segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Ode à Imbecilidade

 

Sapateiro — Hou da barca!

Diabo — Quem vem i?

Santo sapateiro honrado, como vens tão carregado?...

Sapateiro — Mandaram-me vir assi...

E pera onde é a viagem?

Diabo — Para o lago dos danados.

Sapateiro — Os que morrem confessados onde têm sua passagem?

Diabo — Nom cures de mais linguagem!

Esta é a tua barca, esta!

Sapateiro — Arrenegaria eu da festa e da puta da barcagem!

Como poderá isso ser, confessado e comungado?!... “

 

Era um dia de aulas normal, e a professora de português mandou-me ler, em voz alta, esta passagem do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente (talvez dispensasse apresentações, mas ando confusa). Até à próxima intervenção do Anjo, ainda o Sapateiro discute com o Demo, a palavra puta há-de surgir outra vez. Mas, aí chegada, não mais me engasguei. À primeira vez, levei uma reprimenda da professora, por ter parado no “Arrenegaria eu da festa”, sem ânimo para articular o palavrão na boca do Sapateiro: “qual é o problema, não sabes ler o que aí está escrito?” O tom não deixava margem para dúvidas. Estava escrito, efectivamente, urgente como uma ameaça, e cabia-me, a mim, ler, diante de toda a turma e da professora. De maneira que, de faces bem rosadas (sempre corei facilmente) e com a maior dignidade possível, lá li sobre a puta da barcagem, e o mais que daí veio, até à chegada do Frade com a Moça pela mão.

Findas as leituras, seguiu-se uma boa aula sobre aquela obra de Gil Vicente, o forte poder da metáfora, a violência da crítica social. Dias depois, ainda assistiríamos a uma encenação em palco da peça, e não recordo os traumas que é suposto termos sofrido, então, pobres alunos, pela indecente e bruta exposição à crueza do mestre. É verdade que continuei a corar. Mas, como era mal que vinha de trás, nunca cheguei a atribuir culpas a Gil Vicente (nem sequer à professora...), e até lhe li outros autos.

           

Mas, isso, já lá vão uns bons anos. Fosse eu moça em tempos modernos, teria visto a honra prontamente salva por umas justas, pudicas e higiénicas linhazinhas a tracejado, a azul, não tarda nada, para não ferir susceptibilidades. Há que limpar, da História e da memória, todas essas indecências que conspurcam a mente dos nossos adolescentes incautos e de outras pobres almas igualmente distraídas e puras. Se já nem é aconselhável que pelos cornos se peguem touros, nem se matem coelhos às cajadadas, nem a gatos se atirem paus...que cessem todas as obscenidades! É melhor servir tudo sem espinhos. E sem espinhas. Afinal, liberdade de expressão é dar palco a fazedores de opiniões polémicas, das do tipo daquele tipo, não é estudar versos pecaminosos de autores desbocados, nem outras poucas(grandes)-vergonhas. Talvez se estranhe...e depois se entranhe.