quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Sobre coisas realmente abjectas

Segundo a organização internacional Save the Chlidren, nos últimos dez anos “a guerra matou ou mutilou 93 236 crianças”. Li esta notícia há dois dias, pelo que, hoje, muito provavelmente, aquele número já estará desactualizado. 

O sofrimento das crianças que (sobre)vivem em palcos de guerra – guerra mesmo guerra – é tão terrível, tão obsceno, que nunca seremos (nós, os ocidentais privilegiados; mesmo os “remediados”) capazes de imaginar o inferno que se vive nesses países. O esquecimento que dedicamos à miséria dessa gente desfeita pela acaso de ter nascido no lado errado do mundo deve ser uma forma de preservarmos a nossa sanidade mental. De outro modo, seríamos incapazes de levar uma vida normal, para lá do empecilho das máscaras e do abuso do Estado sobre o controlo da hora a que nos devemos recolher. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, mas, para uma insuportavelmente extensa parte da população mundial, essa igualdade e liberdade outorgada em declarações e decretos morre no próprio acto de nascer.

No mesmo dia e no mesmo jornal, li sobre as mais de 33 mil pessoas que fugiram para o Sudão em menos de três semanas: são etíopes que tentam, assim, escapar ao conflito que opõe o Governo de Abiy Ahmed à “Frente de Libertação do Povo Tigré”. O acordo de paz entre a Etiópia e a Eritreia provocou descontentamento entre rebeldes e, aparentemente, o adiamento das eleições legislativas e presidenciais motivado pela gestão da crise pandémica da covid-19 fez, ou desfez, tudo o resto. Podia ser só uma ironia.


E, por cá, o ano de 2020 já viu morrer 30 mulheres em contexto de violência doméstica. Até há uns dias, que o malfadado ano ainda não terminou. Embora, este ano, no que toca a este drama, não seja muito diferente de outros anos. 

Em alguns casos (invariavelmente, ano após ano), houve crianças a assistir aos crimes. Pergunto-me sempre – e, obviamente, não sou a única – por que motivo serão sempre as mulheres e as crianças as obrigadas a fugir e a viver escondidas dos seus agressores, quando deveriam ser estes a permanecer em casas, ou celas, de isolamento, privados da sua rotina de espancar porque sim, abusar porque o dia correu mal, matar porque tropeçaram noutra qualquer frustração que o mau génio alimenta. Há, no entanto, outro número assustador: o de jovens que acham "normal" a existência de violência no namoro. Controlar, proibir, enciumar-se, querer violentamente são, para muitos – ou, mais exactamente e desgraçadamente, para muitas – sinónimos de amar muito e amar bem. 


Ainda sobre a violência extrema sobre o outro – que, de tão banal e normal, deixou de chocar fora da orgia persecutória das redes sociais –, soube-se que a directora do SEF admitiu que Ihor Homenyuk foi torturado, evidentemente, mas achou por bem manter-se em silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto lhe foi possível e não considera demitir-se. 

Os contornos deste assassínio continuam a provocar-me náuseas. Pela morte e tortura de um homem, gratuitamente, às mãos de uns cobardes nojentos e por ser evidente que só se pode ser tão levianamente criminoso no exercício de um cargo de poder quando se goza de uma imensa sensação de impunidade dentro da instituição a que se pertence. Há tantas pontas soltas nesta história de horror, tanta indecência, que se tornaria insuportável num país que se quer civilizado. Mas, não parece ser o caso. 


E, não há muitos dias, a SIC Notícias exibia uma reportagem sobre suspeitas de negligência num lar ilegal na zona de Palmela. Negligência é um brutal eufemismo para o que ali se viu e ouviu. Não sei bem se a SIC deveria ter mostrado aquelas imagens ou não. Há sempre uma dúvida, quando a situação é tão grave que roça o absurdo. Às vezes desejo que exista isso a que alguns chamam Inferno. O bíblico. E que seja realmente eterno.