segunda-feira, 30 de novembro de 2020


"De tudo o que é escrito, amo apenas aquilo que alguém escreveu com o seu próprio sangue."

Friedrich Nietzsche


Dessas palavras que se escrevem a sangue, escolho cuidadosamente as que parecem falar-me ao ouvido; saber quem sou. Ouço-as uma e outra vez, sabendo bem que me deixo confundir. Se não fosse o ar frio da manhã, que aquieta, por momentos, o meu mundo, o próprio vento me traria pedaços das histórias que guardo em segredo.

domingo, 29 de novembro de 2020

Qualquer coisa sobre a (ir)racionalidade dos afectos

Há muito tempo (creio que desde que tenho consciência da minha finitude) que me decidi pela vontade de, quando morrer, ser cremada. A ideia do meu corpo desabitado fechado numa coisa a que se dá o nome de caixão, onde, depois, desceria às entranhas da terra, entre arremessos de flores, para aí apodrecer entre vermes, em repouso eterno, causa-me mais repulsa do que a certeza de que, um dia – lá longe, muito, muito longe, espero – a minha vida, como todas as outras vidas, chegará a seu termo. Como não acredito na reencarnação, não preciso de preservar nada mais para além da certeza de ter valido a pena. O tempo que por cá passar. Também não tenho nenhum desejo especial para o que sobrar de mim. Desde que não me lancem ao mar: prefiro continuar a admirá-lo de longe, se se der o caso não provado ainda de restar um leve vestígio de memória entre os átomos de que me faço.

Morrer anonimamente há-de ser uma bênção. Talvez mais do que viver anonimamente. Ouvir gente desconhecida falar dos nossos – mesmo que os nossos se tenham lançado por vontade própria nos braços mercenários do mundo, ou o mundo os tenha arrancado a ferros à mudez de uma existência livre de lendas em vida e em morte – é uma insolência. Mesmo quando esse falar se faz de admiração exaltada, incontida. Os tributos que se devem (devem?) aos que morrem publicamente, vertidos em elogios fúnebres que se multiplicam abruptamente em editoriais, artigos de opinião, entrevistas curtas, posts nas redes sociais e toda uma parafernália acrescida de revisitações das vidas que se apagam violentamente, deixam muitas vezes a impressão (injusta, talvez) de que só a morte é capaz de destapar as virtudes encobertas até aí. Há um certo pudor em falar mal dos mortos e talvez seja esse pudor a permitir o exagero da vénia.

Os últimos dias encheram-se de homenagens histéricas a Diego Maradona. Histéricas, não necessariamente no sentido detestável do termo (mas também). Eu – que não gosto especialmente do futebol jogado e abomino a veneração pornográfica que se oferece, quer ao espectáculo em si, quer aos seus protagonistas – posso perceber que haja quem lamente destemperadamente a morte de alguém que, pelo que me dizem, foi o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Mais do que um génio, um deus. E, quando se dedica algum tempo a admirar a Física em acção, na sua transmutação profana em golos e passes de bola arrancados às leis de Newton, é fácil deixarmo-nos enamorar pela magia dos equilíbrios escondidos nos misteriosos centros de gravidade. De que Maradona saberia muito pouco, aliás. Da parte teórica e aborrecida da coisa, entenda-se. É como a geometria por detrás de uma bela partida de bilhar, com a diferença de que ninguém enlouquece pelo melhor jogador disso do mundo. O futebol tem um lugar especial e cativo no delírio (anti-)desportivo colectivo, talvez por permitir que durante 90 minutos, pelo menos, os adeptos se portem com a indecência que o desporto tolera, com a complacência irresponsável de muitos. Para alimentar a ilusão – e o arrebatamento –, a arte não só não está ao alcance de todos, mesmo que se perceba muito da Ciência que comanda o jogo, como é (quase) possível acreditar que, por um breve momento, é a própria Ciência que se verga a esse génio endeusado. Que eu não honro, no que toca a "futebóis", não é ao que venho. Aflige-me sempre o culto de massas. Hiperbólico em quase tudo. A questão é outra. O Homem é bastante imperfeito (e aquele homem, em particular) e há umas imperfeições mais desculpáveis do que outras. Até onde pode chegar a admiração por alguém que, em algum momento da sua vida, ou numa vida inteira desses maus momentos, se portou como um imoral? Várias vozes se levantaram contra o exemplo de Maradona. Como assim, venerar um homem cheio de tantos pecados, mesmo que esse homem seja “el pibe de oro”, amado até pelo Papa Francisco (sendo que o Papa tem, pelo menos, a desculpa dos santos, que mandam amar o próximo como a si mesmo)? Um artigo publicado no The Guardian no passado dia 27 falava da facilidade com que se esqueceu a violência contra as mulheres, nas homenagens a Maradona. Como já antes se a havia esquecido, nos tributos a Sean Connery, que, ao contrário do génio da bola, admirei bastante em vida. Como continuar a ouvir as músicas de Michael Jackson depois de saber das denúncias dos abusos sobre crianças; depois de ver Leaving Neverland? Como ler Pablo Neruda, mesmo morto, depois de conhecido o relato, na primeira pessoa, da violação de uma mulher, no tempo da colónia britânica do Ceilão (e terá sido "apenas" essa)? Como é possível erguermos heróis sobre os escombros dos seus crimes?  Quantos anos precisam de passar para nos ser permitido perdoá-los? Pois, não sei bem. Não sei nada. Continuo a ler Neruda e a ouvir Michael Jackson, entre outros ultrajes; de que não constam, de facto, a devoção ao futebol, mas isso não me torna menos infame. Não há como branquear o lodo dos monstros que amamos e não partilho da tentativa de racionalização que alguns ensaiam sobre quem podemos ou não podemos homenagear, como se uma vítima fosse mais ou menos vítima de acordo com o estatuto do abusador. Nem acato bem a ideia de que o que é importante e é preciso é separar a magnificência da obra da miséria do autor: isso é só o que nos dizemos para nos redimirmos. Acho apenas que devemos aceitar a nossa parte da culpa. E que até os mais puros têm o seu lado bafiento, tenebroso. Mesmo quando nos querem convencer do contrário.


E desviei-me de quase tudo o que queria dizer quando comecei isto. Vinha principalmente falar de afectos, desses, capazes de nos desordenar a razão, se nos faltarem, e acabei na irracionalidade das paixões por que nos perdemos. Não é bem a mesma coisa. Tudo porque tropecei na notícia sobre o novo livro de António Damásio, enquanto procurava as minhas fotografias do belíssimo cemitério Mirogoj. Mais ou menos. Percebo que faço muito pouco sentido.





sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Fui apanhar uma corrente de ar.



Orçamento de(t)Estado

Diz-me como te orçamentas, dir-te-ei quanto duras.

De orçamento em orçamento até ao estertor (ou estupor) final.

Atrás de um queijo limiano virá quem da negociata do orçamento pior fará.


Podia continuar, mas acho que é mais ou menos isto. Entretanto, plagiei outro título, mas, desta vez, é meu, pelo que a culpa será menor. Espero.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Sobre coisas realmente abjectas

Segundo a organização internacional Save the Chlidren, nos últimos dez anos “a guerra matou ou mutilou 93 236 crianças”. Li esta notícia há dois dias, pelo que, hoje, muito provavelmente, aquele número já estará desactualizado. 

O sofrimento das crianças que (sobre)vivem em palcos de guerra – guerra mesmo guerra – é tão terrível, tão obsceno, que nunca seremos (nós, os ocidentais privilegiados; mesmo os “remediados”) capazes de imaginar o inferno que se vive nesses países. O esquecimento que dedicamos à miséria dessa gente desfeita pela acaso de ter nascido no lado errado do mundo deve ser uma forma de preservarmos a nossa sanidade mental. De outro modo, seríamos incapazes de levar uma vida normal, para lá do empecilho das máscaras e do abuso do Estado sobre o controlo da hora a que nos devemos recolher. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, mas, para uma insuportavelmente extensa parte da população mundial, essa igualdade e liberdade outorgada em declarações e decretos morre no próprio acto de nascer.

No mesmo dia e no mesmo jornal, li sobre as mais de 33 mil pessoas que fugiram para o Sudão em menos de três semanas: são etíopes que tentam, assim, escapar ao conflito que opõe o Governo de Abiy Ahmed à “Frente de Libertação do Povo Tigré”. O acordo de paz entre a Etiópia e a Eritreia provocou descontentamento entre rebeldes e, aparentemente, o adiamento das eleições legislativas e presidenciais motivado pela gestão da crise pandémica da covid-19 fez, ou desfez, tudo o resto. Podia ser só uma ironia.


E, por cá, o ano de 2020 já viu morrer 30 mulheres em contexto de violência doméstica. Até há uns dias, que o malfadado ano ainda não terminou. Embora, este ano, no que toca a este drama, não seja muito diferente de outros anos. 

Em alguns casos (invariavelmente, ano após ano), houve crianças a assistir aos crimes. Pergunto-me sempre – e, obviamente, não sou a única – por que motivo serão sempre as mulheres e as crianças as obrigadas a fugir e a viver escondidas dos seus agressores, quando deveriam ser estes a permanecer em casas, ou celas, de isolamento, privados da sua rotina de espancar porque sim, abusar porque o dia correu mal, matar porque tropeçaram noutra qualquer frustração que o mau génio alimenta. Há, no entanto, outro número assustador: o de jovens que acham "normal" a existência de violência no namoro. Controlar, proibir, enciumar-se, querer violentamente são, para muitos – ou, mais exactamente e desgraçadamente, para muitas – sinónimos de amar muito e amar bem. 


Ainda sobre a violência extrema sobre o outro – que, de tão banal e normal, deixou de chocar fora da orgia persecutória das redes sociais –, soube-se que a directora do SEF admitiu que Ihor Homenyuk foi torturado, evidentemente, mas achou por bem manter-se em silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto lhe foi possível e não considera demitir-se. 

Os contornos deste assassínio continuam a provocar-me náuseas. Pela morte e tortura de um homem, gratuitamente, às mãos de uns cobardes nojentos e por ser evidente que só se pode ser tão levianamente criminoso no exercício de um cargo de poder quando se goza de uma imensa sensação de impunidade dentro da instituição a que se pertence. Há tantas pontas soltas nesta história de horror, tanta indecência, que se tornaria insuportável num país que se quer civilizado. Mas, não parece ser o caso. 


E, não há muitos dias, a SIC Notícias exibia uma reportagem sobre suspeitas de negligência num lar ilegal na zona de Palmela. Negligência é um brutal eufemismo para o que ali se viu e ouviu. Não sei bem se a SIC deveria ter mostrado aquelas imagens ou não. Há sempre uma dúvida, quando a situação é tão grave que roça o absurdo. Às vezes desejo que exista isso a que alguns chamam Inferno. O bíblico. E que seja realmente eterno.

 

Olharmo-nos nos olhos sem desculpa. Para o bem e para o mal. Deve ser a única coisa boa que resulta de usar máscara grande parte dos nossos novos dias.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Entre Livros e Estórias

Nunca vivi longe do mar. Não sei se seria capaz de viver longe do mar. É uma intransigência (não é bem) um pouco desentoada, porque o uso apenas como abrigo e repouso. Para o ver e o ouvir nas histórias que conta. Como a daquele casal (do que parece ter-se convencionado chamar “de idade”) sentado em frente àquela imensidão de azul, cada um na sua cadeira portátil, de azul petróleo, a dela, de riscas coloridas como um arco-íris, a dele, colocadas lado a lado entre as pedras das arribas que o Sol inunda generosamente antes da hora do recolher. Conversam serenamente, com o mar como uma tela de fundo, os dois de jeans e pulôver de malha, encostados à altura do ombro, sem pressa, perdidos em si mesmos e, imagino, no balanço das ondas que o mar agita, também num compasso próprio e alheio a angústias. Não sei se já o faziam antes desta peste. A conversa íntima, de frente para o mar, entre as pedras e as ervas rasteiras, no conforto das cadeiras trazidas de casa. Nunca os vi antes, e passo naquela estrada tantas vezes que já lhes perdi a conta. Passo, fico, pasmo e, por vezes, também converso. Talvez o faça mais agora, sim. Talvez o façam eles mais agora, também.

Entre os que passeiam ao longo da linha de mar, não há ninguém de rosto enfiado no écran do telemóvel. Bem sei que, normalmente, quem procura encontrar-se com o mundo real – eventualmente, procurando refúgio em passeios ao ar livre, enchendo de vida a vida que se agarra com desejo – é menos tentado por distracções daquele género. Mas, ainda assim, creio que sempre vi algum prevaricador fortuito. Não é, agora, o caso. Há uma comunhão de vontades, um quadro perfeito, que dispensa devaneios estéreis.

 

Na tranquilidade aparente do tempo, aproveito para ajustar a leitura. Não costumo deixar um livro antes de o terminar. Mesmo quando me desiludo às primeiras páginas, o que nem era o caso daquele que tinha em mãos. Mas, estava desatenta e, a propósito de listas de livros que revisito e actualizo com regularidade, (re)apareceu-me o Cosmos de Carl Sagan. Já não sei bem quando o li pela primeira vez. Sei que foi há muitos anos e, apesar de o considerar um dos mais belos livros que já li – de Ciência, mas não só – apercebi-me de que nunca tinha lá voltado. Para ler outra vez, de uma ponta à outra, sem batota, como se fosse a primeira vez. Na verdade, não é difícil. Não é nada difícil. E sorrio sempre quando recordo a curiosidade teimosa de Eratóstenes. Aquela curiosidade astuta, de desconfiança sadia, não a dúvida torpe dos livres pantomineiros, enlameados no embuste novo-chique do finjo que penso, logo, se assim não penso, nada disso existe.


“Um livro é feito a partir de uma árvore. É um conjunto de partes planas e flexíveis (ainda chamadas “folhas”) impressas de rabiscos tingidos a negro. Um olhar rápido e ouvimos a voz de outra pessoa – talvez de alguém morto há milhares de anos. Através dos milénios, o autor fala, clara e silenciosamente, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. A escrita talvez seja a maior das invenções humanas, unindo pessoas, cidadãos de distantes épocas, que nunca se conheceram. Os livros rompem as amarras do tempo, provam que o Homem é capaz de realizar magia.”

Carl Sagan


Depois, há a ameaça de segredos revelados nas palavras que escrevemos. Que partes de nós entregámos? Quantas te bastam? Quantas me perdem?

sábado, 21 de novembro de 2020

Caminhos Cruzados

 

O cego vai batendo com a bengala nas pedras que dão forma à calçada bordada no passeio estreito e iluminado pelo radioso sol primaveril. Parece um pouco aflito, confundido, procurando algo que não se acha ali, mas devia, e, nessa ligeira angústia, roda sobre si próprio, ora à esquerda, ora à direita, sem nunca se distanciar demasiado daquele ruído metálico que a calçada devolve.

Do outro lado da rua, um homem atenta no desassossego urgente do cego. Encaminha-se para ele.

    -Precisa de alguma coisa?

   -Estou à procura da lavandaria, mas, parece-me que não é por aqui… - a bengala batucando, ágil e certeira, no chão e no rebordo do passeio, soltando notas, compondo sílabas desencontradas.

    -Há aqui uma lavandaria, um pouco mais à frente, eu levo-o até lá – e pega-lhe no braço, suavemente, orientando-o no caminho adiante.

Não chegam a meia-dúzia de passos. O cego sobressalta-se, olhando em frente, atento ao diálogo que arranca do chão a golpes firmes, experimentados. Estaca, teimoso, no passeio, “não, não é por aqui”, enquanto o homem insiste, “está logo ali, a lavandaria, já lhe vejo a porta de entrada”. Mas, o cego não vacila, não duvida, “não é por aqui”, e logo volta atrás, arredio e decidido.

  -Ó amigo, tenha calma. Eu levo-o aonde o senhor precisar de ir. Diga-me, exactamente, que lavandaria é essa, porque, aqui, não conheço outra além desta…

E o cego explicou, apaziguado, confiando no seu instinto e na bondade do homem.

    -Eu saio do autocarro, viro à direita, caminho uns poucos de metros à minha frente, viro novamente à direita e encontro logo a lavandaria…há dois degraus à entrada…

Então, os dois homens voltam atrás, juntos. Retomam o caminho a partir da paragem do autocarro e vão seguindo a memória do cego. A bengala vai à frente, matraqueando, marcando o passo, astuta e ligeira, materializando acordes que apenas o cego pode ler e decifrar.

   -Ah, parece-me que, agora, sim, já vou no caminho certo – alegra-se o cego, estugando o passo. O homem segue-o, expedito, suspendo daquela melodia a que não é totalmente surdo, mas que nunca chega a compreender.

Só mais uns passos, à esquina direita da rua, e, lá está ela, “sim, agora vou bem!”, a lavandaria com os seus dois degraus à entrada. De fora, não se percebe que há uma lavandaria no interior, porque a loja tem várias secções. O cego conhece-a bem, o homem nunca antes havia reparado nela.

    -Obrigado!

  -Ora essa…boa tarde! – e o homem volta à sua rotina, uma admiração alegre e prazenteira estampada no rosto.


(Numa normal Primavera passada)

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Admirável Mundo Novo

Plagiei o título (mais ou menos). Não sei se se pode. E nunca li o livro (mais exactamente, “ainda não"), o que é, além de uma vergonha, um risco, porque, nas próximas linhas, posso vir a plagiar mais qualquer coisa, desta vez de forma não intencional e com menos competência ainda.

Adiante.

Dizem-me que o Miguel Sousa Tavares fez uma não-entrevista ao André Ventura, mas não tive paciência para ver. Há muito tempo que gosto mais de o ler do que de o ouvir. Ao primeiro. O segundo é um charlatão vaidoso e oportunista, defensor do direito de dizer uma coisa e o seu contrário sempre que isso sirva os seus intentos (pois, se calhar, não é modelo único) e que só ainda não atingiu o estatuto de estrela do semi-homólogo americano porque ninguém leva muito a sério um durão (assim mesmo, em modo de adjectivo, nada de confusões) que tem como animal de companhia uma coelhinha chamada Acácia, ou lá o é. Mas Portugal é um prodígio para lá dos fenómenos do Entroncamento e dos entendimentos nos Açores e, como tal, André Ventura vai ganhando palco. Um imenso palco. Ansiávamos pelo nosso “fascista” popularucho com a mesma avidez com que esperámos pelo nosso primeiro caso de Covid-19. Aí o temos, cheio de “eu faço”, a não ser que não faça, “eu aconteço”, a não ser que não aconteça, eu ameaço e nem preciso de esbracejar demasiado porque a desorientação que se instalou (“tem algum amigo preto”; a sério?!), da comunicação social à classe política, aquém e além mar, serve todos os propósitos destes santos de pau oco que a Democracia também alimenta, porque a Liberdade é a bela e é o monstro do nosso descontentamento.  Não sei há quantos dias anda o André Ventura nas bocas do nosso mundo, mas, ultimamente, a cada vez que o vejo – de relance, numa ameaça de flash noticioso –, parece-me mais jovial, mais solto, mais de bem com a vida, e percebe-se porquê. Percebe-se que ainda não se percebe bem qual a melhor maneira de lidar com aquilo, como não se percebeu  ainda qual a melhor maneira de lidar com ex-actual-ou-actual-ex-presidente dos EUA, que continua na sua senda negacionista, mimada e birrenta, com o mundo suspenso dos seus humores e das suas partidas de golfe: que outro regime político seria capaz de parir tamanho espectáculo? Há as ditaduras, sim, mas começam a ser bastante aborrecidas. Nada como deixar o povo escolher. Desde que sejamos nós a escolher o povo que deve poder escolher. Sem qualquer confusão, portanto.

 

Entre outras venturas e desventuras, há boas (aparentemente) notícias sobre os avanços relativamente à milagrosa vacina que vai tornar o nosso mundo normal outra vez, seja lá o que isso for. Veremos se este normal que não se pode dizer novo dará lugar a uma realidade que, em não podendo vir a chamar-se de velha, se aproxime, pelo menos, de algo suportável. Também ouvi qualquer coisa sobre a necessidade de renovar o estado de emergência, sucessivamente, tantas vezes quantas as que forem necessárias, até “esmagar” a danada da curva que teima em desafiar a nossa capacidade de resistência. Menos mal que aguentamos, não é?, como já nos garantiram em ocasião anterior. Entretanto, quer-se impedir que profissionais de saúde abandonem o SNS rumo aos hospitais privados, que o tempo é de pandemia e de colapso iminente dos serviços, enquanto os colégios privados perdem professores para as escolas públicas, porque os professores a mais que Portugal tem há anos, afinal não chegam para garantir o anormal funcionamento das aulas em tempo de covid. E sei bem que tudo isto merece maior reflexão e cuidado, mas ando mesmo, mesmo com pouca paciência. Como toda a gente, provavelmente. Percebo, aliás, que não tenho sido sequer capaz de ler o livro que tenho em mãos. Vou virando páginas sem dar acordo do que se passa dentro, as letras como uns gatafunhos medonhos tingidos de um negro a que não acho graça. Falta-me a tranquilidade necessária para pôr ordem nas linhas, sorvê-las com o mesmo prazer com que tomo o café acabado de fazer, numa chávena de louça, amargo e forte, puro e intenso como algumas das melhores recordações. Suspendo-o, por isso. Ao livro, já que o mesmo não posso fazer aos dias, a estes dias, e aguardo que a tempestade esmoreça e se desfaça num vento inquieto capaz de mordiscar as folhas sem as rasgar e de apressar o mar sem o dilacerar. 

Também soube que a Hungria e a Polónia vetaram o Orçamento Comunitário e o Fundo de Recuperação, a "bazuca" com que a União Europeia pretende ajudar os Estados-membros a minimizar os efeitos devastadores da pandemia sobre a economia dos diferentes países. Victor Órban e Mateusz Morawiecki não querem ver o acesso aos fundos europeus condicionado a coisas miúdas, como o respeito pelas regras do Estado de direito. Não há-de ser grave. Não há regra que não tenha a sua excepção nem direito que não possa ser beliscado. Tudo vai acabar bem. Mas, enquanto não chegam melhores ventos, aproveito o sol de Outono, que prefiro ao de Verão (como prefiro o de Inverno) porque aquece sem estalar e deixa na pele uma carícia suave que me reconcilia com a obrigação de usar máscara, de dosear os afectos, de evitar abraços, de fingir que os dias se aguentam melhor se afogarmos a saudade numa manhã como a de hoje.

domingo, 15 de novembro de 2020

 

Entro aí sempre cheia de cautelas e saio sempre deixando-me pedaços. Há uma certa arrogância em pensar que podemos imaginar o tamanho da dor do outro; a dimensão do seu inferno. Na verdade, não sabemos nada. Excepto que há alturas em que o silêncio parece não chegar e, no entanto, as palavras parecem demasiado despidas. Quase ofensivas na sua simplicidade. Mas ainda acredito que há um tempo para sarar. Apesar da estridência obscena dos novos dias. 

domingo, 8 de novembro de 2020

Destes dias


Não conheço ninguém que viva num lar. Mesmo que seja possível, isso de viver num lar. Dizem que há lares que são mesmo Lares. Espero nunca vir a precisar, nem para mim própria, nem para os meus mais queridos. Até à presente data, os meus dois únicos familiares com necessidade de acompanhamento permanente numa determinada fase da sua vida tiveram a possibilidade, afortunada, de ficar em casa até ao fim da agonia. Na impossibilidade de afastar as doenças, terríveis as duas, o segundo privilégio foi a agonia não se ter prolongado por tempo demasiado indecente. Há um tempo minimamente decente para aguentar uma espécie de coisa que já não é vida. Para quem resiste e para quem assiste, impotente, mesmo que faça todo o possível para fazer muito mais. E quem passa pelo horror da experiência, passa por ela de forma diferente, pelo que não há muito mais a dizer. A não ser que não tenho medo de envelhecer. Creio que nem sequer tenho um medo estapafúrdio da morte. Tenho pena de deixar de viver, e tenho medo de deixar de viver muito antes da morte chegar. Comungo da ideia de que a morte não chega exactamente com o último sopro.

Entre os mais desprotegidos dos mais desprotegidos, continuam os mais velhos, os mais doentes e os mais pobres. Prepara-se outra etapa de combate à pandemia que, temo, ameaça tornar-se num outro remendo. Mas nada disto é fácil. Inevitavelmente, com o SNS à beira do colapso, o Governo decretou o recolhimento obrigatório em alguns dos concelhos com maior número de infectados. Parece que andamos a portar-nos muito mal. Talvez seja, não sei. Sei que andamos a usar as máscaras mal desde o início. Já não sei se isso chega para explicar tudo. Tenho tido – como todos – muita dificuldade em equilibrar o deve e o haver (se posso dizer assim) da nossa gestão desta pandemia que o final de ano não vai levar, afinal. Nossa, enquanto país, nossa, individualmente. Nesta fase, imagino, serão poucos os que ainda não conhecem alguém doente. No mínimo. Talvez sejam mais os que ainda não perderam ninguém para a doença. Para outras doenças, atiradas para um canto por esta. Cada um de nós terá tido a sua dose. Mais uma vez, pessoal e intransmissível. Acresce que também não vejo os meus pais há muito mais tempo do que queria – do que quereríamos e do que nos devemos – e debato-me entre a vontade de os abraçar e o medo de poder contaminá-los. Fala-se muito sobre a liberdade que os nossos pais e avós devem ter, impreterivelmente, de decidir se querem ou não abdicar dos seus afectos em favor de um imperativo maior que é viver sanitariamente o tempo que têm pela frente. Eu concordo com isso, mas só em parte. Ou melhor: não é tanto uma questão de concordar ou não concordar, é o que fazer com a culpa que fica depois, caso haja esse depois que ninguém deseja; que eu, pessoalmente, não quero sequer equacionar. Será egoísmo meu.

O celebrado milagre português – que, afinal, não foi bem – foi forjado sobre os ombros dos profissionais de saúde dedicados e com enorme espírito de sacrifício; parece-me bastante certo. Além, claro, da nossa vontade de ficar em casa; motivada pelo medo, sim. Maioritariamente, talvez. Do mesmo modo que, agora, por exemplo, muitas escolas se têm aguentado à custa da dedicação e espírito de sacrifício de professores e funcionários. Claro que não de todos, evidentemente, não há nenhuma classe profissional livre da sua nodoazinha de marca. Mas dos suficientes para o caos não ser maior ainda. Há funcionários a reduzir, por iniciativa própria, as suas pausas para almoço, para conseguirem (outro exemplo) limpar todas as salas entre horários de manhã e tarde, quando rodam as turmas. E professores a duplicar parte das tarefas, porque, aparentemente, em alguns concelhos toda a turma fica em casa quando há um ou mais alunos infectados e, noutros concelhos, só ficam em casa os alunos infectados: a restante turma continua com aulas presenciais e não há dois professores diferentes para o efeito. Entretanto, o Governo continua a falar nos computadores que chegam aos alunos mais carenciados, e há escolas aonde não chegaram, ainda, nem computadores nem professores. Evidentemente, um sistema de colocação de professores obsoleto e apodrecido pesa nas contas cada vez mais inconciliáveis.

E, sim, nos últimos dias andei obcecada com as eleições americanas. É-me indiferente (talvez "quase indiferente" seja mais honesto) o rumo da política na América, assunto sobre o qual percebo pouco mais que nada. Para mim, a questão não era essa. Há maldade e maldade, escuridão e escuridão, trevas para além das linhas que nos arrancam pedaços, ou da sombra negra das nuvens antes da tempestade perfeita. Donald Trump é maldade na sua forma nauseabunda. Ventura é um menino de fralda. É esse o grande legado de Trump. Não só por cá. Veremos por quanto tempo. Fico aliviada com a vitória de Biden (mesmo que Trump e a sua corja esperneiem e possam, ainda, ressuscitar), não porque Biden seja uma competentíssima promessa, mas porque tenho mais facilidade em explicá-lo a ele à criança que pus no mundo e que vou tantando educar. Não tem nada a ver com ser boazinha. Também já fui capaz de o ensinar a não bater em ninguém por sua iniciativa, aconselhando-o, contudo, a que se alguém lhe batesse primeiro, que pensasse duas vezes entre ir, ou vir, fazer queixinhas, ou defender-se também pela força física: da primeira vez, pode resultar bem em ambos os casos, mas é bem possível que apenas no segundo o problema se resolva logo de vez. Sou um mãe cheia de incongruências. Mas a vida sem os nossos demónios talvez também não seja bem vida.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Só porque alguém mo lembrou...

... e fui ouvir outra vez. Pronto, tirava de lá a Sarah Palin, se calhar.

Crónica de uma morte anunciada: a da Democracia Americana.

Pelo seu presidente in-chief, ainda. Ou in-shit, já não parece grande diferença. Trump é um homem miserável. Se ainda restasse alguma dúvida, bastava tê-lo ouvido (e visto) ontem. É inacreditável como ainda há, pelo menos, setenta milhões de eleitores americanos que o escolhem. Como ainda não existe, nesta altura, uma vitória clara, expressiva, do seu opositor.

O ainda presidente dos EUA jogou a penúltima cartada para se manter, histericamente, no poder. A última,  a mais desesperada, talvez venha a ser convocar, loud and clear, mais loud and clear ainda do que o stand back and stand by  atirado em directo, os seus rapazes e raparigas para um motim armado, que o segure na sua Sala Oval. A que sequestrou com a cumplicidade vergonhosa do partido republicano. E os elogios que tenho ouvido, por cá, às suas políticas enojam-me. Há uma diferença entre não alinhar no "politicamente correcto" nem em falsos moralismos - com que, muitas vezes, conocordo - e aquilo que Trump representa. O que se diria do homem se o homem fosse uma mulher.


Espero que Joe Biden ganhe estas eleições. Espero que as instituições americanas resistam, que haja um pingo de decência que, no limite há muito ultrapassado, haja alguém capaz de bater com a porta e dizer enough is enough e que a América vá a tempo de sarar. Eu, na minha arrogância enorme de achar que há uma linha que não poderia nunca ter sido cruzada.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

De manhã, ao acordar, há uma pequena fracção de segundo em que tudo parece vazio. Um estado de semi-inconsciência, muito ténue, fugaz, em que o mundo ainda não se abateu sobre mim e, por um minúsculo instante, não há mortos, nem números, nem distâncias, nem contágios ou contagens, nem ruína iminente. Nem saudade. Não há, sequer, o canto dos pássaros, nem os gritos esganiçados das gaivotas. Nem uma ameaça de sobressalto. Apenas um nada, imenso, de quietude, imediatamente antes do alarme.  

Despido o embuste, há um mundo em ebulição. Há uma linha de calendário, um ano miserável, sôfrego, calamitoso - espantoso, simultaneamente -, que não dá tréguas. Vivemos - nós, no presente - um momento histórico. Diz-se isso, muitas vezes: um momento histórico. Mas, este, é mesmo um tempo extraordinário. Gostaria de viver o suficiente para vir a poder olhá-lo com o distanciamento que merece. Para tentar entender o que, de momento, é absolutamente insano. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Alianças e Ameaças (não necessariamente por esta ordem e não mutuamente exclusivas)

Se Trump sair vencedor destas eleições, vou chorar. Se for Biden o vencedor, vou chorar na mesma. Só preciso de um rastilho que me permita reconciliar-me comigo mesma. Ainda não sei bem o que a pandemia e o confinamento fizeram de mim, mas pertenço àquele grupo de gente (seca e desagradecida, seguramente) a quem o Universo não deu qualquer sinal. Não descobri talentos adormecidos, não aprendi a fazer pão, não vi unicórnios nem ouvi chamamentos da Natureza e não tive uma epifania nem nada que se lhe assemelhasse. Não fui sequer capaz de bater palmas à janela, mas, neste caso, nem sei bem por que não me terei deixado levar pelo momento: continuo convencida de que a ilusão de que assistíamos ao tal milagre português ficou a dever-se mais à dedicação e capacidade de trabalho e sacrifício de muitos desses profissionais "da linha da frente" - que não passou apenas, é verdade, pelos profissionais de saúde - do que por uma gestão competente do pandemónio em que fomos metidos. Mas era essa, a da saúde, a frente mais visível, na altura e, sim, houve palmas merecidas. 

Enquanto a América continua a contar votos contra a vontade de Trump (antes de sair de casa, ouvi alguém dizer que Trump é como aqueles rufias espertalhaços - rufias espertalhaços sou eu que digo - que querem terminar a partida ao intervalo, desde que, nesse momento, estejam a ganhar), parece que o CHEGA está em conversações com vista a uma solução de governação nos Açores. Li, muito por alto, que o CHEGA-Açores quer, mas o Ventura não deixa, o que não deixa de ser uma coisa extraordinária. Eu preocupada com a América e o caos aqui tão perto.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Pequenos grandes milagres

Aqui

Tudo bons rapazes


Estou obcecada com o processo em curso para as eleições presidenciais americanas. Entre o estupor e uma espécie de fascínio macabro. Posso perguntar-me quinhentas mil vezes ou mais e nunca hei-de perceber como alguém com a dose mínima de decência consegue apoiar alguém como Donald Trump. Para o cargo mais alto da nação, quero dizer. Como personagem de entretenimento, é uma figura imbatível.

Na semana que terminou, apoiantes seus, de carro, perseguiram a caravana de campanha de Biden que se dirigia para um qualquer evento no Texas. Um dos veículos conduzido por um dos fanáticos adeptos de Trump abalroou, intencionalmente, um veículo conduzido por um dos apoiantes de Biden. Claro, ninguém está livre de ter um apoiante maluco. Mas, o caso não é esse. Com Trump, o caso nunca é só esse. Apressou-se, como sempre, a tuitar que adora o Texas, como já disse – no típico tom pateta e indecente fora dos moldes de um reality-show (aqui, já toda a gente sabe ao que vai), que espera por terça-feira para despedir Anthony Fauci. Como já antes tinha gozado com a deficiência de um jornalista, perante uma assembleia de idiotas que baba (no mínimo, que é o se pode ver) cada vez que o idiota-mor vomita qualquer insulto. Começo a ter mais “respeito” (com muitas, muitas aspas) pelos supremacistas brancos assumidíssimos, do que por aquela gente que se enche de sedas e folhos e botões de punho para dizer que Biden é que jamais – assim, em francês, com a elegância que se espera. E eu até gosto de francês. E até acho que há gente que merece ser gozada. À bruta.

 

Por falar em eleições, parece que os Açores vão ensaiar uma geringonça insular. Passada a quase apoplexia (se ainda não passou – e há gente para quem ainda não passou – passará agora) do PSD com a marosca política de António Costa, é tempo de tentar o mesmo. Como é sabido, todas as indecências políticas por que se rasgam vestes na oposição, passam a aceitáveis, e respeitáveis, quando fazem antever a conquista do tal Poder, seja lá o que isso for. O Poder. Até o CHEGA pode passar a, sim, sim, já chega para haver o entendimento que sempre repudiámos. O sistema é um nojo apenas enquanto não se lhe deita a mão e, na verdade, nesse aspecto, não parece haver grande diferença daquele partido para os outros.

E prepara-se outro confinamento. Pergunto-me quanto tempo mais (nos) vamos aguentar. O meu filho pergunta se eu acho que isto acaba alguma vez, como se eu soubesse alguma coisa sobre o assunto; mas, juro-lhe que sim, que vai acabar, claro que vai acabar, e abraço-o e encho-o de beijos enquanto posso (posso, não posso?), enquanto ele ainda me deixa. Há uma idade menos desgraçada para passar por isto, afinal. São estes 13 anos, em que já não se está a dar os primeiros passos neste mundo às avessas, mas também ainda não se chegou bem àquela maravilhosa loucura da adolescência. Como será? Viver a adolescência nestes tempos, sem poder cometer pecados, sem viver arrebatadamente, a primeira paixão, o primeiro beijo, a primeira mentira a merecer castigo?

Pela Europa, multiplicam-se as manifestações contra as restrições impostas pelos diferentes governos. Porém, há manifestações e manifestações. Há vontades e vontades. Não consigo perceber as lutas pela liberdade de fazer o que me apetece quando me apetece e onde me apetece que, mais coisa menos coisa, acabam em destruição porque sim. Manifestações violentas de gente que acredita em teorias da conspiração mirabolantes. Outra coisa são as manifestações pela liberdade de se viver do trabalho e não de subsídios, ou de caridade. Este equilíbrio – entre a economia e a saúde, no limite indecente da salvaguarda de ambas – é terrível de fazer. Não queria estar no lugar de nenhum daqueles que têm esta tarefa entre mãos, neste momento. Não sei se já não teria atirado a toalha e dado lugar a outro, com a quantidade de gente que sabe qual é a melhor estratégia a aplicar para tourear o bicho. Há quem julgue que se mantêm lugares exclusivamente pela ganância, pelo interesse próprio, pelo poder (ia dizer pelo prestígio, mas, creio que, em política, isso já não existe). Eu também. Excepto, talvez, em casos destes. Alguém consegue passar por tudo isto sem uma pontinha que seja de sentido de Estado e de serviço público? Se calhar há e eu estou só a ser demasiado ingénua, ou coisa pior.

 

Volto às eleições americanas. Ao contrário de outros, temo que Donald Trump ganhe, novamente, mesmo de forma lícita. Afinal, a liberdade – inclusive a de expressão – só está em perigo quando é ameaçada pela esquerda. Ou pelos terroristas islâmicos. O bullying como arma política, essa forma de combater os adversários da forma mais abjecta possível, pelo insulto de taberna, pela violência de gangue, pelo assédio mais rasteiro, isso é só a Democracia a funcionar. E, se calhar, é mesmo, o que torna tudo ainda mais tenebroso.

domingo, 1 de novembro de 2020

Sobre algumas mortes

Caminho sozinha e distraída pelas ruas estreitas do mercado. Terminei as poucas compras que não programei e tenho um tempo sem pressa, inútil, que posso desperdiçar a senti-lo correr, devagar, como eu. Não há muita gente, e o sol aquece sem sufocar, desenhando sombras traquinas que se esquivam à minha passagem para logo assomarem, adiante, em negro baço, sobre os umbrais das portas de madeira soberbamente esculpidas que se abrem para lojas de maravilhas amontoadas, de tesouros multicolores, como as cavernas de salteadores dos meus contos de criança. Um homem que nunca vi saúda-me e pergunta-me pelo meu marido. Sabe o seu nome e onde trabalha, e deseja-me um bom dia, que retribuo com um sorriso forçado, num espanto resignado. Passo pela velha sem idade, de chapéu de palha com tranças pretas de lã e a longa saia vermelha de finas riscas brancas, sentada no fundo da escada com a trouxa aberta, espalhada no chão, cheia de verduras mais frescas do que ela, os rabanetes em carne viva, os alhos duros e roxos, a salsa, os coentros verdes da esperança que se lhe escapa a cada dia. Sorri-me, desdentada. Acabo por comprar mais qualquer coisa. Há sempre mais qualquer coisa. Hei-de cruzar-me com algum menino descalço que se voluntariará para me transportar a pouca carga que carrego, a troco de uma compensação miserável; pelo menos, a mãe - ou uma irmã pouco maior que ele - terá com que preparar algo a que possam chamar uma refeição.

Uma algazarra miúda, a princípio, aproxima-se, arrastando um emaranhado de gente que brota, aos tropeções, de outras ruelas ainda mais estreitas. Reconheço os gritos estridentes, à laia de cântico tribal e agudo que afunila em sintonia com a multidão alvoroçada antevendo a desgraça. Encolho-me para deixar passar sem que me arrastem na sua pressa apocalíptica. Os gritos soam mais e mais alto, um frenesim atarantado, e atento ao fundo da viela, para onde todos correm numa aflição que me agonia. Num assombro, esperado por outros, um grupo de homens envergando túnicas brancas, imaculadas, irrompe por entre a mole de gente, sustendo uma liteira enfezada que mais parece levitar como um tapete voador sobre as suas cabeças. Num andor macabro, um corpo jaz como uma múmia, envolto num lençol alvo como uma nuvem de algodão-doce. A multidão atabalhoada, numa ordem que só a eles diz respeito, abraça a padiola fúnebre mais os seus gatos-pingados e parte sem nunca parar, em debandada, com o coro de gritos em música de fundo.

Preciso de um momento para me encontrar. Confundo o número de ruelas à direita e à esquerda, e ainda não me oriento bem na malha labiríntica da medina. Subitamente, os sacos pesam-me em penitência e sinto as unhas cravadas na palma da mão. Um menino puxa-me os sacos e pergunta se preciso de ajuda. Por uma vez, deixo que, antes de ir-se, me acompanhe até ao arco de pedra, à entrada, onde o sol me apazigua.


Porque, dizem, hoje é dia de finados, amanhã, no México, celebra-se o Dia dos Mortos, morreu  Sean Connery (uma enorme vénia, não há muito que precise de ser dito) e a Morte desassossega-me. Para lá do medo de morrer.