terça-feira, 12 de setembro de 2023

O Atlas não se conta. É preciso ter lá estado, no meio daquele nada em estado bruto, embriagante, quilómetros e quilómetros de estrada que às vezes nem é bem sem avistar uma alma viva e, nada mais parar o carro – todo-o-terreno, e um jerrican na mala porque nunca se sabia –, ver surgir gente sabe-se lá de onde, crianças curiosas que caminham horas para chegar a uma quase escola e conversam e falam francês. Pedem esferográficas, a lata vazia de rebuçados e umas sapatilhas velhas, que trazemos de reserva, porque dizem Nike, e os miúdos caminham quase descalços. Os desfiladeiros de rocha vermelha e árida, e, aninhadas nos seus vales pequenas aldeias de adobe, casas cor-de-rosa, cor da terra; ao longe, parecem de brincar, pouco mais do que barro moldado à mão, e, ainda assim, algumas com três e quatro andares e um sistema rudimentar de saneamento básico: um canal escavado na parede, do último ao primeiro andar, para um buraco enterrado no chão. Junto aos rios há verde, às vezes palmeiras, às vezes não chegam a ser rios, e tudo se mistura num cenário irreal de violentos contrastes. Por algum motivo não recordo os homens dessas minhas viagens pelo Atlas, na minha memória moram apenas as crianças; e, das mulheres, a das mãos de barro também, que nos ofereceu do pão acabado de cozer sobre a pedra quente – é bom, muito bom – os olhos fechados num sorriso pela alegria de partilhar o pouco que tinha, recusá-lo seria um insulto. A essa gente perdida nas entranhas da terra não há ajuda que chegue.