segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Inquietude

Talvez não tenha sido um acaso, lembrar-me do homem do café. Aquele que dava vida aos restos negros, aguados, que ficavam no fundo, no fim daquele primeiro momento de prazer. Findo aquele instante, breve para quem olhava sem ver nada, deitava a chávena sobre o pires, inclinando-a com a delicadeza firme e apaixonada que guia a mão dos artistas. Com um pincel fino, muito fino, despia com amorosa minúcia o acidental excesso tombado no corpo branco da pequena chávena de louça, e desenhava, num caderno de argolas, o que os seus olhos admiravelmente anteviam naqueles restos de café espesso, inerte e frio ainda há pouco, vivo agora, torrencial, enchendo de desejos encarnados as páginas brancas e lisas do bloco.

 

Ele sabia que eu o observava. Em silêncio inquieto. Pasmada diante daquela imensidão de mundo que cabia e, porém, vazava do caderno de argolas.

 

Embalada por recordações antigas, descobri-me a rever fotografias de outros tempos. Das que revelava, ainda, antecipando essa mesma ansiedade inquieta do desconhecido. Consumida de vontades inadiáveis, sim, mas sem a insipiência precisa do rigor digital de agora.

Organizava-as em álbuns. As fotografias. Inventários de capa dura e páginas decoradas com bolsinhas de plástico sobranceiras às linhas rectas onde vertia, deslumbrada, o meu encantamento pelos dias passados.

Voltei a passar as mãos pelas folhas. Senti o cheiro das memórias. Deixei-me tomar pelos encantos que imortalizei a cada época, a cada página, em frases simples, tão simples, de uma ingenuidade tão completa e eloquente que quase me desconheço. Ou talvez não. Talvez me reencontre, apenas, entre essas recordações. “Pareces una niña, es que te encanta todo!”.

E encantava-me. Encanta-me, ainda, não sendo já tão menina. As rugas dos rostos que se cruzam comigo, e os sulcos da terra que me sustenta e me embala. Sem pressa. O sussurro das vozes carregadas pela brisa ansiosa e meiga, a que ofereço a face, rendida, para que me mime e me acalente. As montanhas soberbas, escarpadas, arrogantes como a vida que se vive sem amarras, ao sabor dessa gente que descobrimos sem querer e sem pedir; e sem pedir nem querer nos preenche os sentidos com a mesma avidez sem aviso que recordo quando rio. Quando choro. Vou procurando o equilíbrio no tempo que roubo para mim, resgatada entre os instantes em que me ouço. Como ouço as preces dos pássaros. E a sofreguidão do vento, rouco, que me agarra e me confunde, que me sopra ao ouvido segredos que não ouso descobrir.

Li e reli, vezes sem conta, perdendo-me, encontrando-me, absorvendo cada palavra como o ar que me falta por momentos.

 

Recordei rostos queridos, passados, que a Morte apressada nos seus insondáveis caprichos, resolveu levar sem aviso nem demora. E dou por mim a pensar, tonta, que o homem do café talvez desenhasse para mim. Às vezes. Perturbando o meu sossego, sem que o pudesse imaginar.

terça-feira, 5 de março de 2019

Quem Engana Quem, Até Eu Sei...

Na terça-feira passada, António Mexia foi ao Parlamento dizer, entre outras coisas, que, não só não há nada disso de rendas excessivas na EDP, como a empresa a que preside é o abono de família do Estado.

 

Ricardo Salgado deu uma entrevista à TSF, na qual, como habitualmente, clamou por inocência sua e má vontade dos outros. Por entre as respostas às habituais perguntas fofinhas que este tipo de gente sempre inspira aos jornalistas – mesmo os mais prestigiados e competentes – voltou a dizer que os lesados do BES, em quem o próprio pensa todos os dias, coitado, são culpa do Banco de Portugal, de Pedro Passos Coelho e da maldita resolução, e não dos seus actos de gestão.

 

Entretanto, o Novo Banco – o tal que era bom – voltou a meter a mão no Fundo de Resolução para arrecadar mais 1,149 mil milhões euros, coisa pouca, para fazer face à toxicidade daqueles activos que tombam sempre para o mesmo lado, o do Estado, ou seja, o do aparentemente amplo e cheio (para alguns) bolso do contribuinte (eventualmente, de outros bancos que se portaram bem, se é que ainda sobra algum).

 

Há alturas em que se torna difícil expressar indignação com a mesma eloquência com que somos insultados. Isto, se quisermos manter o nível dois ou três patamares acima do gozo rasteiro e ordinário e, ao mesmo tempo, não deixar que nos tomem por parvos. É que, mesmo entre os brandos costumes, deveria haver limites para o desaforo.

 

As comissões parlamentares de inquérito têm servido, em grande parte, para deixar a nu a descomunal lata de alguns dos seus principais protagonistas. Nesse sentido, António Mexia não desiludiu. Falou de “demagogia” e “manipulação” para rejeitar as críticas aos chamados CMEC – custos para a Manutenção do Equilíbrio Contratual – e as suspeitas que recaem sobre a forma como esses contratos foram negociados. Para o gestor da EDP, tais contratos não vieram favorecer a sua, literalmente, empresa. Pelo contrário, até terá perdido dinheiro na passagem dos CAE (contratos de aquisição de energia) para os CMEC. Se não fossem os CMEC, as compensações que Estado deve (como não) à empresa teriam ascendido a muitos mais milhões de euros. O magnífico e competentíssimo gestor de um gigante monopólio (não sei se a ENDESA chega bem a ser concorrência) dedicado à distribuição e venda de um bem essencial para o funcionamento regular de uma sociedade mais ou menos civilizada, está, até, disponível para “para desfazer-se das barragens, se forem devolvidos os 2115 milhões de euros pagos, bem como para "fazer as contas" e reverter os CMEC”. E, para provar que a EDP até perdeu 200 milhões de euros com a tal troca dos CAE para os CMEC, António Mexia levava um estudo completamente independente e idóneo, encomendado à Nova School of Business and Economics, essa cujo campus foi patrocinado pela…EDP.

 

Ricardo Salgado, que consegue dormir apesar de não totalmente descansado, é outro mártir incompreendido da pátria. Não lhe cabe nenhuma culpa, nem no colapso do seu banco, nem na delapidação das poupanças de muitas vidas (alguns terão procurado lucros demasiado fáceis, é verdade). Era só mais uma injecçãozita de capital e resolvia-se o problema, mas, o que havia era uma enorme vontade de acabar com o Banco Espírito Santo, toda a gente sabe que somos um país de invejosos. Ou isso, ou o Diabo, mais as suas coincidências.

Bom, o caso que é Ricardo Salgado foi afastado da liderança do BES e de outros cargos em instituições financeiras nos próximos anos. Mas, ao ritmo a que se move a Justiça portuguesa, o banqueiro ainda é bem capaz de regressar em emocionada e ansiada apoteose, que é como quem diz, ainda volta a ser dono disto tudo, que há manias que nunca se perdem.

 

E, a provar como é fantástico fazer negócios com o Estado português – não para todos, é verdade – lá chegamos, então, à nova factura desse Novo Banco. Em princípio, não será a última, já nos descansaram quanto a isso. Afinal, ainda restam, parece, dois mil milhões lá no fundo desse Fundo de Resolução, que dificilmente resistirão até 2025, como se (calhar ninguém, seriamente) previa. Pelo sim, pelo não, o Governo, diligente, pediu uma auditoria. Deve ser parecida com a da Caixa Geral de Depósitos, mais grande devedor, menos grande devedor. Que nunca devem nada, aliás: investem dinheiro que não é seu, se correr bem, ficam com os lucros, se correr mal, o Estado paga. Quem disse que para ser empresário é necessário correr riscos?

 

Manuel Pinho inaugurou a tendência e continuam todos a fazer-nos corninhos. Seja na forma de comissões de inquérito, entrevistas ou auditorias...

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Venezuela contra Venezuela

Ouvir falar Nicolás Maduro causa-me o mesmo asco que escutar Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Talvez não sejam os três iguais, mas parecem, embora, neste caso, pareçam não estar exactamente do mesmo lado. Mas, isso, é outra história. E, claro que há mais do mesmo género, mas, ouvir e entender alguém na sua própria língua tem outro impacto.

O impasse na Venezuela começa a ser surreal e algo vergonhoso. Mais de quarenta, creio, países reconhecem Juan Guaidó como presidente da Venezuela, e depois? Os militares continuam fiéis a Nicolás Maduro, que não tem qualquer pudor em mandar as tropas atirarem sobre os manifestantes, sobre o povo venezuelano.  

Parece ser já evidente que houve uma espécie de erro estratégico, ou, pelo menos, de intenção, por melhor que fosse. Se alguém pensou – que é como quem diz, essa tal comunidade que dá pelo nome de internacional – que bastava manifestar apoio público a Guaidó para que uma massa significativa de militares atirasse ao chão as armas e se curvasse à bondade e vontade do presidente interino, já se percebeu que o plano falhou estrondosamente. A próxima pergunta é: e agora?

Nicolás Maduro ainda domina. E goza. Chama palhaço a Guaidó, o presidente da oposição da Wikipédia, bromea, infame, e instiga o seu adversário a marcar as eleições que ele próprio rejeita, obviamente. Entre insultos e discursos, ainda tem tempo e ânimo para dançar salsa com a primeira-dama. Dava vontade de rir, não fosse o caso de a situação ser, como é, demasiado – insuportavelmente – trágica.

Entre indignações selectivas e relaxadas sobre a inadmissível ingerência de países estranhos sobre a soberania de cada Estado, vamos assistindo à miséria das condições de vida(?) do povo venezuelano, que implora por ajuda que chega, mas não chega. Que tipo de chefe de Estado deixa que o seu povo morra de fome e de abandono, por puro e mesquinho despeito? É mais que evidente que Maduro está menos preocupado com o possível golpe de Estado de que acusa os países apostados em fazer entrar as caravanas de ajuda humanitária na Venezuela, do que em perder o poder que usurpou numas eleições que ficaram marcadas por denúncias de fraude, boicote à oposição e uma elevada abstenção. Não teme nada, nem lhe treme o pulso, fanfarrão, a não ser, claro, que venha a ser obrigado a sujeitar-se a sério escrutínio por parte dos seus pares.

Enquanto os militares se mantiverem fiéis a Nicolás Maduro, não parece haver solução à vista, a não ser que se intente a intervenção militar externa que ninguém deseja. Resta saber até quando resistirá Juan Guaidó e o seu povo faminto e esgotado. 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

A Palermice Plena, e a Terra Que Não é Plana

Parece que há cada vez mais gente a acreditar que a Terra é plana. Dizem que a culpa é de um vídeo que anda a circular no YouTube. Agonia-me, mas não me estranha. Decidir “não acreditar” na ciência virou uma espécie de moda requintada.

As vacinas provocam autismo. Não interessa nada que esteja mais que provado que o suposto "estudo" que suportava tão erudita ideia não passou de uma fraude encomendada, bem paga e que o seu mentor tenha sido impedido de continuar a exercer medicina.

A água tem memória. E, nessa suposta memória, cabem as curas milagrosas que os promotores das águas açucaradas homeopáticas vendem aos mais frágeis, comprometendo, tantas vezes irremediavelmente, a saúde dos doentes. Não sei é considerado crime, mas devia.

O Homem nunca pôs os pés na Lua. Nos la colaran, que é como quem diz, enfiaram-nos o barrete, já dizia o Casillas, que é famoso, logo, percebe imenso de tudo o que importa perceber. A fama, aliás, tornou-se requisito necessário e mais que suficiente para atestar a fiabilidade de uma qualquer teoria da conspiração. É tudo uma enorme patranha. Qual Lua. É só olhar para a bandeira, esticadinha, e, isso toda a gente sabe – até os pindéricos dos cientistas – na Lua não há ar. E, claro, o aquecimento global, simplesmente, não existe. Já viram o frio que se tem feito sentir? Principalmente, na América? Se tiverem dúvidas, perguntem a Donald Trump, não se esqueçam que o homem até tem, ou tinha, um tio que era cientista, com bons genes, fantástico e que percebia imenso de ciência.

Alguns cientistas parecem defender que se deve promover mais a ciência. No caso da suposta planura da Terra, por exemplo, publicar mais vídeos e outros recursos que provam que a Terra é uma esfera, mais ou menos, pois ligeiramente achatada nos pólos, sendo o raio equatorial um pouco superior. É tão absurdo e improvável que a confusão venha daí - não faço a menor ideia - como de outra coisa qualquer, mas é absolutamente indiferente para quem quer achar o que quer que lhe apeteça.

Pergunto-me se valerá a pena o esforço. De promover a ciência junto destas sumidades. Esta gente, que desdenha das evidências científicas, está-se nas tintas para o conhecimento. Se quiserem acreditar que, afinal, é o Sol que gira à volta da Terra, fá-lo-ão sem quaisquer hesitações ou pruridos. É só levantar o nariz, não se está mesmo a ver o Sol a mexer-se, e não a Terra? Qual “e no entanto ela move-se”, que tamanha idiotice. Vamos, mas é, refazer os manuais de ciências. E de história, já agora. Resolve-se tudo de uma penada.

Uma coisa, no entanto, podíamos fazer. Não dar palco a estas imbecilidades e, muito menos, espaço partilhado para discutir, em pé de igualdade, ciência e crendice (às vezes, fraude intencional) como se fosse possível comparar o que não é comparável. Já faltou mais para voltarmos às teorias criacionistas, nos bancos da escola...

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A Hipocrisia (e o asco) das Comissões de Inquérito

Parece que vai haver uma nova comissão parlamentar de inquérito. Aos actos de gestão da CGD. O CDS propõe, o PDS, também, e, parece, também, que o PS aprova. É provável que os outros partidos também venham a aprovar, ou a propor, uma comissão parlamentar, em nome próprio ou a reboque. A pergunta que se impõe é: para quê? Imagino que seja para o que costumam servir as nossas tão cerimoniosas comissões parlamentares de inquérito, salvo algumas (poucas), excepções: para fingir, essencialmente. Fingir indignação, fingir desconhecimento, fingir espanto, fingir responsabilidade, fingir vontade de fazer diferente e melhor. Os inquiridos vão lá fingir que são amnésicos, incapazes, incompetentes ou ignorantes - nunca, claro, no que que toca aos seus prejuízos pessoais, esses sempre salvaguardados - e os inquiridores, a maioria, vão lá fingir que cumprem a sua função, simular o ultraje. No fim, fingimos nós todos, que não temos nada a ver com aquilo e não nos metemos em política. É um permanente faz-de-conta, mas sem final feliz.

Já é escandalosamente evidente que a CGD serviu de porquinho mealheiro para um bando (não é força de expressão e, sim, no sentido pior do termo) de gente que mais não sabe do que viver de estrelato pífio, compadrios, favores e corrupção. Esse tipo de corrupção que tanto indignou Augusto Santos Silva, por ameaçar aparecer em destaque no relatório da OCDE que há-de sair em Fevereiro ou Março. Até lá, vamos continuar a fingir que, em Portugal, só há "políticas erradas" e "falta de meios". É uma estrondosa mentira. O que há é muitas mãos a segurar outras tantas. Ninguém quer tirar a sua.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

"O Uso Compulsivo das Redes Sociais Pode Provocar Incapacidade Intelectual"

A utilização de redes sociais deveria vir acompanhada de um aviso do género: o uso não ponderado pode provocar acessos de cretinice aguda, eventualmente, crónica. Por exemplo. E com bolinha vermelha, a piscar, frenética, num canto qualquer do écran. Podia ser que, assim, se evitasse que pessoas que ocupam cargos de responsabilidade se portassem como imbecis, para usar uma linguagem simpática.

Os últimos dias foram férteis em imbecilidades. Mais do que o normal. Do tipo das que não ajudam nada à resolução dos problemas mais sérios e mais graves que as despoletam. Pelo contrário. Na sequência de um episódio dramático de confronto entre polícias e moradores – cujos contornos devem continuar a discutir-se – de um bairro social de condições tão miseráveis que nos envergonha a todos (ou deveria), alguns interventores da vida política não souberam estar à altura dos cargos que exercem (tem acontecido bastante). Preferiram o insulto, o abuso despudorado e hipócrita e a chalaça rasteira e brejeira.

O primeiro foi Mamadou Ba. Num acesso de indignação, eventualmente, sentida e justa, o assessor do Bloco de Esquerda usou do insulto para se referir a agentes da polícia, a quem chamou bosta da bófia. Admite-se que não se referia a todos, à classe, o que seja. O direito à crítica, à indignação, à revolta, não é livre-trânsito para a prática da injúria que se não admite ao outro. Não se trata de dar a outra face, como um santo de pés de barro. Trata-se de não perder o poder, irrepreensível, de criticar e exigir.

A seguir, agentes da PSP, daqueles que envergonham a farda, encheram páginas no Facebook com mensagens de ódio e ameaças, apostados em "meter na linha" esses "vermes" e "javardas", "porcos", que deviam era levar um "tiro no centro da testa".

Depois, António Costa. É verdade, aqui não foi numa rede social. Foi na Assembleia da República, o que ainda é mais grave. O primeiro-ministro perdeu (mais uma vez) as estribeiras com Assunção Cristas, que tem o dom de retirar, àquele homem, qualquer réstia de ponderação e bom-senso. Resolveu, por isso, o primeiro-ministro, usar o truque da cor da pele, pasme-se!, para se insurgir contra a pergunta da sua interlocutora sobre se condenava ou não os incidentes no Bairro da Jamaica. Uma espécie de momento Serena Williams (como o classificou Ricardo Araújo Pereira no seu novo programa de televisão, embora eu própria já o tivesse pensado, até porque bastante fácil), completamente despropositado e bastante absurdo. Indecoroso.

Finalmente, last but not least, de todo, tal é o despautério, João Moura, deputado do PSD, resolveu usar da graçola para criticar o pedido de protecção policial por parte de Mamadou Ba. Por considerar, provavelmente, incoerente que alguém que destratou a polícia venha, agora, solicitar-lhe abrigo, João Moura teve um momento de exaltação poética e resolveu dedicar a Mamadou Ba um post à altura da epifania: “Ó Mamadou e se fosses ba(rdamerda)!”. Que elegância, não haja dúvidas. Para não falar da inteligência que se impõe sempre, e expressivamente, nestas circunstâncias. Posteriormente, João Moura apagou a piada, como, também, é costume fazerem os castos.

 

Uma última nota. Mamadou Ba foi imprudente, imbecil e até injusto, porque, acredito, a maioria dos nossos agentes de segurança são gente competente e justa. Nada justifica que dois energúmenos o tenham seguido, intimidado e filmado o acto idiota, para gáudio dos da sua laia.

sábado, 26 de janeiro de 2019

A Caixa que os Pariu

Quem não tem cão caça com gato. E quem vive num país pequeno arranja uma caixinha jeitosa, com dinheiro a rodos para distribuir entre os amigos e os amigos dos amigos, comendadores, amigos dos comendadores, gestores competentíssimos traídos por fracas e selectivas memórias, advogados de grandes sociedades que se servem, avidamente, das leis que criam com o único e pérfido propósito de confundir, uma manta esburacada, intencionalmente rota e mutilada para posterior usufruto de agulhas próprias, onde remendos e restauros se hão-de pagar a preço de ouro, deixando a nação subjugada, de joelhos, a alguns donos daquilo tudo.

A caixa, no entanto, não é para todos. Ou, pelo menos, não da mesma maneira. Uns têm dívidas, outros imparidades. Uns devem possuir mais do que aquilo que pedem à banca, outros possuem a arte de extorquir milhões para financiar empreitadas de reconhecido luxo das quais sugarão o tão cobiçado lucro, se o houver, declinando, com arrogância e nojo, os prejuízos, essa peçonha viscosa e de menor casta, a distribuir pelos contribuintes, alguns, os mais incautos, alheios ao mundo da alta finança, do esbulho chique e sobranceiro, onde a reconhecida competência mais não é do que um embuste, porque levada ao colo, sem esforço próprio, a saque, colada a grupos de autênticos mafiosos, a coberto de um sabujo sistema de interesses articulados para que nunca alguém com poder vá parar à cadeia, como tão bem disse um conhecido advogado num também conhecido programa de televisão, não vai assim muito tempo. Deve ser por isso que alguns se dizem injustiçados, pobres coitados, vítimas de cabalas, perseguições e chantagens mesquinhas. Afinal, fiaram-se na teia que os ampararia a todos; na aranha que a urdia com astúcia e paciência. Mas, às vezes, o abuso torna-se abjecto, pelo que, urge disfarçar o descaramento e é aí que rolam as cabeças de pífios peões iludidos, os que apenas comiam das migalhas, sem engenho ou audácia para chegar ao topo, todos engordam do pote, mas, a alguns, apenas está permitido raspar as bordas e lamber os dedos.

Aos poderosos não se diz não. Faz-se o que for preciso. E assim se permitiu que a Caixa-Geral de Depósitos, um banco do Estado, servisse, antes, de banco privado, uma fonte de recursos que parecia inesgotável para um grupo de privilegiados, entre os que dela se serviam à vontade e sem-vergonha e os que tinham o dever de regular sem nada ver até ser impossível continuar a olhar para o lado.

O relatório da auditoria à CGD, de que se tem falado nos últimos dias, devia encher horas e horas de programas de televisão, de análise, em análise, em análise, como sabemos fazer tão bem com as importantíssimas questões do futebol, onde cada falta, cada toque, cada erro de arbitragem, cada espirro inconsequente, dá para sessões intermináveis, de debate e discussão, de repetição em repetição, ad nauseam, como se não houvesse nada de mais interesse para o país. Que miseráveis somos!

Entretanto, há 17 gestores referidos na auditoria à CGD que continuam ligados à banca. São gestores de topo, competentíssimos portanto, presume-se, que foram responsáveis por decisões de concessão de créditos que originaram perdas, para a CGD, de perto de três mil milhões de euros. Nada que os contribuintes portugueses não possam pagar. Afinal, como se sabe, vivemos acima das nossas possibilidades há muitíssimo tempo.

 

O jornal Expresso dá conta de que foi a CGD que denunciou José Sócrates à Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária em Abril de 2013. A denúncia refere a existência de um possível esquema de transferências de dinheiro desse grande e abnegado amigo, Carlos Santos Silva, para José Sócrates, por intermédio de uma conta da mãe deste; uma “conta de passagem”. Vale a pena ler. E é só mais um pormenor.

Na verdade, vale a pena ler tudo o que se refere a este caso, ao verdadeiro assalto à CGD, que já nos obrigou - a todos os que pagamos impostos à custa do nosso trabalho - a injectar, como se diz, milhões e milhões de euros para evitar a ruína. Se não se souber por onde começar, "Quem Meteu a Mão na Caixa", de Helan Garrido é um bom princípio.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

O Bairro da Jamaica

Não foram os confrontos, a primeira coisa que me chamou a atenção nas imagens. Foi o retrato brutal da degradação do bairro e as condições miseráveis em que, às portas de Lisboa, vive gente. Lembrou-me algumas zonas do Marrocos mais pobre e mais sombrio que vi, pela primeira vez, há vinte anos. Os mesmos prédios inacabados, mortos-vivos, esventrados, as parabólicas moribundas e, ainda assim, em violento contraste com a indecorosa pobreza, a escorrerem pelas paredes, o lixo amontoado, o entulho, mobílias esventradas lado-a-lado com carrinhos de bebé, um emaranhado caótico de fios e tubos…como é possível?

Não serei a única a não saber exactamente o que, por estes dias, aconteceu no bairro da Jamaica. Mas, nem todos os negros são delinquentes, nem todos os polícias são bófias e, muito menos, de merda, para usar uma linguagem erudita e digna e não ficar atrás de alguns daqueles a quem se chama assessores parlamentares. Dito isto, há escumalha que tresanda em ambas as partes, de todas as cores.

Para não fugir ao cliché, comportamento gera comportamento, violência, mais violência e há quem não olhe a palavras para engordar indignações; virulentas, também. O acesso às redes sociais, com direito a instantâneos e a achaques em directo, devia estar vedado àqueles que, sendo totalmente irresponsáveis, ocupam cargos que exigem, senão inteligência, pelo menos, alguma ponderação e bom senso.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Quanto tempo pode resistir um "shutdown"?

O Reino Unido anda às voltas com um Brexit que já poucos parecem querer e os EUA resistem, obstinadamente travados por um muro que Trump deseja como nenhum outro, pese embora alguns o tenham intentado antes.

A América continua sequestrada pela ausência de acordo entre democratas e republicanos (ou só entre democratas e Donald Trump) sobre quem constrói o quê e quem paga a conta antes, para ser apresentada aos mexicanos depois. O impasse mantém-se há 27 dias, a maioria dos americanos culpa o Presidente pelo shutdown, há milhares de funcionários federais a trabalhar sem remuneração e os conselheiros de Trump andam a avisá-lo acerca dos efeitos negativos que o apagão começa a ter na economia do país.  Nada que Donald Trump não aguente. Pode sempre despedir os conselheiros que não o aconselhem como ele gostaria (a seguir, pode insultá-los, no Twitter, para aliviar o stress), dispensar os funcionários públicos e continuar a mandar vir pizzas e hambúrgueres do McDonald’s e, quanto à economia, bom, o homem percebe imenso de negócios, construiu um império dos diabos, está habituado a agarrar o que quer por onde lhe dá mais jeito e gozo, há-de ter a competência e a teimosia necessárias e suficientes para dar a volta ao assunto.

Parece, no entanto, que, nos bastidores, o Presidente anda um pouco enfadado. Irritado. Não percebe porque não se consegue chegar a um acordo. Talvez, porque o que Trump procura não é bem um acordo, é um acto de resignada vassalagem, eu quero, eu posso, eu mando, quem tem juízo obedece, os loucos que não atrapalhem. Afinal, quando Trump tiver terminado o seu muito higiénico e muito eficaz muro, acabar-se-ão todas as peçonhas, a América será grande outra vez e o povo americano, rendido à magnificência e visão do todo poderoso, não voltará a recordar estes dias de infortúnio; lembrará, sim, a intensa e ufana luta do melhor presidente das últimas décadas, empenhado em proteger a nação dessa horda de criminosos que são todos os emigrantes, com excepção da impecável e elegantíssima Melania, que faz decorações de Natal como ninguém, God Bless America (e, de passagem, o Brasil, que o senhor é omnipresente).

Entretanto, num esforço hercúleo, e heroico, a bem do país como só ele é capaz, Donald Trump deu descanso ao Twitter presidencial durante grande parte da tarde de ontem, preservando o bom humor para a reunião com alguns democratas moderados – parece que eram sete –; aos radicais já tinha chamado partido do crime e das fronteiras abertas, nada preocupados com a crise humanitária na fronteira do sul. Ora, todos sabemos como Trump e os seus aliados se preocupam. Tanto, que usam um gás natural para repelir os intrusos. Tão natural que se pode comer com nachos, como é que ninguém se tinha lembrado disso antes.

Se não for a bem, há-de ser a mal. E a contra-gosto. Até lá, bye-bye. Homem que é presidente não tem tempo a perder.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

(Outr)A Guerra dos Sexos

De polémica em polémica, até que a voz nos doa, ou o teclado derreta. Já nem há novas polémicas, pois que se sucedem abruptamente, definhando sem florir plenamente, atropelando-se, sôfregas, entupindo qualquer espaço de debate, esbofeteando qualquer audácia, um grito a seguir ao outro, já esqueci porque gritei primeiro. Em primeiro.

Agora, homens de barba rija ameaçam boicotar a Gillette. Não parece muito eficaz, eu sei. O trocadilho desastrado. Se têm barba rija, provavelmente, usam pouco ou nada a gillette, pelo que, vivem em boicote permanente no que a barbeados diz respeito. De modo que, restam os que se preocupam em não ter pêlo na venta, pelo menos, desse tipo, e, ainda assim, querem continuar a ser homens. Ou rapazes. Deixem os homens serem homens e os rapazes serem rapazes.

Afinal, o que tem de tão ofensivo o recente anúncio da Gillette que incendiou, outra vez, as redes sociais? Muito homens viram-no como um ataque à sua masculinidade. Sentem-se ofendidos, indignados por muitos motivos, um deles, o facto de o anúncio ter sido realizado por uma mulher. “Let boys be damn boys. Let men be damn men”. O que é ser damn boy, ou damn men? O anúncio chama a atenção para comportamentos abusivos, que não fazem, exactamente, de um rapaz um rapaz, ou de um homem um homem.

Há quem discorde. Quem diga que a agressividade faz parte do pacote (eu sei, mas, tal com há pouco, não me apetece alterar). Na verdade, “os homens são o sexo selvagem, o que explica a sua perigosidade, mas também seu dinamismo”. Mais ainda, “You can’t have male inventiveness, innovation, civilization-building, and lifesaving without the explosive masculine energy that is their impetus, ou seja, as sociedades só poderão evoluir e prosperar se pudermos contar com a explosiva energia masculina, a chave que é o motor eficaz e insubstituível do progresso.

Sou daquelas mulheres que não se acha igual a homem, graças a Deus se for dele a culpa. Há outros que acham o mesmo. A igualdade de oportunidades é uma coisa completamente diferente e acho que é dessa igualdade que devemos tratar. E, dessa, não abdicar, sob nenhum pretexto, por mais descarado, ou por mais ardiloso.

Não me sinto violentamente ultrajada quando um homem me cede a passagem ao entrar no elevador, ou se se oferece para me ajudar a mudar um pneu, coisa que até sei fazer com bastante competência (obrigada ao meu pai, que sempre percebeu bastante das diferenças que verdadeiramente importam), desde que consiga desapertar o raio dos parafusos. Já o meu marido, do mais macho que há, com aquela habilidade desconcertante, e irritante, de se orientar até debaixo de terra, detesta que eu o interrompa no meio de uma tarefa, porque, como é sabido, no que toca a multitasking, o sexo também conta. E tantas, mas tantas, outras diferenças em que nos perdemos e nos encontramos, machos ou fêmeas, homens ou mulheres, ganhando mais do que perdemos se não nos deixarmos aprisionar por toxicidades e extremismos acéfalos que nos diminuem e nos afastam, mais do que o tão almejado, e necessário!, contrário.

Seja como for, a agressividade masculina não tem que resvalar para o abuso, ou para a violência física e, pessoalmente, não vejo no anúncio mais do que o repúdio por isto mesmo. Outros viram para além disso e é, aqui sim, parece-me, um exemplo daquilo a que se chama liberdade de expressão. Se ao menos pudéssemos usá-la sem nos insultarmos a cada clique...

 

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

A síndrome de Calimero...

…mas ao contrário.

Acontece quando somos acometidos por uma empatia e compaixão súbitas por alguém que estávamos prestes e capazes de matar a sangue frio, porque, entretanto, outro alguém atacou (ainda mais) violentamente o alvo do nosso descontentamento-barra-ódio. Aí, todo o nosso nojo se esfuma e passamos a acarinhar, às vezes, com devoção, aquele que, ainda agora, era a viva encarnação de todos os pecados, os nossos e os dos outros.

Rui Rio era, ontem (vá, anteontem…), um líder frouxo, sem carisma, a sorte grande que tinha calhado a António Costa, depois de este já ter feito um bingo, geringonçado, com o PCP e o BE. O homem suportou todos os enxovalhos que os trocadilhos com o seu apelido permitiam, com graça, sem graça, com água ou a seco. A contestação interna era tanta e tão corpanzuda, tão cabeluda, que Luís Montenegro se sentiu animado a vestir-se de capa e espada para salvar o PSD; não cheguei a perceber se Montenegro quis salvar o dito de se tornar num partido com pior resultado nas eleições, ou num partido com rótulo de direita(?!), mas talvez isso não venha ao caso. E o caso é que Montenegro armou-se cavaleiro, deu o corpo às balas, desafiou Rio a não ter medo e, provavelmente, ficou à espera que tal bastasse – tal era a enormidade do repúdio – para ser carregado em braços, como o herói que se propunha. O risco afigurava-se menor do que o descaramento. Afinal, as malfadas sondagens caem (ou caíam) a pique e, nessa vertiginosa e humilhante derrocada, talvez se perdesse, além do que de dignidade resta, muitos, imensos, postos de trabalho. Ninguém quer aumentar a taxa de desemprego; há quem não tenha (in)competências para muito mais…

É possível, no entanto, que o que parecia uma aposta ganha venha a trazer amarguras, várias e de vários tipos. Talvez nada tenha a ver com o afecto que o Presidente Marcelo emprestou à situação, ora com Rio, ora com Montenegro, mas, essa massa de críticos que se opunham a um e com que o outro, provavelmente, contava é capaz de se esvaziar, ruinosamente, ruidosamente, como um balão furado, a acreditar nas últimas notícias. Ou, então, terá sido apenas Rui Rio a encontrar-se, finalmente, acicatado pelas circunstâncias, decidido a não fazer valer a vontade dos que o dão como acabado.  A ver vamos. O ritmo a que se vive a política, há muito que nos escapou, ganhou vida própria e move-se ao sabor do momento, fugaz como um sopro arredio e endiabrado.

Razão tinha Jerónimo de Sousa. Nada de contar com o ovo (mesmo um com muitos likes...) no dito cujo da galinha, ou lá como era...

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Ode à Imbecilidade

 

Sapateiro — Hou da barca!

Diabo — Quem vem i?

Santo sapateiro honrado, como vens tão carregado?...

Sapateiro — Mandaram-me vir assi...

E pera onde é a viagem?

Diabo — Para o lago dos danados.

Sapateiro — Os que morrem confessados onde têm sua passagem?

Diabo — Nom cures de mais linguagem!

Esta é a tua barca, esta!

Sapateiro — Arrenegaria eu da festa e da puta da barcagem!

Como poderá isso ser, confessado e comungado?!... “

 

Era um dia de aulas normal, e a professora de português mandou-me ler, em voz alta, esta passagem do Auto da Barco do Inferno, de Gil Vicente (talvez dispensasse apresentações, mas ando confusa). Até à próxima intervenção do Anjo, ainda o Sapateiro discute com o Demo, a palavra puta há-de surgir outra vez. Mas, aí chegada, não mais me engasguei. À primeira vez, levei uma reprimenda da professora, por ter parado no “Arrenegaria eu da festa”, sem ânimo para articular o palavrão na boca do Sapateiro: “qual é o problema, não sabes ler o que aí está escrito?” O tom não deixava margem para dúvidas. Estava escrito, efectivamente, urgente como uma ameaça, e cabia-me, a mim, ler, diante de toda a turma e da professora. De maneira que, de faces bem rosadas (sempre corei facilmente) e com a maior dignidade possível, lá li sobre a puta da barcagem, e o mais que daí veio, até à chegada do Frade com a Moça pela mão.

Findas as leituras, seguiu-se uma boa aula sobre aquela obra de Gil Vicente, o forte poder da metáfora, a violência da crítica social. Dias depois, ainda assistiríamos a uma encenação em palco da peça, e não recordo os traumas que é suposto termos sofrido, então, pobres alunos, pela indecente e bruta exposição à crueza do mestre. É verdade que continuei a corar. Mas, como era mal que vinha de trás, nunca cheguei a atribuir culpas a Gil Vicente (nem sequer à professora...), e até lhe li outros autos.

           

Mas, isso, já lá vão uns bons anos. Fosse eu moça em tempos modernos, teria visto a honra prontamente salva por umas justas, pudicas e higiénicas linhazinhas a tracejado, a azul, não tarda nada, para não ferir susceptibilidades. Há que limpar, da História e da memória, todas essas indecências que conspurcam a mente dos nossos adolescentes incautos e de outras pobres almas igualmente distraídas e puras. Se já nem é aconselhável que pelos cornos se peguem touros, nem se matem coelhos às cajadadas, nem a gatos se atirem paus...que cessem todas as obscenidades! É melhor servir tudo sem espinhos. E sem espinhas. Afinal, liberdade de expressão é dar palco a fazedores de opiniões polémicas, das do tipo daquele tipo, não é estudar versos pecaminosos de autores desbocados, nem outras poucas(grandes)-vergonhas. Talvez se estranhe...e depois se entranhe.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Insultar e ridicularizar continua a ser mais fácil.

Alexandria Ocasio-Cortez é uma das novas caras do Congresso norte-americano. Ainda não tem 30 anos, faz parte do Partido Democrata e há quem a considere demasiado nova, demasiado ingénua e demasiado impreparada para cumprir o cargo para que foi eleita.

Entre tentativas de chacota mais ou menos desajeitadas e, eventualmente, desesperadas, foi publicado, há uns dias, um vídeo antigo que mostra Alexandria Ocasio-Cortez – à data, uma universitária – a dançar, alegre e descontraída, na companhia de outros jovens, tão loucos, divertidos e vivos como ela. O vídeo pretendia-se infame e, como tal, vinha acompanhado de uma legenda a condizer: esta é a comunista favorita dos Estados Unidos comportando-se como a cretina que é. Algo assim. Como tantas vezes acontece, o feitiço virou-se contra o feiticeiro. Ao invés de uma cretina comunista, foram muitos os que viram uma jovem adorável. Alexandria Ocasio-Cortez acabou a rir por último, o melhor, e ainda retomou o baile, desta vez, já à porta do Congresso, ao lado de uma placa com o seu nome.

Mas, a perseverança tende a ser uma virtude, pelo que, desta vez, uma outra publicação online mostrava os pés nus de uma mulher no banho, com a legenda “aqui está a fotografia que alguns descrevem como uma nude selfie de Alexandria Ocasio-Cortez”. Afinal, a fotografia não pertencia a Ocasio-Cortez – se pertencesse, também não vislumbro o pretenso drama –, foi apagada e acabou por provocar uma reacção crítica, por parte da visada, contra os promotores da “notícia”.

É evidente que o objectivo é ridicularizar. Descredibilizar. Já tinha acontecido, há uns meses, com Beto O’Rourke, outra estrela democrata em ascensão. Os republicamos do Texas colocaram a circular uma fotografia da antiga banda rock de que Beto O’Rourke fazia parte, nos anos 90. Também dessa vez, a manobra não correu como o esperado, aos mal-fadados detractores: muitos ficaram rendidos à sedutora imaturidade de O’Rourke, em vez de se indignarem violentamente, como (mal) se previa e se desejava.

É uma arma bastante comum, ainda. Tentar envergonhar ou insultar aqueles de quem se discorda, ou de quem não se gosta. Não requer grande inteligência e não dá trabalho. Na falta de melhores argumentos, às vezes, resulta. Quando não, é um óptimo sinal.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

O que fazer com os "migrantes"?

Acreditar que Donald Trump está preocupado com uma crise humanitária, é o mesmo que acreditar no Pai Natal, e eu já tenho mais de 7 anos. Apesar do tom quase cordato com que manifestou a sua inquietação, o que Trump quer, já toda a gente sabe, como diria alguém, era escusado a Sala Oval, o outfit e as fotos de família.

O que fazer, realmente, com os milhares de pessoas, entre elas, crianças, que fogem dos seus países em busca de algo mais do que sobreviver? Não podemos acudir a todos, socorrer todos, ajudar a todos. Mas, são pessoas. Como nós. Era tão simples, se fossem diferentes de nós. Piores do que nós. Bastava construir um muro, escorraçá-los como aos cães vadios, devolvê-los à sua pátria, reduzi-los à sua miséria, como bem mereceriam. Se não fossem como nós. E, aí, acabava-se com a delinquência, com o crime, com o tráfico de drogas, com as doenças, enfim, com todos os males que trazem os que não são iguais a nós. Seríamos, finalmente, felizes para sempre. Grandes, outra vez. Basta acreditar…

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Afinal, o que é a liberdade?

Liberdade de expressão, democracia, esquerda, direita, comunismo, fascismo, racismo, verdade, mentira e outras coisas (vamos dizer assim) do género, sempre foram complicadas, profundas (porque o são, de facto), mas, não eram obtusas. Felizmente, nunca vivi em ditadura (acabou quando eu era muito pequena) e o mais próximo que estive de um regime “opressivo” foi no tempo em que vivi em Marrocos, já lá vão vinte anos. Aí, fui seguida na rua, se entrava num táxi, não raras vezes o motorista sabia onde eu morava sem que eu abrisse a boca, gente que eu não conhecia e que nunca tinha visto, perguntava-me que tal estava o meu marido. Cheguei a esquecer-me de um saco de compras no mercado e alguém, diligentemente, mo levou a casa, sem que eu chegasse a saber quem (ficou na portaria do prédio), nem como sabiam onde vivia. Houve mesmo uma vez em que um polícia me parou, numa fila enorme de carros, para me informar, amavelmente, que os “meus amigos”, afinal, não iriam para aquela praia, mas para outra…parece mentira, é incrível, mas vivi-o, eu e o meu marido, e é rigorosamente verdade. Há sempre alguém que sabe tirar partido das situações mais insólitas. Os amigos, afinal, não eram nossos – como imaginámos logo –, só o carro é que era parecido. Nunca cheguei a sentir-me, propriamente, insegura, mas a sensação de constante vigilância, mesmo num país mais ou menos liberal como aquele, é esmagadora, para quem só viveu em liberdade. Continuo a amar Marrocos, a visitar Marrocos e ainda lá tenho amigos.

Actualmente, vivemos esmagados entre dois extremos. Ou tudo é demasiado intenso, ou, pelo contrário, demasiado ligeiro. Não se pode chamar fascista a um fascista, porque pode vir um fascista pior e, então, não saberemos o que lhe chamar. A coberto de todas as liberdades, incluindo a de expressão, temos que saber ouvir, sem levantar o sobrolho, alguém dizer que o aquecimento global é um mito e que os planos de vacinação são, na melhor das hipóteses, apenas e só um diabólico instrumento das indústrias farmacêuticas para ganhar milhões, na pior, a principal causa de autismo nas crianças. Os jornalistas são substituídos, sem dó nem piedade, pelos entertainers do momento, ou pelos influencers dos milhões de visualizações, e os meios de informação ditos sérios, sem saber o que fazer, juntam-se à orgia. Havia um tempo em que, para vender colchões milagrosos a incautos velhinhos e não só, uns rapazes e raparigas de bom ar vestiam umas batas brancas e colocavam uns estetoscópios ao pescoço; não eram médicos, mas pareciam. Às vezes, basta parecer. Outras vezes, nem ser, plenamente e com alma, é suficiente. São tempos muito confusos.

Seguramente, não é a proibir um imberbe de falar que defendemos a democracia. Ou a ciência. Não será por calar um escroque que evitaremos que as suas ideias se propaguem. Muitos defendem que a liberdade de expressão é exactamente isso: deixar falar quem quiser falar, independentemente do que tenha para dizer. Mesmo que as ideias sejam “perigosas”, não devem ser caladas, devem ser debatidas e, eventualmente, combatidas. É absolutamente verdade. Toda a gente deve ter a legitimidade para defender aquilo em que acredita e isso não devia incomodar os verdadeiros democratas. Mas, onde fica, então, a fronteira entre a liberdade de expressão e o insulto? Entre a ciência e a crença? Entre a realidade e a ficção? Podemos discutir as supostas vantagens da ditadura com os saudosistas de Salazar. Mas, como é que se discute com alguém que mata, a pontapé, porque não gosta da cor ou da raça? Podemos discutir as dificuldades de integração e convivência que existem entre comunidades diferentes. Mas, como é que se discute com quem defende a esterilização dos pobres como forma de acabar com a criminalidade violenta? Podemos discutir sobre a civilidade ou falta dela dos espectáculos tauromáquicos. Mas, como é que se discute com quem rejubila com a morte de um toureiro?

Se calhar, devemos dar palco à barbárie para a podermos combater. Só tenho medo de que, à custa de tanto a respeitar, a barbárie deixe de nos afectar. De nos indignar. 

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Lady Di e o Presidente Marcelo

Não vi o programa, pelo que, ainda me resta a esperança de que se trate de uma espécie de inverdade. Se não é, a Cristina (ou a amiga) tinha razão, quando disse, em entrevista, que uma amiga lhe confidenciara que, a sua saída da TVI, era mais ou menos o mesmo que a morte da Princesa Diana: o país não estava preparado...

Entretanto, vou tomar um calmante...há tantos politicamente não sei quê, que, assim de repente, fiquei bastante confusa...mas, também é capaz de ser só inveja porque o senhor Presidente não me telefonou a mim...ainda não decidi. Mas de uma coisa estou certa. Para telenovela, tem a virtude de ser mais alegre do que a de Tancos e não envolve, acho eu, saca-cilindros e carrinhos de mão, nas cenas dos últimos capítulos... 

sábado, 5 de janeiro de 2019

Um País à Mercê de "Entertainers" e De Futebol

Ontem, comentadores, cronistas e telejornais comentaram, escreveram e noticiaram a presença de um criminoso, racista, adepto de Salazar – de Hitler, também – num programa da TVI. Entre indignações, labaredas, incêndios e guerras de audiências, houve esmolas para todos os santos. Ainda assim, houve tempo para repartir – pelo menos, na televisão – com outro acontecimento da maior importância para o país: a saída de Rui Vitória do Benfica, uma espécie de já morreu, mas ainda não sabe. Pois lá soube, finalmente, e, desde anteontem, tal como há um mês, altura em que falecera, foram horas e horas e horas de análise e opinião requentadas e servidas, em horário nobre, semi-nobre e assim-assim.

    Deixo o futebol para quem dele gosta e dele percebe. Neste momento, preocupa-me um pouco mais a guerra de audiências, o jornalismo e essa entidade abstracta a que chamamos liberdade de expressão, e a coberto da qual é possível transformar convictos promotores do ódio em fazedores de opiniões polémicas.

    Dizem as más línguas que o motivo por que Manuel Luís Goucha convidou (ele diz que não foi ele, o que, para o caso, é de somenos) para o seu programa um adepto da caça ao preto e, já agora, aos gays – é bom chamarmos os bois pelos nomes, pois, pese embora as inquietações da PETA e do PAN, Goucha já deixou claro que o politicamente correcto é perigoso – dizem as más línguas, dizia eu, que o motivo é a aquela rica menina da Malveira, que se mudou para a SIC, desferindo um rude golpe nas audiências da TVI. Como em tempo de guerra, mesmo de audiências, não se limpam armas, cada um usa os truques mais rentáveis e eficazes para abater o inimigo. Dizem que foi qualquer coisa assim.

    O ilustre convidado do senhor Goucha cumpriu pena de prisão efectiva, entre outros crimes, por envolvimento na morte de Alcindo Monteiro, um cabo-verdiano de 27 anos. Alcindo Monteiro, é bom lembrar, foi morto por ser preto e porque Machado e os seus comparsas não gostam de pretos. Alcindo foi pontapeado na cabeça, estômago, peito e testículos, com botas de biqueira de aço. Tufos do seu cabelo ficaram presos na sola de uma das botas. Os valentes, brancos e hetero skins só pararam quando lhes apeteceu, saciados. Talvez o Goucha não se tenha lembrado que, aquele bando, liderado pelo não seu convidado, também não gosta de gays. Mas, é importante não branquear conversas, e o politicamente correcto é muito perigoso. Não posso estar mais de acordo. Como estamos todos em sintonia, a TVI emitiu um educado, delicado e democrático comunicado onde, entre outras coisas, fala “das opiniões e visão histórica de Mário Machado” e assegura que “o debate entre diferentes correntes de opinião, por mais criticáveis que as mesmas sejam, faz parte de uma sociedade democrática, plural e tolerante, comprometida com o respeito pelas liberdades individuais”, aproveitando “a oportunidade para reafirmar simultaneamente a importância da liberdade de expressão para o projeto editorial da TVI e o compromisso editorial desta com o respeito pela dignidade da pessoa humana e com a condenação do racismo e da xenofobia”. Muito bem dito. E, no entanto, é por aqui que me perco um pouco. Não percebo bem como é que dar palco a um criminoso, racista, cruz suástica ao peito (ou tatuada no braço), perseguindo negros, matando por ódio, se enquadra na liberdade de expressão e na pluralidade democrática e tolerante.

    Há quem defenda que Donald Trump e Jair Bolsonaro chegaram sem que déssemos por eles, precisamente, porque os subestimámos. Ignorámos o perigo que podiam representar, para a democracia, desprezámo-los como se isso bastasse para que caíssem por si, pelo seu ridículo absurdo. Não foi assim, pelo contrário. Talvez por isso andemos tão perdidos.

    É possível que, como escreve João Miguel Tavares, “aquilo que um dia pode empurrar Portugal para os braços de populistas da extrema-direita ou da extrema-esquerda” seja “os deputados que dizem que estão no Parlamento e não estão”; “as líderes de juventudes partidárias eleitas apesar das fraudes nos currículos; “as PGR competentes afastadas por serem incómodas para o poder político”; “os políticos condenados que demoram anos a ir para a prisão”; “os políticos corruptos protegidos pelos partidos”; “as leis que faltam para combater a corrupção”. Mas, para combater extremismos precisávamos de um jornalismo mais sério e de uma informação que fosse além dos sensacionalismos de ocasião e dos resultados da bola. E que se esteja nas tintas para as audiências.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

O (novo) Reino de Deus

De repente, o Brasil transformou-se numa espécie de gigantesco templo dessa seita que dá pelo nome de Igreja Universal do Reino de Deus, onde digníssimos pastores andam de jacto privado, instrumento maravilhoso para a evangelização do mundo, pois até Jesus Cristo não andaria hoje montado no burro, se estivesse fisicamente na Terra. É capaz.

Seja como for, o santíssimo, devotíssimo e duas vezes messiânico Bolsonaro, esse proclamado e aclamado mito, tomou, finalmente, posse como 38º Presidente do Brasil. Ontem, juntamente com a amantíssima mulher, desfilou num descapotável, sob a graça de Nosso Senhor, ela de Grace Kelly, ele igual a si próprio, logo, medonho, sem alfaiate que lhe valha, porque é uma fealdade também superlativa que brota de dentro e jorra, putrefacta e incontida, conspurcando tudo em seu redor. Bolsonaro é a voz do povo brasileiro, que lhe deu 58 milhões de votos para a defesa dos valores da pátria e para “restabelecer os padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil”. O de alguns, pelo menos. “Bíblia, Boi e Bala”, a nova Santíssima Trindade, em nome da qual Jair baptizou o novo Brasil, resgatado do Inferno, da corrupção e, principalmente, das malhas do PT. Os fiéis exultam, os impuros definham, como merecem.

Um pouco mais acima, ainda assim, abaixo de Deus, outro patriótico Salvador elogia o discurso. Pelo menos dois homens valentes e corajosos empenhados em construir, cada um, uma nação à sua imagem e semelhança, “sem discriminação ou divisão”, o primeiro, despedindo e insultando todos os que se lhe opõem, o outro, provavelmente, disparando as armas que simula empunhar, pelo menos, até que a evocação da “Ordem e o Progresso” legitime, de vez, o direito à legítima defesa por parte do “cidadão de bem”. E não há cidadão de bem que não apoie Bolsonaro, que foi eleito com a “campanha mais barata da história”. Imagino que, se houver dúvidas, ou dívidas, os acertos de contas ficarão a cargo da nova primeira-dama, não fosse o novo presidente um homem irrepreensivelmente impoluto, que não tem tempo de sair e, sobretudo, não quer esconder nada, não é essa a intenção.

Abraham Lincoln disse, um dia, que quase todos os homens são capazes de suportar a adversidade, mas, que se alguém quiser testar o carácter de um homem, deve dar-lhe poder. Pois, chegou o tempo de testar, não o carácter de um homem, mas o de nações inteiras. E a resistência de um regime que deixou de ser o melhor, senão para todos, para muitos. Demasiados.