“Sapateiro — Hou da barca!
Diabo —
Quem vem i?
Santo sapateiro honrado, como vens tão carregado?...
Sapateiro — Mandaram-me vir assi...
E pera onde é a viagem?
Diabo —
Para o lago dos danados.
Sapateiro — Os que morrem confessados onde têm sua passagem?
Diabo —
Nom cures de mais linguagem!
Esta é a tua barca, esta!
Sapateiro — Arrenegaria eu da festa e da puta da barcagem!
Como poderá isso ser, confessado e comungado?!... “
Era um dia de aulas normal, e a professora de português
mandou-me ler, em voz alta, esta passagem do Auto da Barca do Inferno,
de Gil Vicente (talvez dispensasse apresentações, mas ando confusa). Até à
próxima intervenção do Anjo, ainda o Sapateiro discute com o Demo, a
palavra puta há-de surgir outra vez. Mas, aí chegada, não mais me
engasguei. À primeira vez, levei uma reprimenda da professora, por ter parado
no “Arrenegaria eu da festa”, sem ânimo para articular o palavrão
na boca do Sapateiro: “qual é o problema, não sabes ler o que aí está escrito?”
O tom não deixava margem para dúvidas. Estava escrito, efectivamente, urgente
como uma ameaça, e cabia-me, a mim, ler, diante de toda a turma e da
professora. De maneira que, de faces bem rosadas (sempre corei facilmente) e com
a maior dignidade possível, lá li sobre a puta da barcagem, e o mais que
daí veio, até à chegada do Frade com a Moça pela mão.
Findas as leituras, seguiu-se uma boa aula sobre aquela
obra de Gil Vicente, o forte poder da metáfora, a violência da crítica social.
Dias depois, ainda assistiríamos a uma encenação em palco da peça, e não
recordo os traumas que é suposto termos sofrido, então, pobres alunos, pela
indecente e bruta exposição à crueza do mestre. É verdade que continuei a
corar. Mas, como era mal que vinha de trás, nunca cheguei a atribuir culpas a
Gil Vicente (nem sequer à professora...), e até lhe li outros autos.
Mas, isso, já lá vão uns bons anos. Fosse eu moça em tempos modernos, teria visto a honra prontamente salva por umas justas, pudicas e higiénicas linhazinhas a tracejado, a azul, não tarda nada, para não ferir susceptibilidades. Há que limpar, da História e da memória, todas essas indecências que conspurcam a mente dos nossos adolescentes incautos e de outras pobres almas igualmente distraídas e puras. Se já nem é aconselhável que pelos cornos se peguem touros, nem se matem coelhos às cajadadas, nem a gatos se atirem paus...que cessem todas as obscenidades! É melhor servir tudo sem espinhos. E sem espinhas. Afinal, liberdade de expressão é dar palco a fazedores de opiniões polémicas, das do tipo daquele tipo, não é estudar versos pecaminosos de autores desbocados, nem outras poucas(grandes)-vergonhas. Talvez se estranhe...e depois se entranhe.