Talvez
não tenha sido um acaso, lembrar-me do homem do café. Aquele que dava vida aos
restos negros, aguados, que ficavam no fundo, no fim daquele primeiro momento
de prazer. Findo aquele instante, breve para quem olhava sem ver nada, deitava
a chávena sobre o pires, inclinando-a com a delicadeza firme e apaixonada que
guia a mão dos artistas. Com um pincel fino, muito fino, despia com amorosa
minúcia o acidental excesso tombado no corpo branco da pequena chávena de
louça, e desenhava, num caderno de argolas, o que os seus olhos admiravelmente
anteviam naqueles restos de café espesso, inerte e frio ainda há pouco, vivo
agora, torrencial, enchendo de desejos encarnados as páginas brancas e lisas do
bloco.
Ele
sabia que eu o observava. Em silêncio inquieto. Pasmada diante daquela
imensidão de mundo que cabia e, porém, vazava do caderno de argolas.
Embalada
por recordações antigas, descobri-me a rever fotografias de outros tempos. Das
que revelava, ainda, antecipando essa mesma ansiedade inquieta do
desconhecido. Consumida de vontades inadiáveis, sim, mas sem a insipiência
precisa do rigor digital de agora.
Organizava-as
em álbuns. As fotografias. Inventários de capa dura e páginas decoradas com
bolsinhas de plástico sobranceiras às linhas rectas onde vertia, deslumbrada, o
meu encantamento pelos dias passados.
Voltei
a passar as mãos pelas folhas. Senti o cheiro das memórias. Deixei-me tomar
pelos encantos que imortalizei a cada época, a cada página, em frases simples,
tão simples, de uma ingenuidade tão completa e eloquente que quase me
desconheço. Ou talvez não. Talvez me reencontre, apenas, entre essas
recordações. “Pareces una niña, es
que te encanta todo!”.
E encantava-me. Encanta-me, ainda, não
sendo já tão menina. As rugas dos rostos que se cruzam comigo, e os sulcos da
terra que me sustenta e me embala. Sem pressa. O sussurro das vozes carregadas
pela brisa ansiosa e meiga, a que ofereço a face, rendida, para que me mime e
me acalente. As montanhas soberbas, escarpadas, arrogantes como a vida que se
vive sem amarras, ao sabor dessa gente que descobrimos sem querer e sem pedir;
e sem pedir nem querer nos preenche os sentidos com a mesma avidez sem aviso
que recordo quando rio. Quando choro. Vou procurando o equilíbrio no tempo que
roubo para mim, resgatada entre os instantes em que me ouço. Como ouço as
preces dos pássaros. E a sofreguidão do vento, rouco, que me agarra e me
confunde, que me sopra ao ouvido segredos que não ouso descobrir.
Li e
reli, vezes sem conta, perdendo-me, encontrando-me, absorvendo cada palavra
como o ar que me falta por momentos.
Recordei
rostos queridos, passados, que a Morte apressada nos seus insondáveis
caprichos, resolveu levar sem aviso nem demora. E dou por mim a pensar, tonta,
que o homem do café talvez desenhasse para mim. Às vezes. Perturbando o meu
sossego, sem que o pudesse imaginar.