A miúda da bomba de gasolina é uma bomba relógio, à
beira de um ataque de nervos. Estou ali há menos de 5 minutos e é a segunda
mulher que pretende entrar na loja sem máscara, para uma coisinha rápida,
e há um idiota a lavar o carro com a mangueira de encher o depósito de água do
limpa-vidros, o bicho devidamente alinhado ocupando todo o espaço destinado à verificação
da pressão dos pneus. Que absurdo. Haver quem não saiba sair de casa com os
pneus calibradinhos, para não transtornar ímpetos de limpeza alheia. Uma
afronta.
Entro para pagar. A miúda olha-me
como se pretendesse saciar ali mesmo o impulso de cortar os pulsos. Pelo menos, é
o que me confessa, entredentes, revirando os olhos de agastamento. Aconselho-a
a ter a paciência que até a mim me falta, e estou do lado de cá do balcão. Mas
toda a gente sabe do valor e utilidade dos conselhos, não é? Estaríamos ricos.
Saio, e ainda penso dizer qualquer
coisinha ao palerma do carro mais o trapinho aprumado com que puxa o lustro às
jantes medonhamente reluzentes, por esta altura, tal é o empenho. Mas falta-me a
paciência, lá está, para apontar o óbvio sem provocar uma cena. Desisto. Espera-me
uma viagem relativamente longa. Mais de seis horas enfiada no carro, ida e
volta, um pulinho, para ir ver os meus. Os meus, aqueles que enchem essa
locução amorosa que se faz de sangue e riso e lágrimas, de tempo contado a
várias escalas e ordens de todas as grandezas. Vou em cuidados, ansiosa, entre
a urgência dos afectos e as razões de cuidado, não abraçar, não
beijar, desinfectar, higienizar, manter a distância física mais
um piquenique fora de portas para suportar tudo isso; e ver isso tudo ruir nada
mais nos adorarmos nos olhos que se encontram antes do resto. Salva-se o
piquenique. As mesas postas de toalhas de linho tosco a cheirar a Primavera risonha.
Há um pequeno riacho onde as pedras do leito gemem melodias afinadas ao sabor da
brisa suave guiada pelos braços esguios das árvores a que os miúdos trepam, despreocupados,
numa algazarra, como penduricalhos coloridos nos alpendres antigos das casas de
campo. O sol entretém-se, jogando às escondidas, sacudindo sombras, aquecendo
as mantas que entendemos no chão e onde nos sentamos, numa roda, por momentos
esquecidos do mundo que agoniza lá fora.