sexta-feira, 19 de junho de 2020

Entre Mundos

A miúda da bomba de gasolina é uma bomba relógio, à beira de um ataque de nervos. Estou ali há menos de 5 minutos e é a segunda mulher que pretende entrar na loja sem máscara, para uma coisinha rápida, e há um idiota a lavar o carro com a mangueira de encher o depósito de água do limpa-vidros, o bicho devidamente alinhado ocupando todo o espaço destinado à verificação da pressão dos pneus. Que absurdo. Haver quem não saiba sair de casa com os pneus calibradinhos, para não transtornar ímpetos de limpeza alheia. Uma afronta.

Entro para pagar. A miúda olha-me como se pretendesse saciar ali mesmo o impulso de cortar os pulsos. Pelo menos, é o que me confessa, entredentes, revirando os olhos de agastamento. Aconselho-a a ter a paciência que até a mim me falta, e estou do lado de cá do balcão. Mas toda a gente sabe do valor e utilidade dos conselhos, não é? Estaríamos ricos.

Saio, e ainda penso dizer qualquer coisinha ao palerma do carro mais o trapinho aprumado com que puxa o lustro às jantes medonhamente reluzentes, por esta altura, tal é o empenho. Mas falta-me a paciência, lá está, para apontar o óbvio sem provocar uma cena. Desisto. Espera-me uma viagem relativamente longa. Mais de seis horas enfiada no carro, ida e volta, um pulinho, para ir ver os meus. Os meus, aqueles que enchem essa locução amorosa que se faz de sangue e riso e lágrimas, de tempo contado a várias escalas e ordens de todas as grandezas. Vou em cuidados, ansiosa, entre a urgência dos afectos e as razões de cuidado, não abraçar, não beijar, desinfectar, higienizar, manter a distância física mais um piquenique fora de portas para suportar tudo isso; e ver isso tudo ruir nada mais nos adorarmos nos olhos que se encontram antes do resto. Salva-se o piquenique. As mesas postas de toalhas de linho tosco a cheirar a Primavera risonha. Há um pequeno riacho onde as pedras do leito gemem melodias afinadas ao sabor da brisa suave guiada pelos braços esguios das árvores a que os miúdos trepam, despreocupados, numa algazarra, como penduricalhos coloridos nos alpendres antigos das casas de campo. O sol entretém-se, jogando às escondidas, sacudindo sombras, aquecendo as mantas que entendemos no chão e onde nos sentamos, numa roda, por momentos esquecidos do mundo que agoniza lá fora.