terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Afinal, o que é a liberdade?

Liberdade de expressão, democracia, esquerda, direita, comunismo, fascismo, racismo, verdade, mentira e outras coisas (vamos dizer assim) do género, sempre foram complicadas, profundas (porque o são, de facto), mas, não eram obtusas. Felizmente, nunca vivi em ditadura (acabou quando eu era muito pequena) e o mais próximo que estive de um regime “opressivo” foi no tempo em que vivi em Marrocos, já lá vão vinte anos. Aí, fui seguida na rua, se entrava num táxi, não raras vezes o motorista sabia onde eu morava sem que eu abrisse a boca, gente que eu não conhecia e que nunca tinha visto, perguntava-me que tal estava o meu marido. Cheguei a esquecer-me de um saco de compras no mercado e alguém, diligentemente, mo levou a casa, sem que eu chegasse a saber quem (ficou na portaria do prédio), nem como sabiam onde vivia. Houve mesmo uma vez em que um polícia me parou, numa fila enorme de carros, para me informar, amavelmente, que os “meus amigos”, afinal, não iriam para aquela praia, mas para outra…parece mentira, é incrível, mas vivi-o, eu e o meu marido, e é rigorosamente verdade. Há sempre alguém que sabe tirar partido das situações mais insólitas. Os amigos, afinal, não eram nossos – como imaginámos logo –, só o carro é que era parecido. Nunca cheguei a sentir-me, propriamente, insegura, mas a sensação de constante vigilância, mesmo num país mais ou menos liberal como aquele, é esmagadora, para quem só viveu em liberdade. Continuo a amar Marrocos, a visitar Marrocos e ainda lá tenho amigos.

Actualmente, vivemos esmagados entre dois extremos. Ou tudo é demasiado intenso, ou, pelo contrário, demasiado ligeiro. Não se pode chamar fascista a um fascista, porque pode vir um fascista pior e, então, não saberemos o que lhe chamar. A coberto de todas as liberdades, incluindo a de expressão, temos que saber ouvir, sem levantar o sobrolho, alguém dizer que o aquecimento global é um mito e que os planos de vacinação são, na melhor das hipóteses, apenas e só um diabólico instrumento das indústrias farmacêuticas para ganhar milhões, na pior, a principal causa de autismo nas crianças. Os jornalistas são substituídos, sem dó nem piedade, pelos entertainers do momento, ou pelos influencers dos milhões de visualizações, e os meios de informação ditos sérios, sem saber o que fazer, juntam-se à orgia. Havia um tempo em que, para vender colchões milagrosos a incautos velhinhos e não só, uns rapazes e raparigas de bom ar vestiam umas batas brancas e colocavam uns estetoscópios ao pescoço; não eram médicos, mas pareciam. Às vezes, basta parecer. Outras vezes, nem ser, plenamente e com alma, é suficiente. São tempos muito confusos.

Seguramente, não é a proibir um imberbe de falar que defendemos a democracia. Ou a ciência. Não será por calar um escroque que evitaremos que as suas ideias se propaguem. Muitos defendem que a liberdade de expressão é exactamente isso: deixar falar quem quiser falar, independentemente do que tenha para dizer. Mesmo que as ideias sejam “perigosas”, não devem ser caladas, devem ser debatidas e, eventualmente, combatidas. É absolutamente verdade. Toda a gente deve ter a legitimidade para defender aquilo em que acredita e isso não devia incomodar os verdadeiros democratas. Mas, onde fica, então, a fronteira entre a liberdade de expressão e o insulto? Entre a ciência e a crença? Entre a realidade e a ficção? Podemos discutir as supostas vantagens da ditadura com os saudosistas de Salazar. Mas, como é que se discute com alguém que mata, a pontapé, porque não gosta da cor ou da raça? Podemos discutir as dificuldades de integração e convivência que existem entre comunidades diferentes. Mas, como é que se discute com quem defende a esterilização dos pobres como forma de acabar com a criminalidade violenta? Podemos discutir sobre a civilidade ou falta dela dos espectáculos tauromáquicos. Mas, como é que se discute com quem rejubila com a morte de um toureiro?

Se calhar, devemos dar palco à barbárie para a podermos combater. Só tenho medo de que, à custa de tanto a respeitar, a barbárie deixe de nos afectar. De nos indignar.