou o casamento de Luís XIV com a infanta Maria-Teresa. Não foi por isso que lá fui, mas queria muito vê-la. Também dizem que aí se filmaram algumas das cenas d' A Paixão de Shakespeare; não sei, lembro-me quase nada do filme, e o que dizem é o que dizem, talvez volte a vê-lo um dia destes.

Mas foi pelas Astúrias que me encantei. Apesar de quase quase ter sido atropelada por uma vaca. Não seria a primeira vez, é um facto, mas seria a primeira vez no sentido literal. Para que conste, nunca me meti com os bichos, segui escrupulosamente as instruções das guias (que guiavam pouco, diga-se, uma pequena apresentação, duas ou três instruções e a informação vital de que estaríamos incomunicáveis na maior parte do percurso), andava distraidamente maravilhada com os céus (dos Picos) da Europa àquela hora, e a coisa poderia ter corrido muito mal. Valeu-me o meu anjo da guarda, que me fez surda aos cuidado!, cuidado! que me gritavam do outro lado, e ainda bem. Se me tivesse voltado, reagido de alguma forma àquela galopar solto e fundo no meu caminho, pois claro, era isso que ressoava e fazia tremer ligeiramente o chão sob os meus pés, é preciso estar mesmo com a cabeça nas nuvens…, talvez me tivesse enfiado, numa atrapalhação, na boca do lobo, que é como quem diz, nos cornos, generosíssimos, da vaca. Assim, só vi o quadro quando o quadro já não era mais do que aquele corpanzil a passar-me ao lado, rasante. Obrigada, Anjo Meu.

Dizia que me encantei com as Astúrias. Mais do que tudo o resto, e o resto também é história; e História: depois de ver a Catedral de Burgos podemos morrer sem ver qualquer outra. Digo eu, que as persigo há anos e sei que ainda me falta caminho.

Sobre o Guggenheim, que também vi e nunca tinha visto. Um amigo um pouco bruto e muito avesso aos humores da “arte moderna” achou por bem prevenir-me: basta vê-lo por fora; o que há dentro não interessa nada. O que há dentro, pelo menos em parte, vai mudando, isso eu também sabia. Desta vez, entre outras artes, havia dentro Yayoi Kusama, Lynette Yiadom-Boakye e Oskar Kokoschka. Aquilo de que gostamos ou não, na arte como no demais, não é explicável e importa apenas a nós próprios. Eu não gosto de Lynette Yiadom-Boakye, Oskar Kokoschka era um génio e Yayoi Kusama é realmente esquizofrénica – no sentido formidável do termo. Não compraria nenhuma das suas obras, até porque a minha conta bancária não permite; se permitisse, não sei se me atreveria. Há um magnetismo quase maligno, fabulosamente maligno, naquela explosão de formas e cores e traços e pontos e telas, labiríntico, pegajoso como uma densa teia de aranha: um breve momento de pânico e é o fim.

Já falei de Oviedo? Podia viver lá.


segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Este calor deixa-me enjoada. É-me insuportável. A minha tensão arterial é incompatível com o calor tórrido de Agosto. Com o calor tórrido, seja qual for o mês. Diz a minha mãe que estou que não posso com um gato pelo rabo, como se pegar num gato pelo rabo fosse coisa fácil de se fazer, mesmo sem o calor de Agosto e sem uma tensão arterial moribunda. Um exagero. Estou que não posso com o rabo, mesmo que não traga o gato apenso. Nem sei se aquilo é coisa que se diga agora, ai ai ai, mãe, fui procurar a origem do dito, por curiosidade e aborrecimento, e dei com uma série de recomendações alarmadas sobre não maltratar os bichos, enfim, para que conste, todos os animais da família são principescamente tratados. O meu corrector ortográfico diz que não se diz principescamente.

Não interessa nada.

As Jornadas Mundiais da Juventude foram um sucesso, e ainda bem. Se a coisa se fez, ainda bem que se fez bem. Vi aquelas imagens do parque Tejo, perto dos 40 ºC, dizia-se, um milhão e meio de gente horas e horas ao sol para ver e ouvir o Papa Francisco, e eram imagens impressionantes. Eu gosto daquele homem, já disse. Independentemente da Igreja ou da Fé, das virtudes ou dos vícios. Não me revejo em tudo o que faz a mensagem de Francisco, sou demasiado pecadora, mas admiro profundamente a sua capacidade em fazê-la chegar, a não desistência, pela palavra e pelos actos. Há dias, numa edição do “Toda a Verdade” varrendo alguns momentos mais marcantes do pontificado e da mensagem de Francisco, uma freira argentina dizia dele: “A sua própria vida é um sermão”. E é. Para seguir ou não, porque, como também aí dizia o Papa Francisco, somos livres até para não amar a Deus. Chamam-lhe herege não por acaso.

Também somos livres para criticar tudo isto, e tudo o resto à volta disto; inclusive o concubinato entre o Estado e a Igreja, embora, suponho, o estado de graça e adoração que Portugal viveu nos últimos seis dias se deva mais a este Papa do que à sua Igreja.


Espero regressar em Setembro.


quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Mandava o bom senso que visse coisas alegres, agora que tenho tempo para ver televisão, mas não calhou. O que calhou foi ver em dias seguidos “Os Miseráveis”, do realizador Ladj Ly, e “O Pianista”, de Roman Polanski. E dois ou três dias depois, a mini-série norueguesa “O Marinheiro de Guerra", de Gunnar Vikene. Três produções extraordinárias.


Laico, ma non troppo

O meu sobrinho tinha quatro anos quando os médicos suspeitaram de um pequeno tumor no seu ouvido esquerdo. Numa dor só sua, numa fé só sua, o meu Pai fez uma promessa a Nossa Senhora de Fátima.

Devo dizer que o meu Pai tem a pior opinião da Igreja enquanto organização, não põe os pés numa missa, e, salvo honoráveis e raríssimas excepçoes, não gosta de padres. Sobre os abusos sobre crianças, sobre os abusos sexuais de crianças na Igreja Católica, ou, mais exactamente, sobre os castigos e penas a aplicar aos patifes, mais ainda se os patifes forem sacerdotes, o meu Pai tem uma posição muito pouco católica. Mas há um entendimento qualquer entre si e aquela Maria de Jesus; uma coisa só deles. Sempre que lhe fica em caminho, pára em Fátima e acende-lhe treze velas. Cada uma das velas tem um significado e um propósito, e talvez tenham chegado a ser treze por acaso, mas 13 é o número preferido do meu Pai. Só para lhe fazer a vontade, desconfio, o meu filho, neto mais velho, nasceu às 13:13 h de um dia de Dezembro.

Não sei bem o que é isso de ter fé. Rezo (nem sei se é um rezo) por coisas pequenas, pouco meritórias, para ocupar a mente quando preciso de me acalmar, mais habituação do que devoção, como no outro dia, em que fiquei presa trinta e dois longos minutos no elevador do prédio. Suponho que a fé, na sua forma mais pura mais crua e mais bela, seja coisa ao alcance de poucos. Embora não a entenda e não a possua, comove-se a fé dos outros. Nunca serei capaz de pôr por palavras a torrente de emoções daquela época.

Mas o nosso Estado é laico; quando o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa afirma que o país cumpriu um sonho, não foi bem o país: foi o seu Presidente. Marcelo esperou, desejou e conseguiu. Naquela equação, o País foi quase um pormenor.

A falta de fé não me empurra, no entanto, para o coro dos indignados com a deferência que o nosso Estado laico presta ao Papa Francisco nestas Jornadas Mundiais da Juventude – mas eu gosto do homem, mais do que do Papa, e a minha opinião pode não ser isenta. Já a indignação pela utilização de dinheiros públicos e serviços públicos para o evento, parece-me mais do que legítima. É tão absurdo criticar os ateus fervorosos, acusando-os de sentirem ódio contra a Igreja e etc – coisa que está muito na moda, acusar de ódio tudo o que opina contra a nossa vontade –, como defender uma espécie de tréguas no escrutínio aos gastos públicos, ou deixar de questionar sobre o tal retorno económico miraculoso porque a juventude que por aí anda em jornada é alegre e optimista e caleidoscópica. Mas somos sempre mais tolerantes quando a causa nos embevece. Rabugentos são os outros.


domingo, 16 de julho de 2023

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Rouba(-se), mas faz(em todos)

Continuo a ter a melhor impressão de Rui Rio – banhadas de ética (e sisudismo cinzento) à parte; enfim: por melhor, no que a políticos diz respeito, entendo que pertence à classe do que mais sério pode haver na política de topo, e, de topo, pelo cume e mais visível, não necessariamente pelo melhor-melhor.

Tudo isto é horrível de se dizer e escrever, eu sei; a ignomínia do “são todos iguais”, e por igual dizer corruptos, patifes, a servir-se de em vez de servir a, mas às vezes é difícil manter a boa-fé.

Rui Rio não será corrupto, nem patife – e eu acho que não é –, mas uma prática não passa a ser legal porque a praticam todos, como uma mentira não passa a ser verdade porque a repetem todos, que é como quem diz, a propósito, o relatório da CPI à TAP não deixa de ser um embuste por muito lapidar e lapidada que seja a retórica do PS na sua defesa.

Mas, há ilegalidades e ilegalidades, supondo que existem ilegalidades. Existindo, a não ser que o “alegado” desvio de dinheiro tenha servido para pagar a assessores-fantasma, alugar pavilhões transfronteiriços (também com qualquer coisa de fantasma) lá para os lados de Caminha, usar dinheiro público de uma empresa pública para comprar essa empresa pública, e outras maravilhosas obras de engenharia financeira mas não só em que parecemos ser formidavelmente – e alegadamente, sempre alegadamente  competentes na gestão do erário público, dificilmente se compreende aquele circo à porta de casa de Rui Rio. A não ser numa lógica tenebrosa de pequena vingança, num país pequeno, de gente mais pequena ainda. Parece absurdo, não fosse este um país que convive bem com Galamba como ministro, mais a sua chefe de gabinete com acesso directo aos senhores do SIS (parece que o podemos todos, é como o senhor Presidente a garantir ter sido muito bem tratado do desmaio, apesar das greves no SNS), um Pedro Nuno Santos retornado e aclamado, ou um ministro da Administração Interna a repreender uma estação de televisão pública por desagrados com um cartoon. Isto é tudo normal?


quarta-feira, 12 de julho de 2023

O Centro de Arte Manuel de Brito, em Lisboa, mostra, até ao final do ano, uma pequena colecção da obra de Ruy Leitão, de quem eu desconhecia tudo, até a sua curta existência. Foram duas ou três frases nas descrições que li noutras poucas notícias que o acaso trouxe ao meu encontro que me levaram lá. Aproveitei e levei o meu filho: ainda resiste, sem ressaca, a algumas horas alheado disso a que chamamos dispositivos móveis, em cima de um programa qualquer coisa cultural na companhia da mãe – é um estado de graça, breve, que já dura mais do que eu imaginava e que não posso e não quero desperdiçar.

A entrada é gratuita, saía um homem quando chegámos, e, de resto, não havia mais visitantes; éramos só nós. Pudemos demorar-nos sobre todos os traços, sobre todas as cores, a vida, a morte, o “mundo às avessas”, concordamos sobre uns rabiscos, discordamos sobre outros, perdemos o tempo como o tempo merece ser perdido. E digo rabiscos com a devida vénia, porque foi um encontro feliz. Não sei fazer crítica sobre pintura, não sei fazer crítica sobre quase nada, ou gosto ou não gosto, nem sei se Ruy Leitão cabe na minha definição de pintor: o que fez, surge-me mais como desenho e menos como pintura, mas gostei bastante, gostámos bastante, e, ficámos ali a saber, Paula Rego disse dele que era um artista único – deve bastar.



quinta-feira, 22 de junho de 2023

 





Do mundo que ainda vou compreendendo.


sexta-feira, 16 de junho de 2023

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Enchi de anotações e sublinhados o meu “A Biblioteca de Estaline”, de Geoffrey Roberts. Tenho esse (dizem alguns que) péssimo hábito: o de rabiscar, sublinhar, circular, anotar quase tudo o que leio – deformação profissional, como diria uma amiga.

A dada altura do livro descobri que o leitor ávido, ácido e apaixonado que era Estaline – “um dos ditadores mais sanguinários da História”, tal como é apresentado logo na introdução, se dúvidas houvesse sobre o seu legado – tinha vícios de leitura semelhantes aos meus e a tanta outra dessa gente incapaz de ler de mãos despidas. Mas, não só anotou, comentou e sublinhou, como preencheu cadernos inteiros com citações, resumos e comentários sobre os livros que lia. Era curioso, atento, intelectual, e sinistro, maligno, perverso. Seria mais confortável que tivesse sido apenas um ditador execrável, uma aberração incapaz de experimentar qualquer característica mais elevada e humana, mas a humanidade é complexa, como só não sabem os tolos.

É um bom livro, bem escrito e bem documentado, uma viagem extraordinária pela mente (ou parte dela) do monstro. E o melhor para ler logo depois desse – que comecei quase por acaso, mas ainda bem – é "As Enviadas Especiais", de Judith Mackrell, a II Guerra Mundial vivida e contada por seis ousadas mulheres correspondentes de Guerra: Martha Gellhorn (mulher e ex-mulher de Ernest Hemingway), Sigrid SchultzVirginia CowlesLee Miller, Clare HollingworthHelen Kirkpatrick.


quinta-feira, 1 de junho de 2023

Primeiro, o ar fechou-se num vento simétrico incapaz de desarrumar um pensamento. Depois, choveu um fim de Maio morno, em filigrana verde, do verde mais fresco dos ramos mais verdes das árvores mais altas. Choveu solenemente, como notas de música numa melodia rara, e a terra encheu-se de fragrâncias sem tempo contado, de odores insurretos; cheira a antes e a agora, a passado presente, a futuro imperfeito, a destino escrito nas linhas da mão. 


quarta-feira, 31 de maio de 2023



Também tenho qualquer coisa a dizer sobre “Rabo de Peixe” na Netflix: não passei do segundo episódio.

É possível que seja defeito meu, mas acabei por me perder no meio de tanto vernáculo, e não foi por pudor, foi mesmo por fastio. Praguejar é uma arte. Requer saber e talento ao alcance de poucos e vai muito além de um guião corrido a palavrões a cada três sílabas. A excentricidade do acontecimento nesse distante Junho de 2001, tão surreal que encaixa com ironia apurada naquela categoria em que a realidade é capaz de superar a ficção, torna bastante difícil, suponho, compor e dar forma a uma narrativa empolgante que não se esgote logo ali, num carregamento de meia tonelada ou mais de cocaína que deu à costa numa praia dos Açores, junto a uma pequena vila de pescadores onde nunca se passa(va) nada – really?, diria o narrador na sua voz cavernosa. Todo o exagero depois disso é consonante e assumido, bem sei, mas não me convenceu. Mea culpa.


quinta-feira, 25 de maio de 2023

Ainda ando nisto...



 

Era a cabine de primeira classe: um cubículo acabrunhado e despido, com excepção dos dois conjuntos de beliches desengonçados, as armações tortas e descascadas. Sobre cada uma das camas, uma almofada amarrotada e uma manta demasiado curta, de cor indistinta, entre a poeira ocre do deserto e restos de um passado recente de outros viajantes imprevidentes. Sobrava o luxo fosco de não dividir o espaço com as cabras e os carneiros que homens rudes e trelas frágeis de corda gasta guiavam com pressa entre corredores apinhados, em busca de um qualquer espaço livre para repousar até ao destino final. Fatal, para os bichos murchos intuindo o fim. No meio do mosaico engelhado de corpos e cheiros e vozes, a pequena cabine abafada e quase nua, de salubridade engenhosa, era um pequeno pedaço de paz. As minhas mãos cheiram à tangerina do almoço, mas não me atrevo a procurar as casas de banho. Nem sei se haverá qualquer coisa a que possa chamar casa de banho. A noite anuncia-se longa, mas já sei que não me permitirei dormir. Basta-me um canto minúsculo da cama por desfazer; poder sentar-me algumas horas até ao nascer o dia e, depois, ver o sol ainda brando avançar sobre as muralhas vermelhas da cidade velha. Aproveitar o sossego da praça antes que a praça regurgite os seus mortos, antes que os vivos encham o palco e corrompam os versos guardados nas esquinas das sombras que agora despertam, que conheço tão bem.


quarta-feira, 24 de maio de 2023

Magnífica







A primeira é a primeira música em que penso sempre que penso em Tina Turner; a segunda é uma das minhas preferidas.

Estou naqueles dias. Não "naqueles" dias; naqueles dias. Indigno-me superficialmente, entre as gordas dos títulos apocalípticos e os ecos da mais fina análise política da actualidade. Desde que comentadores e jornalistas, analistas e especialistas, começaram a tratar-se pelo nome próprio, por tu não raras vezes (“ouve lá”, já ouvi duas vezes, em horário nobre e igual matéria), a avaliação do estado do Estado, a que chegamos e para onde (não) vamos, passou da Ciência Política à conversa de café.

É possível olhar para o esquartejado caso-TAP e pensar que ninguém tem razão? Pois, também estou nesses dias. António Costa avisou: habituem-se. Marcelo Rebelo de Sousa morreu pela boca, belíssimo ditado, olhem que eu sou, olhem que eu posso, olhem que eu faço, então faça lá agora, senhor presidente, ou cale-se para sempre. Como é que ninguém viu isto chegar também é espantoso. Sempre havia um lobo, mas não era Marcelo. Uma comunicação social alcoviteira, mais emp(r)enhada em entreter do que em informar, fez muito do resto, até chegarmos a este estado quase anedótico de coisas. Eu disse "quase"?

Ouve-se o líder do PSD e aquilo é tudo tão pobrezinho, tão pobrezinho, que já desconfio que Marcelo Rebelo de Sousa tem mais medo de Luís Montenegro do que de André Ventura. Valha-nos Deus… Um qualquer.


sábado, 13 de maio de 2023

Hugo Lopes

Já li isto três vezes. Continua a parecer-me uma história incrível. Tempo e sensibilidade, arte e talento. A Esperança é caprichosa, mas resiste; insiste. 



Transcrevo o artigo da Bárbara Reis, onde os descobri:


"Na dieta de cinco minutos diários de Twitter e LinkedIn, tive a sorte de apanhar o post de Carlos Diniz, professor na Universidade Nova SBE, em Carcavelos, onde conta esta história:

“Ontem à tarde, ao entrar na Nova School of Business and Economics vi isto. É impossível ficar indiferente.”

“Isto” é um vídeo de um rapaz a tocar no piano de cauda que há no átrio da universidade uma música que faz lembrar The Sacrifice, de Michael Nyman. Lembra-se da banda sonora do filme O Piano, de Jane Campion?

O professor ouve, fica impressionado e vai falar com o rapaz. Numa escola onde 60% dos alunos são estrangeiros, dirige-se-lhe em inglês:

May I film you playing?

Yes…

What’s your name?

— Hugo.

— És português?

— Sim.

— És aluno aqui da Nova SBE?

— Não.

— Como é que vieste aqui parar?

— Piano público.

— Que idade tens? Estudas?

— Tenho 21… gostava de acabar o 9.º ano… Gostava de seguir e estudar electrónica. Mas não dá… vidas…

— Então e o piano? A música!? Isto que estás a fazer é incrível… Estás a tocar sem pauta… só de ouvido?

— O que eu queria era estudar… Piano aprendo sozinho em pianos públicos. Tenho mesmo vontade de tocar.

— Como é que descobriste este piano?

— Fui copeiro no restaurante aqui em cima… agora estou à procura de emprego.

No fim do post, o professor faz mais duas coisas. Partilha a morada de Hugo Lopes, o copeiro/pianista, no Instagram, e diz que, “mais tarde, soube que a ideia do piano público foi do Pedro Santa Clara”, que “houve quem tentasse que fosse vedado e trancado”, mas que “não deixaram!”.

Fui à conta de Hugo Lopes no Instagram (hugo_cloud.g) e lá está ele a fazer o mesmo que fez no átrio da Nova SBE. A tocar em pianos públicos. Há um Yamaha de cauda onde, parece-me, ele tocará com frequência. O piano está dentro de uma loja de roupa, parece ambiente de centro comercial. Vêem-se as roupas nos cabides e os cartazes com as promoções.

Num vídeo, Hugo Lopes toca Dramatic Piano Music, Snowball Effect que — vi depois na Internet — é um tutorial popular. Noutro, na mesma loja, toca Una Mattina, que Ludovico Einaudi escreveu para o filme Intouchables. Há tutoriais dessa música no YouTube, como há tutoriais para aprender a tocar Nyman que, quando eu era adolescente, todos no meu liceu conheciam, independentemente do tipo de música de que gostavam (eu nunca gostei desse minimalismo delicodoce, mas isso é irrelevante).

Escrevi a Hugo Lopes, mas ele deve estar a trabalhar na copa de um bar e ainda não me respondeu. Queria saber se alguma vez teve aulas de piano.

Como não sei nada de música, gravei no telemóvel e mandei o vídeo a dois amigos pianistas que, como são artistas, não estão no LinkedIn. O primeiro diz que sentiu que “aquilo não tem escola, é dele, é visceral, vem de dentro” e que a música “contínua, circular, que parece que não vai acabar, é como se ele dissesse: ‘Só estou aqui a tocar porque preciso mesmo de tocar’”.

​“Ele é bom”, diz o primeiro pianista​. ​​“Se nunca teve uma aula de piano, ele é extraordinário.”

O outro pianista foi ainda mais veemente. A medo, disse-me que veria o vídeo, mas que “as pessoas muitas vezes dizem: ‘É incrível’, ‘isto e aquilo’ e eu vou ouvir e é muito banal ou mau. Mas manda que eu vejo”. Passado um bocado, liga e diz: “Olha, foi uma surpresa. Ele é impressionantemente musical”, “tem imenso talento” e “até alguma elaboração técnica”.

Resolvida a primeira parte: o miúdo que trabalha na copa do bar da Nova SBE é bom pianista.

Agora a segunda: impressionou-me a frase “tenho mesmo vontade de tocar”. Como Hugo Lopes não tem dinheiro para um piano, sai de casa e vai tocar para pianos públicos.

Vai tocar para a rua porque tem de tocar. Há o talento e há o “talento da determinação”. Hugo Lopes tem os dois.

Sim, esta história serve para iluminar Hugo Lopes e ver se alguém se inspira e inventa uma forma de o pôr numa escola e a ter aulas de piano e de música.

Mas também serve para outra coisa: imaginem as nossas cidades com pianos públicos como o da Nova SBE.

Há uns anos, em Praga, fiquei a ouvir um homem tocar num piano de parede que estava encostado na lateral de um museu, cá fora, na rua. Eram umas sete ou oito da noite, as pessos andavam de um lado para o outro, o homem estava de sobretudo, tinha uma mochila aos pés, percebia-se que tinha saído do trabalho e ia para casa. Parou, tocou 15 minutos e foi-se embora.

Vi o mesmo em Berlim. Em Viana, no Verão, há pianos de cauda na Praça dos Direitos Humanos e no bairro dos museus, uma ideia do projecto Open Piano, e desde 2018 que o festival Wir Sind Wien (Nós Somos Viena) leva um piano de bairro em bairro no Verão.

Em muitas cidades de muitos países, vêem-se pianos em lugares públicos com o letreiro “Community piano — stay and play” ou simplesmente “Play me — I am yours”.

Em centros comerciais, lojas de roupa, estações de comboio, aeroportos, centros culturais, hotéis, universidades e na rua.

Já sei — não se pode confiar nas pessoas, eles vão estragar o piano em dois tempos, isto é irrealista, bom nos países ricos, impossível em Portugal. Certo.

Mas imaginem um piano na Rua de Santos-o-Velho, em Lisboa, em frente à embaixada de França. Está lá sempre um polícia. Ou um piano no Largo Conde Pombeiro, onde está a embaixada de Itália. Ou na Rua António Maria Cardoso, onde está o Consulado-Geral do Brasil. Ou na Avenida de França, onde está o consulado-geral do Brasil no Porto. Ou na Rua Alexandre Herculano, onde está o consulado de Angola no Porto. Ou na Rua Portas Serra, onde está o Consulado de Cabo Verde em Portimão. Ou na Avenida Ministro Duarte Pacheco, onde está o consulado de Espanha em Vila Real Santo António.

E por aí adiante. Podem acrescentar-se as mil instituições, empresas públicas ou bancos privados, que têm protecção policial 24h por dia.

Fica resolvido o risco de vandalismo.

A seguir, dirão: é muito caro, não há dinheiro para pianos, que luxo asiático, o país está em crise. Calma. Isto não é fazer um elevador no pé da ponte 25 de Abril. Um piano acústico vertical da Yamaha — não é um Steinway, mas é consensualmente bom — custa quatro mil euros se for usado, sete ou oito mil se for novo.

A Câmara Municipal de Lisboa não tem oito mil euros para oferecer um ou dois pianos à cidade? O mesmo para a Câmara do Porto ou a Câmara de Vila Real Santo António. É possível comprar um bom piano de cauda por 20 mil euros. São mais caros e pouco práticos para pôr na rua. Mas são óptimos para pôr nas estações de comboio, nos aeroportos e nos centros comerciais. A beleza que seria o futuro Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian reabrir com um piano público. Já imaginou?

Os leitores sérios, que lêem todos os dias, podem ir a uma biblioteca pública levantar um livro novo sempre que querem. Devolvem e requisitam livros sucessivamente. Não gastam dinheiro, mas não deixam de ler por não terem dinheiro ou por não terem estantes suficientes ou por, simplesmente, não quererem comprar livros todas as semanas. Porque não usar o mesmo princípio para quem gosta de tocar piano e não tem dinheiro ou casa para ter um?

Um piano público é mais do que acesso à música. É educação pela arte, é salvar crianças da pobreza pela música, é elevador social através da educação e da cultura, é qualidade das nossas cidades. Há jardins públicos e há bibliotecas públicas — bens de beleza e cultura. Porque não também pianos públicos?

Um piano por escola seria inteligente e uma maravilha, mas é uma utopia. Mesmo um piano por agrupamento escolar custaria quatro milhões de euros. Há 800 em Portugal. É dinheiro.

Podemos começar por 20 pianos públicos, de norte a sul do país. Entre público e privado, há com certeza 100 mil euros em Portugal.

Para Hugo Lopes ter aulas de piano, claro, é preciso bem menos."

Bárbara Reis, PÚBLICO

 

quinta-feira, 11 de maio de 2023

quarta-feira, 10 de maio de 2023




 

sábado, 6 de maio de 2023

Porque sim, porque alguém mo recordou



"Estar cheio de si mesmo, não no sentido do orgulho mas da riqueza, ser atormentado por uma infinitude interior e por uma tensão extrema: nisso consiste viver intensamente, até nos sentirmos morrer de viver. Tão raro é esse sentimento, e tão estranho, que deveríamos vivê-lo aos gritos."

Emil Cioran

terça-feira, 2 de maio de 2023

sábado, 29 de abril de 2023

Hoje, o Anjo que, desde há anos e do Céu (às vezes acredito no Céu), vela por mim na estrada, tenho a certeza, porque me amou profunda e pacientemente num tempo em que eu nem sabia bem o que era isso de amar – salvou-me (desta vez) do imbecil em marcha-atrás na auto-estrada, num corredor da via verde único, comigo atrás e a chegar. Há manobras tão estúpidas, tão estúpidas, que custam a crer.

Aqui as noites têm sido mornas e silenciosas. Excepto pelo vento, em liturgias de capela, soprando grave por entre os tubos enferrujados e sujos dos andaimes acabados de montar na frente do prédio de quatorze andares. Uma vertigem. Juro que há noites em que o meu vento canta assim



"Pouco ortodoxo", "bizarro"...

…vidros partidos e gente trancada na casa de banho. Esquecimentos, confusões, omissões, mentiras descaradas e pareceres da semântica. Mensagens por WhatsApp a autorizar indemnizações de meio milhão de euros, exonerações por telefone, tão bom e moderno e banal – há dias, contaram-me de um casamento de quinze anos, com duas filhas pequenas, que acabou por sms, lamento muito apaixonei-me por outra pessoa e vou viver para (não interessa nada), over and out –, tudo nesta comédia trágica da TAP e seus mosqueteiros há-de ser muito regular, eu é que não chego lá. Valha ao desgoverno de António Costa o papão do Ventura e Companhia, como, aliás, ele bem sabe e por isso não se cansa de os evocar. Ou invocar?

Alguém de quem gosto muito diz-me que o melhor remédio para acabar com aquele partido de arruaceiros seria enfiá-los no Governo com uma pasta complicada, entre as Finanças e a Saúde, e deixá-los mostrar do que não são capazes. Talvez, não sei. Sei que o CHEGA me parece bastante mais inofensivo do que outros partidos congéneres e André Ventura não é Donald Trump nem Santiago Abascal. É preciso um certo estômago para aquilo, daí aqueles problemas abdominais que costumam adoecer Bolsonaro sempre que a coisa fica preta para o lado dele (o vídeo em que questionava o sistema eleitoral brasileiro depois da sua derrota foi, afinal, publicado por engano, era para si mesmo apenas, claro, a sacanagem, para levar a bom porto, exige uma certa coragem).

Se isto não é uma degradação absoluta da nossa Democracia...


sexta-feira, 28 de abril de 2023



“E penso que a chamada inteligência artificial enquadra-se muito bem nisto. [As ferramentas de IA] estão a induzir no público uma sensibilidade que nega fundamentalmente o objectivo da ciência. De que vale compreender o que quer que seja quando se pode analisar um sem fim de dados e prever o que vai acontecer? Este é o mais radical ataque ao pensamento crítico, à inteligência crítica e particularmente à ciência que eu alguma vez vi.”


"A legislação não ajuda. Não podemos proibir o Mein Kampf [livro de Adolf Hitler]. O que se tem de fazer é encorajar as pessoas a lê-lo e a descobrir o que é. Quer viver neste tipo de mundo? Isso é o que se faz."


Noam Chomsky, PUBLICO


 



quinta-feira, 27 de abril de 2023



Amava-as assim, superficialmente. Sem audácia. Com a leveza oca da espuma desfeita pela brisa do mar, não com a urgência do rio cheio que cava a terra, sofregamente, lavrando margens e leitos numa ânsia de fim e de regresso. Um amor breve, que não magoa porque nunca sangra e, por isso, nunca deixa marcas, nem memória, nem saudade.


Da Fúria...

O(s) papelucho(s) do Chega no Parlamento, com as suas bandeirinhas da Ucrânia mais os cartelinhos anti-corrupção e os batuques de bancada para mostrar o que já se sabe que são, é para lá de ridículo. Não sei se serve para “envergonhar” Portugal, porque, em princípio, seria necessário mais do que um grupo de doze paspalhos, mesmo se deputados, para façanha tamanha. Sinto-me muito mais envergonhada por esta confraria patética, onde os principais representantes da Nação, seja lá o que isso for por estes dias, se comportam como miúdos no recreio gabando-se das últimas proezas, ou velhos decrépitos fazendo prova de vida. É tão penoso assistir àquilo que até me custa deixá-lo aqui exposto: fica a ligação, pelo menos enquanto não for censurado de vez. E o Presidente da República metido naquilo.

Miserável.


terça-feira, 25 de abril de 2023



Sobre o ombro do meu filho, o menino, curioso, espreita-lhe o livro aberto sobre o colo, páginas cheias de letras corridas como formigas num carreiro, incompreensíveis ainda para os seus minúsculos três anos: “ih, tantas palavras…”, num assombro quase confessional, baixo e sigiloso, uma pequena revelação.

Que idade é essa, em que perdemos a capacidade de nos maravilharmos com as coisas simples?


Sempre

 




sexta-feira, 21 de abril de 2023

Sei de segredos lavrados sobre o poente vermelho do Sol. Sei do deserto, do desejo, do rumor do luar nas noites nuas de fim de mundo, sal de lágrimas por abrir, dunas de estrelas cadentes, ondas de mar a morder-me no ventre, trilhos de versos por desbravar, e uma muralha de nuvens negras caminhando sobre as águas ásperas de Primavera adiada.


quinta-feira, 20 de abril de 2023

Os previdentes e os presidentes tomam de ponta
Os inocentes que têm pressa de voar
Os revoltados fazem de conta fazem de conta...
Os revoltantes fazem as contas de somar.

Embebo-me na solidão como uma esponja
Por becos que me conduzem a hospitais.
O medo é um tenente que faz a ronda
E a ronda abre sepulcros fecha portais;

Os edifícios são malefícios da conjura
Municipal de um desalento e de uma Porta.
Salvo a ranhura para sair o funeral
Não há inquilinos nos edifícios vistos por fora

Que é dos meninos com cataventos na aérea
Arquitectura de gargalhadas em cornucópia?
Almas bovinas acomodadas à matéria
Pastam na erva entre as ruínas da memória,

Homens por dentro abandalhados em unhas sujas
Que desleixaram seu coração num bengaleiro;
Mulheres corujas seriam gregas não fossem as negras
Nódoas deixadas na sua carne pelo dinheiro;

Jovens alheios à pulcritude do corpo em festa
Passam por mim como alamedas de ciprestes
E a flor de cinza da juventude é uma aresta
Que me golpeia abrindo vácuos de flores silvestres

E essa ansidedade de mim mesma me virgula
Paula de pátria entressonhada. É um crisol.
E, o fruto agreste da linfa ardente que em mim circula
Sabe-me a sol. Sabe-me a pássaro. Pássaro ao sol.

Entre mim e a cidade se ateia a perspectiva
De uma angústia florida em narinas frementes.
Apalpo-me estou viva e o tacto subjectiva-me
a galope num sonho com espuma nos dentes.

E invoco-vos, irmãos, Capitães-Mores do Instinto!
Que me acenais do mar com um lenço cor da aurora
E com a tinta azulada desse aceno me pinto.
O cais é a urgência. O embarque é agora.

(Ainda) Natália Correia


Chamo sempre àquele poema "Cântico do País Submerso”, que é o que sinto muitas vezes. Não é intencional: foge-me para lá o pensamento, e, com ele, a palavra. Não interessa nada, emerso ou submerso, acima ou abaixo, é intemporal. 

Não ouvi o “líder da oposição” renegar entendimentos e coligações com o partido cujo nome não deve ser pronunciado, mas se calhar apenas por isso, impronunciar, já que o líder daquele bando de arruaceiros de bem veio acusar o toque – afinal, sempre se reconhecem como “políticos racistas”, “xenófobos”, “oportunistas” e “populistas”. Ou isso, ou Montenegro não quis dizer o que efectivamente não disse, de onde, até às próximas eleições, a aritmética dirá com quantos desses se faz uma nova geringonça, no caso, à direita.

Há pouco, vi numas imagens de televisão um dos filhos de Jair Bolsonaro (diziam as legendas, não conheço a fera), fazer peito para um outro deputado com idade, talvez, para ser pai dele, o que não tem qualquer relevância, na verdade, e nem prestei muita atenção ao que se dizia, mas assaltou-me uma espécie de revelação do chiqueiro, pardon my french, em que se pode vir a tornar o nosso Parlamento se (quando?) o Chega chegar ao Governo – em vez de andarem aos murros entre si, sempre podem atirar-se, literalmente, aos deputados das outras bancadas. Pancadaria vivinha. Um luxo. A Democracia encarcerada entre a parede de uma endogamia política em avançado estado de decomposição e a espada desses valentes cavaleiros da pátria, cruzados do bem, ámen. Venha, finalmente!, o Diabo e escolha, que eu já não me sinto capaz.

Ouvi alguém defender que apenas Passos Coelho ou Carlos Moedas podem salvar ou resgatar o PSD, mas Passo Coelho ainda não foi perdoado, creio, e Carlos Moedas, enfim, nem sei o que dizer; a montanha pariu um rato, talvez.

Por estes dias, um fotógrafo recusou um primeiro prémio num concurso de fotografia a que se apresentou com uma imagem gerada por inteligência artificial com objectivo de demonstrar se “competições do género estão preparadas para discriminar imagens criadas através de inteligência artificial”, concluindo que “não estão”, apesar de um “representante da Organização Mundial da Fotografia” ter confirmado que “Boris Eldagsen tinha assumido a “cocriação” da imagem  para a qual a inteligência artificial também contribuiu”Estou confusa, e não é pela fotografia, que me parece bastante artificial. Mas eu não sou de retratos, sou de paisagens ou, no extremo oposto, de pequenos detalhes, não sei nada de retratos a não ser que quase me intimidam. E aquelas mãos… são estranhíssimas aquelas mãos, parecem-me suficientemente artificiais. Gosto de mãos naturais.

Por falar em estranho, e eu ainda estranho: uma editora americana declinou publicar “Pão de Açucar”, de Afonso Reis Cabral (de quem nunca li uma obra e desconheço tudo, excepto a circunstância de ser trineto de Eça de Queiroz), porque não foi capaz de encontrar um leitor de sensibilidade LGBTQI+ que lesse em português. Espero que todas as edições revistas por “leitores de sensibilidade” venham a exibir uma marca, um selo, uma prova do crime que alerte leitores insensíveis como eu para o perigo da estupidificação em massa; em marcha.

O mundo avança como um tornado. Violento como sempre, veloz como nunca. Perco, várias vezes, o fio condutor, e não há um dia em que não agradeça o meu lugar de privilégio  o meu trabalho, as minhas viagens, os meus livros, os meus Meus –, consciente de quão frágil esse lugar pode ser. Basta o humor da Terra ou de um lunático sedento de poder e de vingança a quem devemos apaziguar convencendo a Ucrânia esventrada, queimada, massacrada, a render-se em prol de uma certa ideia de paz. Não mudei de opinião em relação à guerra de Putin, mas percebo melhor o pragmatismo, mesmo que cínico, dos que defendem essa coisa a que chamam Realpolitik é um trabalho sujo, mas alguém tem de o fazer – do que a indignação dos que apontam à hipocrisia e aos interesses camuflados e tenebrosos dos EUA/NATO amparados pela subserviente UE. Não é que eu duvide das más intenções destes também, não duvido nada, mas, se fizemos do mundo este lugar perverso, prefiro viver sob um regime que, sendo muitíssimo imperfeito e maligno demasiadas vezes, ainda assim, dá-me voz. Para concordar ou discordar, aceitar ou rejeitar. É muito confortável bradar contra a hegemonia intolerável de países democráticos sem correr o risco de cair de uma janela, ser envenenada, encarcerada, espancada, e outros mimos do género. 


"Natália é Quando uma Mulher Quiser"



quinta-feira, 6 de abril de 2023

Demitam-se, ou Demitam-nos

Não sinto qualquer simpatia, nem empatia, por quem, vivendo em democracia e em liberdade (tanto quanto as duas sejam possíveis nos seus incontáveis desmandos – diria “incontornáveis”, mas estou cada vez menos segura disso), se manifesta com intencional violência, destruindo, incendiando, mutilando, como se vê recorrentemente nas ruas de Paris e arredores a propósito de tudo e de nada. Mas posso sentir repúdio idêntico por quem – e aqui me incluo, por absurdo que pareça –, nessa mesma liberdade democrática, tolera ao poder político eleito nas urnas o que temos vindo a tolerar a este poder político nos últimos tempos.

O caso TAP é escabroso, mas é o retrato clarinho clarinho do abuso, do menosprezo e da leviandade com que o Governo de António Costa, ou o PS de António Costa, ou talvez as duas coisas juntas e outras antes destas, tratam a cousa pública e, naturalmente, os dinheiros públicos; no que toca a dinheiros públicos há uma ligeireza criminosa cuja responsabilidade nunca se apura, dos trezentos mil euros do pavilhão do senhor Moutinho aos um ponto trinta e cinco milhões de euros daquele outro senhor, o Maximilian Otto Urbahn – quinhentos mil euros para Alexandra Reis mal chegam para os sapatos Louboutin que tantos dentes fizeram ranger. E veremos em quanto será o Estado obrigado a indemnizar Christine Ourmières-Widener; depois dos três e não sei quê mil milhões de euros que doámos colectiva e serenamente para salvar qualquer coisa que era estratégica e fundamental para o país até deixar de o ser exactamente com a mesma veemência.

O Presidente da República não se atreve a dissolver o Parlamento porque não confia em Montenegro nem um bocadinho, e não é apenas pela inevitável aliança que o PDS há-de forjar com o Chega: sou capaz de apostar que nem o próprio Montenegro se sente à altura do colossal desafio, governar um país ingovernável. "Bom dia, sei que isto é um incómodo para ti mas não podemos mesmo perder o apoio político do Presidente da República. Ele tem-nos apoiado no que diz respeito à TAP, mas se o humor dele mudar, tudo se perde. Uma frase dele contra a TAP ou o Governo e ele empurra o resto do país contra nós. Não estou a exagerar. Ele é o nosso principal aliado político, mas pode transformar-se no nosso pior pesadelo". Espantoso. E não há um abalo. 

Pasmo com a postura quase cândida – mas os ingénuos somos nós – daqueles que ainda são capazes de vir a público defender, sem gaguejar, a idoneidade destas personagens de tragicomédia, como Pedro Delgado Alves no seu frente-a-frente semanal com Miguel Morgado, e Deus, se existir, é testemunha do que me irrita a inflamação discursiva de Miguel Morgado.

Não imagino como será possível ao Presidente da República – se não ao primeiro-ministro antes dele – aguentar este desgoverno até ao fim da legislatura. É verdade, só de imaginar ver o Chega integrar um próximo Governo da República Portuguesa dá-me náuseas. Desprezo gente capaz de defender, de promover, a perseguição de outra gente apenas pela cor, pelo credo, pelo berço, pelo género, pelos actos criminosos de alguns dos seus, o que não é o mesmo que aceitar o exacto oposto, dos géneros socialmente construídos aos leitores de sensibilidade, mas, de algum modo, chegámos aqui: se não é preto é absolutamente, visceralmente, branco; tentar encontrar pontes de entendimento é traição, amamo-nos ou odiamo-nos, e nunca foi tão fácil, tão simples, pese embora a garantia de muitos de que o mundo sempre foi assim de medonho, provam-no a História, os clássicos da literatura e os sketches dos Monty Python, nada deste desvario é de agora, e a internet, onde as mesmíssimas velhas injúrias viajam à velocidade da luz, tem muito pouco a ver com a tragédia. Educação. Seremos salvos pela Educação. Sou Mulher, sou Mãe, e, como se não bastasse, ganho a vida a (tentar) ensinar – nunca poderia desmerecer a Educação. Simplesmente, encontro-a demasiado lenta para os dias que correm, bela, mas perigosamente lenta, e os dias correm lestos e odiosos.