Caminho sozinha e distraída pelas ruas estreitas do mercado. Terminei as poucas compras que não programei e tenho um tempo sem pressa, inútil, que posso desperdiçar a senti-lo correr, devagar, como eu. Não há muita gente, e o sol aquece sem sufocar, desenhando sombras traquinas que se esquivam à minha passagem para logo assomarem, adiante, em negro baço, sobre os umbrais das portas de madeira soberbamente esculpidas que se abrem para lojas de maravilhas amontoadas, de tesouros multicolores, como as cavernas de salteadores dos meus contos de criança. Um homem que nunca vi saúda-me e pergunta-me pelo meu marido. Sabe o seu nome e onde trabalha, e deseja-me um bom dia, que retribuo com um sorriso forçado, num espanto resignado. Passo pela velha sem idade, de chapéu de palha com tranças pretas de lã e a longa saia vermelha de finas riscas brancas, sentada no fundo da escada com a trouxa aberta, espalhada no chão, cheia de verduras mais frescas do que ela, os rabanetes em carne viva, os alhos duros e roxos, a salsa, os coentros verdes da esperança que se lhe escapa a cada dia. Sorri-me, desdentada. Acabo por comprar mais qualquer coisa. Há sempre mais qualquer coisa. Hei-de cruzar-me com algum menino descalço que se voluntariará para me transportar a pouca carga que carrego, a troco de uma compensação miserável; pelo menos, a mãe - ou uma irmã pouco maior que ele - terá com que preparar algo a que possam chamar uma refeição.
Uma algazarra miúda,
a princípio, aproxima-se, arrastando um emaranhado de gente que brota, aos
tropeções, de outras ruelas ainda mais estreitas. Reconheço os gritos
estridentes, à laia de cântico tribal e agudo que afunila em sintonia com a
multidão alvoroçada antevendo a desgraça. Encolho-me para deixar passar sem que
me arrastem na sua pressa apocalíptica. Os gritos soam mais e mais alto, um
frenesim atarantado, e atento ao fundo da viela, para onde todos correm numa
aflição que me agonia. Num assombro, esperado por outros, um grupo de homens
envergando túnicas brancas, imaculadas, irrompe por entre a mole de gente,
sustendo uma liteira enfezada que mais parece levitar como um tapete voador
sobre as suas cabeças. Num andor macabro, um corpo jaz como uma múmia, envolto
num lençol alvo como uma nuvem de algodão-doce. A multidão atabalhoada, numa ordem
que só a eles diz respeito, abraça a padiola fúnebre mais os seus
gatos-pingados e parte sem nunca parar, em debandada, com o coro de gritos em
música de fundo.
Preciso de um
momento para me encontrar. Confundo o número de ruelas à direita e à esquerda,
e ainda não me oriento bem na malha labiríntica da medina. Subitamente, os
sacos pesam-me em penitência e sinto as unhas cravadas na palma da mão. Um
menino puxa-me os sacos e pergunta se preciso de ajuda. Por uma vez, deixo que,
antes de ir-se, me acompanhe até ao arco de pedra, à entrada, onde o sol me
apazigua.
Porque, dizem, hoje é dia de finados, amanhã, no México, celebra-se o Dia dos Mortos, morreu Sean Connery (uma enorme vénia, não há muito que precise de ser dito) e a Morte desassossega-me. Para lá do medo de morrer.