sábado, 20 de junho de 2020

E "vão vir charters"?


Já várias vezes pensei reunir as fotografias que melhor vão marcando o espanto destes dias que se fazem de pandemia e confinamentos vários, desde há tanto tempo que lhe perdi a conta e, ainda assim, parece muito mais. Hei-de fazê-lo, esse compêndio ilustrado de estórias contadas a diferentes modos. Bem como uma espécie de chave cronológica ornada dos espinhos que fui evitando como pude, tentando sangrar na dimensão exacta das penas, sendo certo que, o que não fui capaz de chorar, ser-me-á cobrado com juros, impiedosamente, quando passar a tormenta, como habitualmente, altura em que as lágrimas me parecerão mais inúteis ainda. Enfim, ninguém é perfeito.

De todas as imagens que construo, por enquanto, na memória, aquela ali em cima há-de ficar como exemplo maior da miserabilidade disso que chamam de desígnios nacionais. Dos nossos. Ou, pelo menos, dos que encheram de incontido júbilo os senhores presidente da nossa República e primeiro-ministro da mesma, mais os seus ofuscados coadjuvantes, do presidente da Assembleia da República ao presidente do Sporting, passando pelos ministros da Saúde e da Educação. Uma espécie de outra liga. Os Magníficos.

Portugal vai receber esse acontecimento maior do prestígio e reconhecimento internacionais que é a “Final Eight" da "Champions League”, parece que é assim que se chama. Fui confirmar e não garanto, porque pertenço a esse grupo desalumiado sem remédio de portugueses a quem o futebol, não só nada que mereça o incómodo diz, como vêem naquele anúncio um dos mais medíocres actos de deslumbramento seródio a que já nos sujeitaram a bem da pobre nação.

“Esperávamos, desejávamos, conseguimos. Vitória”. A coisa podia também ter sido feita e dita mais ou menos assim. E, na verdade, foi. Quase Fátima, Futebol e o Fado de permanecermos, na essência, um país atrasado, subdesenvolvido, sem uma visão estratégica de futuro que vá além da mão estendida aos fundos de Bruxelas e da venda da pátria a retalho para efeitos do turismo de massa, que enxotou para longe a gente da terra, que esvaziou os bairros da sua alma para os encher de alojamento local, tão local que, com a pandemia e o mundo trancado em recolhimento sem data de reabertura, silenciou de morte as cidades, votando-as ao abandono, encarcerando-as no desespero dos que deixaram de poder contar com os turistas essencialmente estrangeiros para sobreviver, sabe-se lá até quando.

Como não se sabe ainda se o grandioso espectáculo terá direito a adeptos enchendo bancadas, tudo, claro, com os cuidados devidos e o distanciamento social necessário. Acabámos de vê-lo em Nápoles, não foi, o fácil que é manter a multidão focada na contenção do risco de contágio? Mas, parece que se dissermos assim a coisa torna-se menos pornográfica e os profissionais de saúde poderão, então, saborear com merecido e agradecido deleite o prémio de saber se serão capazes de continuar a aguentar em braços um SNS remendado dia-a-dia, hora-a-hora, consoante a impertinência do bicho e a capacidade de sacrifício de todos. De quase todos. Estamos todos no mesmo barco, sim, mas alguns viajam em primeira classe e com lugar reservado nos botes salva-vidas, caso se agigante o iceberg, mais colossal que o navio.

Enquanto Marcelo e Costa se babavam com o reconhecimento pela UEFA, com a pompa que toda a circunstância dispensava, lembrei-me, vá lá saber-se porquê, do episódio dos charters da China. Parece que Futre ganhou uma nova vida depois disso. Talvez assim se explique o entusiasmo...