Liberdade de expressão, democracia, esquerda, direita,
comunismo, fascismo, racismo, verdade, mentira e outras coisas (vamos
dizer assim) do género, sempre foram complicadas, profundas (porque o são, de
facto), mas, não eram obtusas. Felizmente, nunca vivi em
ditadura (acabou quando eu era muito pequena) e o mais próximo que
estive de um regime “opressivo” foi no tempo em que vivi em Marrocos, já lá vão
vinte anos. Aí, fui seguida na rua, se entrava num táxi, não raras vezes o
motorista sabia onde eu morava sem que eu abrisse a boca, gente que eu não
conhecia e que nunca tinha visto, perguntava-me que tal estava o meu marido.
Cheguei a esquecer-me de um saco de compras no mercado e alguém,
diligentemente, mo levou a casa, sem que eu chegasse a saber quem (ficou na
portaria do prédio), nem como sabiam onde vivia. Houve mesmo uma vez em que um
polícia me parou, numa fila enorme de carros, para me informar, amavelmente,
que os “meus amigos”, afinal, não iriam para aquela praia, mas para
outra…parece mentira, é incrível, mas vivi-o, eu e o meu marido, e é
rigorosamente verdade. Há sempre alguém que sabe tirar partido das situações
mais insólitas. Os amigos, afinal, não eram nossos – como imaginámos logo –, só
o carro é que era parecido. Nunca cheguei a sentir-me, propriamente, insegura,
mas a sensação de constante vigilância, mesmo num país mais ou menos liberal
como aquele, é esmagadora, para quem só viveu em liberdade. Continuo a amar
Marrocos, a visitar Marrocos e ainda lá tenho amigos.
Actualmente, vivemos esmagados entre dois extremos. Ou
tudo é demasiado intenso, ou, pelo contrário, demasiado ligeiro. Não se pode
chamar fascista a um fascista, porque pode vir um fascista pior e,
então, não saberemos o que lhe chamar. A coberto de todas as liberdades,
incluindo a de expressão, temos que saber ouvir, sem levantar o sobrolho,
alguém dizer que o aquecimento global é um mito e que os planos de vacinação
são, na melhor das hipóteses, apenas e só um diabólico instrumento das
indústrias farmacêuticas para ganhar milhões, na pior, a principal causa de
autismo nas crianças. Os jornalistas são substituídos, sem dó nem piedade,
pelos entertainers do momento, ou pelos influencers dos milhões
de visualizações, e os meios de informação ditos sérios, sem saber o que fazer,
juntam-se à orgia. Havia um tempo em que, para vender colchões milagrosos a
incautos velhinhos e não só, uns rapazes e raparigas de bom ar vestiam umas
batas brancas e colocavam uns estetoscópios ao pescoço; não eram médicos, mas
pareciam. Às vezes, basta parecer. Outras vezes, nem ser, plenamente e com
alma, é suficiente. São tempos muito confusos.
Seguramente, não é a proibir um imberbe de falar que
defendemos a democracia. Ou a ciência. Não será por calar um escroque que
evitaremos que as suas ideias se propaguem. Muitos defendem que a liberdade de
expressão é exactamente isso: deixar falar quem quiser falar, independentemente
do que tenha para dizer. Mesmo que as ideias sejam “perigosas”, não devem ser
caladas, devem ser debatidas e, eventualmente, combatidas. É absolutamente
verdade. Toda a gente deve ter a legitimidade para defender aquilo em que
acredita e isso não devia incomodar os verdadeiros democratas. Mas, onde fica,
então, a fronteira entre a liberdade de expressão e o insulto? Entre a ciência
e a crença? Entre a realidade e a ficção? Podemos discutir as supostas
vantagens da ditadura com os saudosistas de Salazar. Mas, como é que se discute
com alguém que mata, a pontapé, porque não gosta da cor ou da raça? Podemos
discutir as dificuldades de integração e convivência que existem entre
comunidades diferentes. Mas, como é que se discute com quem defende a
esterilização dos pobres como forma de acabar com a criminalidade violenta?
Podemos discutir sobre a civilidade ou falta dela dos espectáculos
tauromáquicos. Mas, como é que se discute com quem rejubila com a morte de um
toureiro?
Se calhar, devemos dar palco à barbárie para a podermos combater. Só tenho medo de que, à custa de tanto a respeitar, a barbárie deixe de nos afectar. De nos indignar.