Deixei passar em claro o décimo aniversário da morte de um dos
meus grandes escritores. Fica um pedaço – o último – de um dos meus (seus) livros
preferidos.
“Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se,
abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou
em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o
piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto,
debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a
cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o
papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe
fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o
fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte
podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao
homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia,
sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte
ninguém morreu.”
As Intermitências da Morte, José Saramago
Há uma certa compaixão derramada em considerandos
sobre o sofrimento alheio dos que partem e dos que ficam – comezinha,
despudorada, absurdamente piegas – que me repugna violentamente. Mas, isso sou
eu. Que nem gosto de jacarandás.