Estamos sentadas lado-a-lado, num banco
de madeira corrido e pouco robusto. Ela aguarda a hora do casting e eu
acompanho uma amiga no mesmo propósito. Estão a rodar o Legionário e já
avistei, de longe, o herói. O que o grande écran faz de um homem, senhores (e
das mulheres também, é verdade, talvez escapem as senhoras). Hei-de cruzar-me com ele mais logo, ao jantar,
por acaso e sem mais história.
É bastante mais velha do que eu. Mais
eloquente, também. Fala atirando para trás o cabelo negro, em gestos rasgados,
ensaiando poses que fazem tremelicar os adereços emprestados pelo staff entre mil cuidados, como quem roga pragas. Conversamos fundindo o espanhol e o
francês numa amálgama frequente e natural por aquelas paragens, até eu dizer
que sou portuguesa e ela me atirar um eu também! estridente, antes de puxar
do passaporte, que reluz com alegria e uma excitação desmedida, num alvoroço improvável
que atribuo menos à exaltação da nacionalidade lusa e mais ao aparato dos
cenários e à exuberância do guarda-roupa que enfeita a sala-de-estar
improvisada.
Ingenuamente, pergunto-lhe se fala
português. Não fala. Não sabe nada de Portugal, a não ser que não pertence a
Espanha, o que já é bastante e nem sempre evidente a um estrangeiro,
mesmo nos nossos dias. Nestes, que não são bem nossos, de há uns meses a esta
parte, mas é o que há, e a conversa houve, mas há mais tempo.
Vai começar a explicar-me que deve a
nacionalidade ao avô paterno, que era português, quando a chamam em pressas retumbantes, a prova, é a hora da prova, e não chego a inteirar-me da dimensão da sua jovial portugalidade,
se esgotada nas páginas do passaporte, se enraizada na profundez da pertença a
cousa maior. E chega, enfim, a minha amiga, corada, cheia (cheio) de brilhos,
como dizia, há dias, o meu filho do mar que se oferecia ao sol, estremecendo em contraluz, radiante, ela, tal-qual uma criança arrebatada. O casting
foi um sucesso, conta-me em novelos de riso. Foi escolhida, como ansiava, para compor
uma das cenas do filme, enverga o vestido da época, magnífico, magnífica ela,
de alegria atrevida e solta, genuína como sempre. Rio com ela. Abraçamo-nos como duas
colegiais histéricas, ignorando, ainda, a vontade soberana do marido que há-de estancar
o delírio daí a nada, em chegando a tarde, de mansinho.
Mas, perco-me em desvarios e memórias a
despropósito. Não era ao que vinha. Falava de portugalidade, o que quer
que seja isso, afinal, de ser português, para além do papel timbrado e
dos versos compassados do poeta compondo os seus dez cantos a cada oito versos
em rimas alternadas e a par, em tanto ajudado pelo engenho e arte, da Morte
também ele libertado.
De todos os pecados de que enfermam os que me desmerecem isso a que chamam direito de solo ou de sangue, o dessaber a língua é o que tomo como afronta maior. Mas, isso sou eu. Sem perceber nada de direitos daqueles, e apenas para não deixar passar o dia em branco, mesmo sendo avessa a dias de, e a ajustes de contas com a História.
De todos os pecados de que enfermam os que me desmerecem isso a que chamam direito de solo ou de sangue, o dessaber a língua é o que tomo como afronta maior. Mas, isso sou eu. Sem perceber nada de direitos daqueles, e apenas para não deixar passar o dia em branco, mesmo sendo avessa a dias de, e a ajustes de contas com a História.