segunda-feira, 22 de junho de 2020

Saramago

Deixei passar em claro o décimo aniversário da morte de um dos meus grandes escritores. Fica um pedaço – o último – de um dos meus (seus) livros preferidos.

“Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.”

As Intermitências da Morte, José Saramago

 

Há uma certa compaixão derramada em considerandos sobre o sofrimento alheio dos que partem e dos que ficam – comezinha, despudorada, absurdamente piegas – que me repugna violentamente. Mas, isso sou eu. Que nem gosto de jacarandás.


sábado, 20 de junho de 2020

E "vão vir charters"?


Já várias vezes pensei reunir as fotografias que melhor vão marcando o espanto destes dias que se fazem de pandemia e confinamentos vários, desde há tanto tempo que lhe perdi a conta e, ainda assim, parece muito mais. Hei-de fazê-lo, esse compêndio ilustrado de estórias contadas a diferentes modos. Bem como uma espécie de chave cronológica ornada dos espinhos que fui evitando como pude, tentando sangrar na dimensão exacta das penas, sendo certo que, o que não fui capaz de chorar, ser-me-á cobrado com juros, impiedosamente, quando passar a tormenta, como habitualmente, altura em que as lágrimas me parecerão mais inúteis ainda. Enfim, ninguém é perfeito.

De todas as imagens que construo, por enquanto, na memória, aquela ali em cima há-de ficar como exemplo maior da miserabilidade disso que chamam de desígnios nacionais. Dos nossos. Ou, pelo menos, dos que encheram de incontido júbilo os senhores presidente da nossa República e primeiro-ministro da mesma, mais os seus ofuscados coadjuvantes, do presidente da Assembleia da República ao presidente do Sporting, passando pelos ministros da Saúde e da Educação. Uma espécie de outra liga. Os Magníficos.

Portugal vai receber esse acontecimento maior do prestígio e reconhecimento internacionais que é a “Final Eight" da "Champions League”, parece que é assim que se chama. Fui confirmar e não garanto, porque pertenço a esse grupo desalumiado sem remédio de portugueses a quem o futebol, não só nada que mereça o incómodo diz, como vêem naquele anúncio um dos mais medíocres actos de deslumbramento seródio a que já nos sujeitaram a bem da pobre nação.

“Esperávamos, desejávamos, conseguimos. Vitória”. A coisa podia também ter sido feita e dita mais ou menos assim. E, na verdade, foi. Quase Fátima, Futebol e o Fado de permanecermos, na essência, um país atrasado, subdesenvolvido, sem uma visão estratégica de futuro que vá além da mão estendida aos fundos de Bruxelas e da venda da pátria a retalho para efeitos do turismo de massa, que enxotou para longe a gente da terra, que esvaziou os bairros da sua alma para os encher de alojamento local, tão local que, com a pandemia e o mundo trancado em recolhimento sem data de reabertura, silenciou de morte as cidades, votando-as ao abandono, encarcerando-as no desespero dos que deixaram de poder contar com os turistas essencialmente estrangeiros para sobreviver, sabe-se lá até quando.

Como não se sabe ainda se o grandioso espectáculo terá direito a adeptos enchendo bancadas, tudo, claro, com os cuidados devidos e o distanciamento social necessário. Acabámos de vê-lo em Nápoles, não foi, o fácil que é manter a multidão focada na contenção do risco de contágio? Mas, parece que se dissermos assim a coisa torna-se menos pornográfica e os profissionais de saúde poderão, então, saborear com merecido e agradecido deleite o prémio de saber se serão capazes de continuar a aguentar em braços um SNS remendado dia-a-dia, hora-a-hora, consoante a impertinência do bicho e a capacidade de sacrifício de todos. De quase todos. Estamos todos no mesmo barco, sim, mas alguns viajam em primeira classe e com lugar reservado nos botes salva-vidas, caso se agigante o iceberg, mais colossal que o navio.

Enquanto Marcelo e Costa se babavam com o reconhecimento pela UEFA, com a pompa que toda a circunstância dispensava, lembrei-me, vá lá saber-se porquê, do episódio dos charters da China. Parece que Futre ganhou uma nova vida depois disso. Talvez assim se explique o entusiasmo...


sexta-feira, 19 de junho de 2020

Entre Mundos

A miúda da bomba de gasolina é uma bomba relógio, à beira de um ataque de nervos. Estou ali há menos de 5 minutos e é a segunda mulher que pretende entrar na loja sem máscara, para uma coisinha rápida, e há um idiota a lavar o carro com a mangueira de encher o depósito de água do limpa-vidros, o bicho devidamente alinhado ocupando todo o espaço destinado à verificação da pressão dos pneus. Que absurdo. Haver quem não saiba sair de casa com os pneus calibradinhos, para não transtornar ímpetos de limpeza alheia. Uma afronta.

Entro para pagar. A miúda olha-me como se pretendesse saciar ali mesmo o impulso de cortar os pulsos. Pelo menos, é o que me confessa, entredentes, revirando os olhos de agastamento. Aconselho-a a ter a paciência que até a mim me falta, e estou do lado de cá do balcão. Mas toda a gente sabe do valor e utilidade dos conselhos, não é? Estaríamos ricos.

Saio, e ainda penso dizer qualquer coisinha ao palerma do carro mais o trapinho aprumado com que puxa o lustro às jantes medonhamente reluzentes, por esta altura, tal é o empenho. Mas falta-me a paciência, lá está, para apontar o óbvio sem provocar uma cena. Desisto. Espera-me uma viagem relativamente longa. Mais de seis horas enfiada no carro, ida e volta, um pulinho, para ir ver os meus. Os meus, aqueles que enchem essa locução amorosa que se faz de sangue e riso e lágrimas, de tempo contado a várias escalas e ordens de todas as grandezas. Vou em cuidados, ansiosa, entre a urgência dos afectos e as razões de cuidado, não abraçar, não beijar, desinfectar, higienizar, manter a distância física mais um piquenique fora de portas para suportar tudo isso; e ver isso tudo ruir nada mais nos adorarmos nos olhos que se encontram antes do resto. Salva-se o piquenique. As mesas postas de toalhas de linho tosco a cheirar a Primavera risonha. Há um pequeno riacho onde as pedras do leito gemem melodias afinadas ao sabor da brisa suave guiada pelos braços esguios das árvores a que os miúdos trepam, despreocupados, numa algazarra, como penduricalhos coloridos nos alpendres antigos das casas de campo. O sol entretém-se, jogando às escondidas, sacudindo sombras, aquecendo as mantas que entendemos no chão e onde nos sentamos, numa roda, por momentos esquecidos do mundo que agoniza lá fora.


quarta-feira, 17 de junho de 2020

O tempo que dói.




"Abro os vidros e às vezes grito."


Sobre coisa nenhuma

Se é de guerra que se trata, precisamos de impor um cessar-fogo. Urgentemente. Resgatar o pouco que resta, se resta ainda, da seriedade necessária para tratar das feridas expostas a diário e em contínuo, um cardápio voraz forjado sobre os despojos dos nossos ressentimentos. Há quem fale de ajuste de contas com a História, ou, da História a fazer-se, afinal, desde que o mundo é mundo e há gente para o contar ou para lhe julgar as rugas como marcas e marcos do tempo que passa. Dizem-na cíclica, à História, e que nada ou quase nada do que padece agora é realmente novo. Podemos voltar atrás no tempo e encontrar sempre algum paralelismo com o fogo que por ora a consome. A diferença é que, agora, o inferno é em directo. Com direito a repetições saturadas e saturantes, à margem de qualquer esforço de entendimento, tu és polícia, tu és ladrão, até não sobrar dúvida alguma, porque já ninguém ousa dispor do tempo necessário para conjurá-la.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Do Novo Banco, com despudor.

O caso Novo Banco é um escândalo, é um escândalo, é um escândalo. Qualquer pessoa com o mínimo de decência e vergonha devia recusar-se a presidir aquilo; àquilo. Não podendo, devia poupar-se e poupar-nos a leve sorriso que fosse - nem na forma tentada - de cada vez que dá entrevistas a propósito do tema e dos milhões que sobejam para rapar do fundo do tacho, quanto mais permitir-se reclamar prémios de desempenho ou coisa que descaradamente lhes valha, seja neste ano ou nos próximos.

Já sei. É a economia, estúpida. A banca não pode sofrer convulsões e os bancos não podem ruir. A falência é coisa de gente pobre e isenta da bonomia do Estado, principalmente, no que toca aos grandes interesses diz que do País. A pandemia pode atirar para o desemprego milhares de portugueses, engordar as filas de ajuda alimentar, estraçalhar a vida de muitos daqueles que, mais do que nunca terem recebido qualquer ajuda estatal, nunca se imaginaram à mercê da sua caridade, mas, o hipoteticamente impoluto contrato que ia deixar o BES, ou parte dele, novo e limpo é inviolável, inatacável, para cumprir à letra, ao cêntimo, com auditorias de faz-de-conta para português ver, e merece toda a nossa resignada candura. Hoje e sempre. Ámen.

Com sorte - vamos dizer assim - ainda alguém com memória disto há-de sobreviver tempo suficiente para assistir ao julgamento dos responsáveis. Os políticos e os outros. Sobretudo, os outros. 

Menos mal que, em breve, chegarão (não é?) os milhões de Bruxelas para despejar sobre os virtuosos do costume. De helicóptero. Num ápice, tudo será resolvido, sanado, esquecido, e os resmungos confinados, como merecem, às filas de espera às portas dos serviços públicos que se aguentarem até ficar tudo na mesma. Ou tudo nos mesmos. Ninguém nota.

Ibrahim


A fotografia é de Alfredo Cunha. Hesito em colocá-la ali. É possível que venha a removê-la, deixando-a apenas no registo narrado de Luís Pedro Nunes. É avassaladora e não pretendo abusá-la. Mas, na história e no rosto de Ibrahim, há qualquer coisa que também a mim me assombra. Não sei se do romanesco aloucado dos dias, do asco que ainda me provoca a sobranceria abjecta, criminosa, do joelho que asfixiou Floyd, da imbecilidade que é combater a violência com violência, a brutalidade com brutalidade, a barbárie com barbárie. Ou, se é da firmeza imaculada dessa dignidade contada em comoção crua, falsamente bruta, que transcende a beleza da fotografia porque forjada a cinzel, com elevada minúcia, na vontade de alguns, poucos, a quem nem a escravatura é capaz de corromper. 

Pensamos ser livres. Sabemos lá o que é a liberdade.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Do dia que finda. E de outros.

Estamos sentadas lado-a-lado, num banco de madeira corrido e pouco robusto. Ela aguarda a hora do casting e eu acompanho uma amiga no mesmo propósito. Estão a rodar o Legionário e já avistei, de longe, o herói. O que o grande écran faz de um homem, senhores (e das mulheres também, é verdade, talvez escapem as senhoras). Hei-de cruzar-me com ele mais logo, ao jantar, por acaso e sem mais história.

É bastante mais velha do que eu. Mais eloquente, também. Fala atirando para trás o cabelo negro, em gestos rasgados, ensaiando poses que fazem tremelicar os adereços emprestados pelo staff entre mil cuidados, como quem roga pragas. Conversamos fundindo o espanhol e o francês numa amálgama frequente e natural por aquelas paragens, até eu dizer que sou portuguesa e ela me atirar um eu também! estridente, antes de puxar do passaporte, que reluz com alegria e uma excitação desmedida, num alvoroço improvável que atribuo menos à exaltação da nacionalidade lusa e mais ao aparato dos cenários e à exuberância do guarda-roupa que enfeita a sala-de-estar improvisada.
Ingenuamente, pergunto-lhe se fala português. Não fala. Não sabe nada de Portugal, a não ser que não pertence a Espanha, o que já é bastante e nem sempre evidente a um estrangeiro, mesmo nos nossos dias. Nestes, que não são bem nossos, de há uns meses a esta parte, mas é o que há, e a conversa houve, mas há mais tempo.
Vai começar a explicar-me que deve a nacionalidade ao avô paterno, que era português, quando a chamam em pressas retumbantes, a prova, é a hora da prova, e não chego a inteirar-me da dimensão da sua jovial portugalidade, se esgotada nas páginas do passaporte, se enraizada na profundez da pertença a cousa maior. E chega, enfim, a minha amiga, corada, cheia (cheio) de brilhos, como dizia, há dias, o meu filho do mar que se oferecia ao sol, estremecendo em contraluz, radiante, ela, tal-qual uma criança arrebatada. O casting foi um sucesso, conta-me em novelos de riso. Foi escolhida, como ansiava, para compor uma das cenas do filme, enverga o vestido da época, magnífico, magnífica ela, de alegria atrevida e solta, genuína como sempre. Rio com ela. Abraçamo-nos como duas colegiais histéricas, ignorando, ainda, a vontade soberana do marido que há-de estancar o delírio daí a nada, em chegando a tarde, de mansinho.

Mas, perco-me em desvarios e memórias a despropósito. Não era ao que vinha. Falava de portugalidade, o que quer que seja isso, afinal, de ser português, para além do papel timbrado e dos versos compassados do poeta compondo os seus dez cantos a cada oito versos em rimas alternadas e a par, em tanto ajudado pelo engenho e arte, da Morte também ele libertado. 
De todos os pecados de que enfermam os que me desmerecem isso a que chamam direito de solo ou de sangue, o dessaber a língua é o que tomo como afronta maior. Mas, isso sou eu. Sem perceber nada de direitos daqueles, e apenas para não deixar passar o dia em branco, mesmo sendo avessa a dias de, e a ajustes de contas com a História.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Esquerda, Direita, Viver, Matar ou Morrer.

Não deixa de ser assombroso que a chamada modernidade tenha trazido consigo uma espécie de repugnância esmagadora à dicotomia política esquerda-direita. Eu não percebo muito (nada, na verdade) de política e, pior, não me vejo plenamente representada em nenhum desses cantos. Dir-se-á que sou de centro e, aqui, poderia ser de centro-direita ou de centro-esquerda, mas, a minha inaptidão para grandes tabiques partidários e/ou ideológicos impede-me de me centrar devidamente, mesmo sabendo que é no meio que estará a virtude que deixamos escapar à menor contrariedade.

É imperioso pertencer a qualquer lado; imperdoável duvidar ou hesitar na gaveta adequada a arrumar as (com?) nossas convicções forçadas ou forjadas, porque os tempos não se compadecem com o escrúpulo da incerteza. As sociedades ditas democráticas polarizaram-se como já não(?) havia memória, um gigantesco balão estrangulado a meio, sem retorno, e a política não escapou. Ou foi ao contrário, como a charada do ovo e da galinha, tão apostados estamos em ter razão que esquecemos que, se no início era o verbo, já levamos algum tempo de criação para usar melhor da palavra e, sobretudo, dessa coisa que nos devia distinguir dos outros animais, mas aparentemente (e convenientemente) nem sempre. E, assim chegámos aos dias de hoje, confinados para lá das metáforas e em guerra aberta entre dois extremos. E andava eu de volta disto quando dei com o artigo de João Miguel Tavares. De vez em quando, convergimos. Não muito, não sempre.

Esquerdalha, ou esquerdalhos, e direitolas, ou fascistas, parece não haver espaço para mais. Já não se discute. A discussão, no sentido nobre do termo, requer tempo, um tudo-nada de sofrimento e inteligência. Pequenos luxos que já só alguns ambicionam. Um estorvo. De resto, é sobejamente conhecida a arreganhada preferência pelo chavão quando escasseia a paciência e, por minoria de razão, os argumentos, que, não há muito tempo, se extinguiam na sisudez dos factos, até estes se tornarem uma extravagância alternativa e aclamada. A liberdade de expressão veio trazer um glamour exótico à trivialidade do discurso, que é como quem diz, um travo de toxicidade ultrajante, alheia a cortesias e visceralmente avessa a consensos. Quanto pior, melhor.
Ser de direita parece, então, resumir-se a uma espécie de iluminada coragem em denunciar e contrariar, estoicamente, a subjugação dos povos que os governos da esquerda cada vez menos democrática vão impondo, com pezinhos de lã e máscaras sociais, a pretexto de um vírus ranhoso que veio assentar como uma luva – parece que é uma coroa – nas ambições demoníacas destes aspirantes a ditadores. Sob o seu jugo, marchamos – os incautos – como rebanhos, amansados, aceitando sem hesitações liberdades coartadas, ignorantes da manha do bicho mais voraz que a doença. Parece que é mais ou menos assim.
Pergunto-me como seria suposto, então, gerirmos tudo isto. Suponho que com a estratégia sueca – que os próprios já começam a questionar –, esperando não chegar à tragédia de Itália ou de Espanha, partindo do princípio de que italianos e espanhóis não encenaram o horror das mortes que lhes assombraram os dias e a alma de lutos dessecados, nem deslocaram cadáveres a gosto como peças de um macabro xadrez com o propósito tortuoso e ainda assim certeiro de incubar um xeque-mate atentatório dos fundamentos da democracia. Há guião e elenco para todos os números. 

É fundamental – mais do que útil e saudável – que haja quem veja para além do óbvio. Que duvida, que desconfia da informação que se faz a metro, sem tempo para investigar, indagar, confirmar. A pressa a que estamos votados pela velocidade da net não se compadece com os caprichos do rigor. A etapa determinante para a evolução das reacções em cadeia virtual obedece a outras leis, e assim se chegou à ciência feita em directo, expondo obscenamente a intimidade das suas falhas, permitindo um corrupio de exercícios mais ou menos jocosos – e perigosos – sobre a credibilidade e respeitabilidade da dita senhora.
Por outro lado, muitos dos que se sobressaltam com as investidas dos governos de esquerda – nomeadamente, no que toca à amputação dos nossos direitos, liberdades e garantias – são os mesmo que babam sobre a usurpação da bíblia, imbuídos na fé destes novos senhores apostados em moldar o mundo à sua imagem e semelhança, semeando o caos, atiçando a raiva e animando a horda a que os analistas políticos continuam a chamar a sua base eleitoral, porque nos habituámos a fingir normalidades e vai ficar tudo bem.
Veremos, quando chegar o fim da vida política destes chefes de estado de pacotilha, nas urnas, como deve ser em democracia, se estes senhores, dizia, aceitarão pacificamente a vontade do povo. A mesma que anda a ser esmagada pela conspiração acertada dos governos de esquerda.

De modo que, o maior problema entre a esquerda e a direita dos nossos dias - para quem não percebe nada de política, como eu - não parece residir na improbidade, já que as duas enfermam de vícios idênticos. A diferença é que a doutrinação e a ideologia são mais suportáveis em cousa e causa próprias. Sem a benção de deuses e dos santos apóstrofos, ou apóstolos, ou lá o que sejam, são socialismo perigoso, mas, se bem armadas de bíblia e aleluias em romarias santificadas e livres do mal pela força do senhor, são a exibição imaculada de um estado de direito, mais do que direita, um assombro de valentia e liberdade. Um milagre.

Continuo a não saber bem onde me encaixo, nos dias de hoje, mas, seguramente, não é ao lado de gente que o único que tem para oferecer é a terra que tratou de queimar para melhor servir a sua própria colheita e aprimorar a sua já deplorável casta. E, sim, a esquerda merece ser combatida, porque assim deve ser em democracia, e em relação a qualquer canto ou cor política. Mas, a direita portuguesa merece mesmo mais do que (a)venturas.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Ainda na América

Não há justiça na violência, por muita que seja a revolta perante um acto ominoso como foi a morte gratuita de um homem detido pela polícia. E foi. Podemos fingir que a indignação serve apenas a vontade de protagonismo, ou lá o que é que piam os impolutos, sempre mais avisados do que os demais, e que era, obviamente, possível que George Floyd fosse branco e negro, eventualmente, o polícia que o asfixiou. Possível seria, claro. E, nesse caso, os tumultos que tomaram a América de assalto nos últimos dias seriam exactamente o quê, marchas pacíficas, com gente elegante de mãos dadas e flores ao peito, clamando justiça civilizadamente? Também é possível. Aliás, viu-se, quando aquela boa gente entrou armada no capitólio em Michigan e Trump aconselhou a senadora a dialogar com os manifestantes. Toda a gente sabe dos dotes de Trump no que toca a diálogos, desde que os interlocutores falem a sua língua ou se calam para sempre. Jerk.

A violência gera violência, é o mais esgotado dos slogans. Nada justifica a destruição, os saques, e os vândalos merecem ser julgados pelos seus actos. Mas essa evidência não apaga a outra: um homem foi morto por um polícia de serviço, depois de repetir “I can´t breathe” até perder, primeiro, a consciência e, depois, a vida. Engoli a náusea e vi o vídeo.  Uma parte. Menos do que os 8 ou 9 minutos que ouço ter durado a agonia de Floyd. É preciso ter algum estofo para chegar ao fim daquilo. Cada um vê o que quer, e, numa sociedade cada vez mais polarizada, há sempre quem recuse ver o óbvio. E não falo de racismo, falo do poder cobarde que alguns dos mais fortes gostam de exercer sobre os mais fracos, porque podem. Porque sabem que podem. É a mesma cobardia que guia os trastes que espalham, agora, os caos pelas ruas de várias cidades americanas, sim, e, no entanto, continua a indignar-me mais, até à náusea sim, o joelho daquele polícia no pescoço daquele homem a implorar pela vida, de cara contra o chão. Atirem-me pedras.