Num primeiro instante, achei que me tinha enganado e que
estava a ler, afinal, o suplemento humorístico do Público, aquele
formidável Inimigo que, tantas vezes, me delicia com uma
pitada de humor negro. Tive que ler a notícia várias vezes, em vários jornais
de referência, para ter a certeza absoluta que, não, não era piada. O senhor
Neto de Moura e a senhora Maria Luísa Arantes, parece que são juízes, assinaram
uma sentença em que, entre outras coisas, citam a Bíblia para atenuar um crime
de violência doméstica. Ainda incrédula, afinal, o jornalismo de referência
também padece dessa nova tendência denominada fake news-barra-alternactive
facts, fui ler o acórdão, preto no branco. Deixo aqui, transcrito desse
acórdão, parte do que os supracitados senhores não se inibiram de escrever e,
no fim, assinar: “Este caso está longe de ter a gravidade com que,
geralmente, se apresentam os casos de maus tratos no quadro da violência
doméstica. Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de
adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo
atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera
é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera
deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal
(Código Penal de 1886, artigo 372.0 ) punia com uma pena pouco mais que
simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse.
Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é
uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as
mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com
alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado
pela mulher”.
Só para ter a certeza que percebi: o caso não tem a gravidade de
outros de violência doméstica, porque o adultério da mulher é um gravíssimo
atentado à masculinidade; vivêssemos nós noutras sociedades e
noutros tempos e a senhora poderia ser apedrejada até à morte;
e, morte houvesse, mesmo nesta sociedade, a pena para o assassino, perdão, para
o homem, assim vexado e humilhado seria meramente
simbólica. Mais, a nossa sociedade condena, ainda e sempre, ámen, fortemente, o
adultério da mulher! Perdi-me um pouco na parte das “mulheres honestas” são as
primeiras a “estigmatizar as adúlteras”. Ou não sou tão honesta como pensava ou
não frequentei a mesma escola que a excelentíssima senhora doutora juíza Maria
Luísa Arantes.
Não sei se me ria se chore. Sou tão ignorante em matéria
de Direito que não fazia ideia que, em Portugal, ou, pelo menos, na minha bela
cidade do Porto (o acórdão é do Tribunal da Relação do Porto, estou
profundamente envergonhada…), não fazia ideia, dizia, que a Bíblia fazia parte
daqueles calhamaços que os senhores advogados e os senhores juízes têm que
estudar e a que podem recorrer para elaborar sentenças e redigir acórdãos.
Estamos sempre a aprender…
Entretanto, parece que Conselho Superior da Magistratura já reconheceu que as proclamações, vulgo disparates, do senhor Neto de Moura e da senhora Maria Luísa Arantes (já sei, são juízes, não sei porquê, o título académico soa-me mal; mas, pensando bem, também não sei se merecem o “senhor” e a “senhora”…) são “arcaicas”, mas, não pode intervir. Parece que nem todas as barbaridades que cospem alguns juízes são passíveis de assumir relevância disciplinar. Já procuraram bem na Bíblia? Às tantas…