domingo, 29 de novembro de 2020

Qualquer coisa sobre a (ir)racionalidade dos afectos

Há muito tempo (creio que desde que tenho consciência da minha finitude) que me decidi pela vontade de, quando morrer, ser cremada. A ideia do meu corpo desabitado fechado numa coisa a que se dá o nome de caixão, onde, depois, desceria às entranhas da terra, entre arremessos de flores, para aí apodrecer entre vermes, em repouso eterno, causa-me mais repulsa do que a certeza de que, um dia – lá longe, muito, muito longe, espero – a minha vida, como todas as outras vidas, chegará a seu termo. Como não acredito na reencarnação, não preciso de preservar nada mais para além da certeza de ter valido a pena. O tempo que por cá passar. Também não tenho nenhum desejo especial para o que sobrar de mim. Desde que não me lancem ao mar: prefiro continuar a admirá-lo de longe, se se der o caso não provado ainda de restar um leve vestígio de memória entre os átomos de que me faço.

Morrer anonimamente há-de ser uma bênção. Talvez mais do que viver anonimamente. Ouvir gente desconhecida falar dos nossos – mesmo que os nossos se tenham lançado por vontade própria nos braços mercenários do mundo, ou o mundo os tenha arrancado a ferros à mudez de uma existência livre de lendas em vida e em morte – é uma insolência. Mesmo quando esse falar se faz de admiração exaltada, incontida. Os tributos que se devem (devem?) aos que morrem publicamente, vertidos em elogios fúnebres que se multiplicam abruptamente em editoriais, artigos de opinião, entrevistas curtas, posts nas redes sociais e toda uma parafernália acrescida de revisitações das vidas que se apagam violentamente, deixam muitas vezes a impressão (injusta, talvez) de que só a morte é capaz de destapar as virtudes encobertas até aí. Há um certo pudor em falar mal dos mortos e talvez seja esse pudor a permitir o exagero da vénia.

Os últimos dias encheram-se de homenagens histéricas a Diego Maradona. Histéricas, não necessariamente no sentido detestável do termo (mas também). Eu – que não gosto especialmente do futebol jogado e abomino a veneração pornográfica que se oferece, quer ao espectáculo em si, quer aos seus protagonistas – posso perceber que haja quem lamente destemperadamente a morte de alguém que, pelo que me dizem, foi o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Mais do que um génio, um deus. E, quando se dedica algum tempo a admirar a Física em acção, na sua transmutação profana em golos e passes de bola arrancados às leis de Newton, é fácil deixarmo-nos enamorar pela magia dos equilíbrios escondidos nos misteriosos centros de gravidade. De que Maradona saberia muito pouco, aliás. Da parte teórica e aborrecida da coisa, entenda-se. É como a geometria por detrás de uma bela partida de bilhar, com a diferença de que ninguém enlouquece pelo melhor jogador disso do mundo. O futebol tem um lugar especial e cativo no delírio (anti-)desportivo colectivo, talvez por permitir que durante 90 minutos, pelo menos, os adeptos se portem com a indecência que o desporto tolera, com a complacência irresponsável de muitos. Para alimentar a ilusão – e o arrebatamento –, a arte não só não está ao alcance de todos, mesmo que se perceba muito da Ciência que comanda o jogo, como é (quase) possível acreditar que, por um breve momento, é a própria Ciência que se verga a esse génio endeusado. Que eu não honro, no que toca a "futebóis", não é ao que venho. Aflige-me sempre o culto de massas. Hiperbólico em quase tudo. A questão é outra. O Homem é bastante imperfeito (e aquele homem, em particular) e há umas imperfeições mais desculpáveis do que outras. Até onde pode chegar a admiração por alguém que, em algum momento da sua vida, ou numa vida inteira desses maus momentos, se portou como um imoral? Várias vozes se levantaram contra o exemplo de Maradona. Como assim, venerar um homem cheio de tantos pecados, mesmo que esse homem seja “el pibe de oro”, amado até pelo Papa Francisco (sendo que o Papa tem, pelo menos, a desculpa dos santos, que mandam amar o próximo como a si mesmo)? Um artigo publicado no The Guardian no passado dia 27 falava da facilidade com que se esqueceu a violência contra as mulheres, nas homenagens a Maradona. Como já antes se a havia esquecido, nos tributos a Sean Connery, que, ao contrário do génio da bola, admirei bastante em vida. Como continuar a ouvir as músicas de Michael Jackson depois de saber das denúncias dos abusos sobre crianças; depois de ver Leaving Neverland? Como ler Pablo Neruda, mesmo morto, depois de conhecido o relato, na primeira pessoa, da violação de uma mulher, no tempo da colónia britânica do Ceilão (e terá sido "apenas" essa)? Como é possível erguermos heróis sobre os escombros dos seus crimes?  Quantos anos precisam de passar para nos ser permitido perdoá-los? Pois, não sei bem. Não sei nada. Continuo a ler Neruda e a ouvir Michael Jackson, entre outros ultrajes; de que não constam, de facto, a devoção ao futebol, mas isso não me torna menos infame. Não há como branquear o lodo dos monstros que amamos e não partilho da tentativa de racionalização que alguns ensaiam sobre quem podemos ou não podemos homenagear, como se uma vítima fosse mais ou menos vítima de acordo com o estatuto do abusador. Nem acato bem a ideia de que o que é importante e é preciso é separar a magnificência da obra da miséria do autor: isso é só o que nos dizemos para nos redimirmos. Acho apenas que devemos aceitar a nossa parte da culpa. E que até os mais puros têm o seu lado bafiento, tenebroso. Mesmo quando nos querem convencer do contrário.


E desviei-me de quase tudo o que queria dizer quando comecei isto. Vinha principalmente falar de afectos, desses, capazes de nos desordenar a razão, se nos faltarem, e acabei na irracionalidade das paixões por que nos perdemos. Não é bem a mesma coisa. Tudo porque tropecei na notícia sobre o novo livro de António Damásio, enquanto procurava as minhas fotografias do belíssimo cemitério Mirogoj. Mais ou menos. Percebo que faço muito pouco sentido.