quinta-feira, 4 de junho de 2020

Esquerda, Direita, Viver, Matar ou Morrer.

Não deixa de ser assombroso que a chamada modernidade tenha trazido consigo uma espécie de repugnância esmagadora à dicotomia política esquerda-direita. Eu não percebo muito (nada, na verdade) de política e, pior, não me vejo plenamente representada em nenhum desses cantos. Dir-se-á que sou de centro e, aqui, poderia ser de centro-direita ou de centro-esquerda, mas, a minha inaptidão para grandes tabiques partidários e/ou ideológicos impede-me de me centrar devidamente, mesmo sabendo que é no meio que estará a virtude que deixamos escapar à menor contrariedade.

É imperioso pertencer a qualquer lado; imperdoável duvidar ou hesitar na gaveta adequada a arrumar as (com?) nossas convicções forçadas ou forjadas, porque os tempos não se compadecem com o escrúpulo da incerteza. As sociedades ditas democráticas polarizaram-se como já não(?) havia memória, um gigantesco balão estrangulado a meio, sem retorno, e a política não escapou. Ou foi ao contrário, como a charada do ovo e da galinha, tão apostados estamos em ter razão que esquecemos que, se no início era o verbo, já levamos algum tempo de criação para usar melhor da palavra e, sobretudo, dessa coisa que nos devia distinguir dos outros animais, mas aparentemente (e convenientemente) nem sempre. E, assim chegámos aos dias de hoje, confinados para lá das metáforas e em guerra aberta entre dois extremos. E andava eu de volta disto quando dei com o artigo de João Miguel Tavares. De vez em quando, convergimos. Não muito, não sempre.

Esquerdalha, ou esquerdalhos, e direitolas, ou fascistas, parece não haver espaço para mais. Já não se discute. A discussão, no sentido nobre do termo, requer tempo, um tudo-nada de sofrimento e inteligência. Pequenos luxos que já só alguns ambicionam. Um estorvo. De resto, é sobejamente conhecida a arreganhada preferência pelo chavão quando escasseia a paciência e, por minoria de razão, os argumentos, que, não há muito tempo, se extinguiam na sisudez dos factos, até estes se tornarem uma extravagância alternativa e aclamada. A liberdade de expressão veio trazer um glamour exótico à trivialidade do discurso, que é como quem diz, um travo de toxicidade ultrajante, alheia a cortesias e visceralmente avessa a consensos. Quanto pior, melhor.
Ser de direita parece, então, resumir-se a uma espécie de iluminada coragem em denunciar e contrariar, estoicamente, a subjugação dos povos que os governos da esquerda cada vez menos democrática vão impondo, com pezinhos de lã e máscaras sociais, a pretexto de um vírus ranhoso que veio assentar como uma luva – parece que é uma coroa – nas ambições demoníacas destes aspirantes a ditadores. Sob o seu jugo, marchamos – os incautos – como rebanhos, amansados, aceitando sem hesitações liberdades coartadas, ignorantes da manha do bicho mais voraz que a doença. Parece que é mais ou menos assim.
Pergunto-me como seria suposto, então, gerirmos tudo isto. Suponho que com a estratégia sueca – que os próprios já começam a questionar –, esperando não chegar à tragédia de Itália ou de Espanha, partindo do princípio de que italianos e espanhóis não encenaram o horror das mortes que lhes assombraram os dias e a alma de lutos dessecados, nem deslocaram cadáveres a gosto como peças de um macabro xadrez com o propósito tortuoso e ainda assim certeiro de incubar um xeque-mate atentatório dos fundamentos da democracia. Há guião e elenco para todos os números. 

É fundamental – mais do que útil e saudável – que haja quem veja para além do óbvio. Que duvida, que desconfia da informação que se faz a metro, sem tempo para investigar, indagar, confirmar. A pressa a que estamos votados pela velocidade da net não se compadece com os caprichos do rigor. A etapa determinante para a evolução das reacções em cadeia virtual obedece a outras leis, e assim se chegou à ciência feita em directo, expondo obscenamente a intimidade das suas falhas, permitindo um corrupio de exercícios mais ou menos jocosos – e perigosos – sobre a credibilidade e respeitabilidade da dita senhora.
Por outro lado, muitos dos que se sobressaltam com as investidas dos governos de esquerda – nomeadamente, no que toca à amputação dos nossos direitos, liberdades e garantias – são os mesmo que babam sobre a usurpação da bíblia, imbuídos na fé destes novos senhores apostados em moldar o mundo à sua imagem e semelhança, semeando o caos, atiçando a raiva e animando a horda a que os analistas políticos continuam a chamar a sua base eleitoral, porque nos habituámos a fingir normalidades e vai ficar tudo bem.
Veremos, quando chegar o fim da vida política destes chefes de estado de pacotilha, nas urnas, como deve ser em democracia, se estes senhores, dizia, aceitarão pacificamente a vontade do povo. A mesma que anda a ser esmagada pela conspiração acertada dos governos de esquerda.

De modo que, o maior problema entre a esquerda e a direita dos nossos dias - para quem não percebe nada de política, como eu - não parece residir na improbidade, já que as duas enfermam de vícios idênticos. A diferença é que a doutrinação e a ideologia são mais suportáveis em cousa e causa próprias. Sem a benção de deuses e dos santos apóstrofos, ou apóstolos, ou lá o que sejam, são socialismo perigoso, mas, se bem armadas de bíblia e aleluias em romarias santificadas e livres do mal pela força do senhor, são a exibição imaculada de um estado de direito, mais do que direita, um assombro de valentia e liberdade. Um milagre.

Continuo a não saber bem onde me encaixo, nos dias de hoje, mas, seguramente, não é ao lado de gente que o único que tem para oferecer é a terra que tratou de queimar para melhor servir a sua própria colheita e aprimorar a sua já deplorável casta. E, sim, a esquerda merece ser combatida, porque assim deve ser em democracia, e em relação a qualquer canto ou cor política. Mas, a direita portuguesa merece mesmo mais do que (a)venturas.