"Na
dieta de cinco minutos diários de Twitter e LinkedIn, tive a sorte de apanhar o
post de Carlos Diniz, professor na Universidade Nova SBE, em Carcavelos,
onde conta esta história:
“Ontem
à tarde, ao entrar na Nova School of Business and Economics vi isto. É
impossível ficar indiferente.”
“Isto”
é um vídeo de um rapaz a tocar no piano de cauda que há no átrio da
universidade uma música que faz lembrar The Sacrifice, de Michael Nyman.
Lembra-se da banda sonora do filme O Piano, de Jane Campion?
O
professor ouve, fica impressionado e vai falar com o rapaz. Numa escola onde
60% dos alunos são estrangeiros, dirige-se-lhe em inglês:
— May I film you playing?
— Yes…
— What’s your name?
— Hugo.
—
És português?
—
Sim.
—
És aluno aqui da Nova SBE?
—
Não.
—
Como é que vieste aqui parar?
—
Piano público.
—
Que idade tens? Estudas?
—
Tenho 21… gostava de acabar o 9.º ano… Gostava de seguir e estudar electrónica.
Mas não dá… vidas…
—
Então e o piano? A música!? Isto que estás a fazer é incrível… Estás a tocar
sem pauta… só de ouvido?
—
O que eu queria era estudar… Piano aprendo sozinho em pianos públicos. Tenho
mesmo vontade de tocar.
—
Como é que descobriste este piano?
—
Fui copeiro no restaurante aqui em cima… agora estou à procura de emprego.
No
fim do post, o professor faz mais duas coisas. Partilha a morada de Hugo
Lopes, o copeiro/pianista, no Instagram, e diz que, “mais tarde, soube que a
ideia do piano público foi do Pedro Santa Clara”, que “houve quem tentasse que
fosse vedado e trancado”, mas que “não deixaram!”.
Fui
à conta de Hugo Lopes no Instagram (hugo_cloud.g) e lá
está ele a fazer o mesmo que fez no átrio da Nova SBE. A tocar em pianos
públicos. Há um Yamaha de cauda onde, parece-me, ele tocará com frequência. O
piano está dentro de uma loja de roupa, parece ambiente de centro comercial.
Vêem-se as roupas nos cabides e os cartazes com as promoções.
Num vídeo, Hugo Lopes toca Dramatic Piano
Music, Snowball Effect que — vi depois na Internet — é um tutorial popular.
Noutro, na mesma loja, toca Una Mattina, que Ludovico Einaudi escreveu
para o filme Intouchables. Há tutoriais dessa música no YouTube, como há
tutoriais para aprender a tocar Nyman que, quando eu era adolescente, todos no
meu liceu conheciam, independentemente do tipo de música de que gostavam (eu
nunca gostei desse minimalismo delicodoce, mas isso é irrelevante).
Escrevi
a Hugo Lopes, mas ele deve estar a trabalhar na copa de um bar e ainda não me
respondeu. Queria saber se alguma vez teve aulas de piano.
Como
não sei nada de música, gravei no telemóvel e mandei o vídeo a dois amigos
pianistas que, como são artistas, não estão no LinkedIn. O primeiro diz que
sentiu que “aquilo não tem escola, é dele, é visceral, vem de dentro” e que a
música “contínua, circular, que parece que não vai acabar, é como se ele
dissesse: ‘Só estou aqui a tocar porque preciso mesmo de tocar’”.
“Ele
é bom”, diz o primeiro pianista. “Se nunca teve uma aula de piano, ele é
extraordinário.”
O
outro pianista foi ainda mais veemente. A medo, disse-me que veria o vídeo, mas
que “as pessoas muitas vezes dizem: ‘É incrível’, ‘isto e aquilo’ e eu vou
ouvir e é muito banal ou mau. Mas manda que eu vejo”. Passado um bocado, liga e
diz: “Olha, foi uma surpresa. Ele é impressionantemente musical”, “tem imenso
talento” e “até alguma elaboração técnica”.
Resolvida
a primeira parte: o miúdo que trabalha na copa do bar da Nova SBE é bom
pianista.
Agora
a segunda: impressionou-me a frase “tenho mesmo vontade de tocar”. Como Hugo
Lopes não tem dinheiro para um piano, sai de casa e vai tocar para pianos
públicos.
Vai
tocar para a rua porque tem de tocar. Há o talento e há o “talento da
determinação”. Hugo Lopes tem os dois.
Sim,
esta história serve para iluminar Hugo Lopes e ver se alguém se inspira e
inventa uma forma de o pôr numa escola e a ter aulas de piano e de música.
Mas
também serve para outra coisa: imaginem as nossas cidades com pianos públicos
como o da Nova SBE.
Há
uns anos, em Praga, fiquei a ouvir um homem tocar num piano de parede que
estava encostado na lateral de um museu, cá fora, na rua. Eram umas sete ou
oito da noite, as pessos andavam de um lado para o outro, o homem estava de sobretudo,
tinha uma mochila aos pés, percebia-se que tinha saído do trabalho e ia para
casa. Parou, tocou 15 minutos e foi-se embora.
Vi
o mesmo em Berlim. Em Viana, no Verão, há pianos de cauda na Praça dos Direitos
Humanos e no bairro dos museus, uma ideia do projecto Open Piano, e desde 2018
que o festival Wir Sind Wien (Nós Somos Viena) leva um piano de bairro em
bairro no Verão.
Em
muitas cidades de muitos países, vêem-se pianos em lugares públicos com o
letreiro “Community piano — stay and play” ou simplesmente “Play me —
I am yours”.
Em
centros comerciais, lojas de roupa, estações de comboio, aeroportos, centros
culturais, hotéis, universidades e na rua.
Já
sei — não se pode confiar nas pessoas, eles vão estragar o piano em dois
tempos, isto é irrealista, bom nos países ricos, impossível em Portugal. Certo.
Mas
imaginem um piano na Rua de Santos-o-Velho, em Lisboa, em frente à embaixada de
França. Está lá sempre um polícia. Ou um piano no Largo Conde Pombeiro, onde
está a embaixada de Itália. Ou na Rua António Maria Cardoso, onde está o
Consulado-Geral do Brasil. Ou na Avenida de França, onde está o consulado-geral
do Brasil no Porto. Ou na Rua Alexandre Herculano, onde está o consulado de
Angola no Porto. Ou na Rua Portas Serra, onde está o Consulado de Cabo Verde em
Portimão. Ou na Avenida Ministro Duarte Pacheco, onde está o consulado de
Espanha em Vila Real Santo António.
E
por aí adiante. Podem acrescentar-se as mil instituições, empresas públicas ou
bancos privados, que têm protecção policial 24h por dia.
Fica
resolvido o risco de vandalismo.
A
seguir, dirão: é muito caro, não há dinheiro para pianos, que luxo asiático, o
país está em crise. Calma. Isto não é fazer um elevador no pé da ponte 25 de
Abril. Um piano acústico vertical da Yamaha — não é um Steinway, mas é
consensualmente bom — custa quatro mil euros se for usado, sete ou oito mil se
for novo.
A
Câmara Municipal de Lisboa não tem oito mil euros para oferecer um ou dois
pianos à cidade? O mesmo para a Câmara do Porto ou a Câmara de Vila Real Santo
António. É possível comprar um bom piano de cauda por 20 mil euros. São mais
caros e pouco práticos para pôr na rua. Mas são óptimos para pôr nas estações
de comboio, nos aeroportos e nos centros comerciais. A beleza que seria o
futuro Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian reabrir com um piano
público. Já imaginou?
Os
leitores sérios, que lêem todos os dias, podem ir a uma biblioteca pública
levantar um livro novo sempre que querem. Devolvem e requisitam livros
sucessivamente. Não gastam dinheiro, mas não deixam de ler por não terem
dinheiro ou por não terem estantes suficientes ou por, simplesmente, não
quererem comprar livros todas as semanas. Porque não usar o mesmo princípio
para quem gosta de tocar piano e não tem dinheiro ou casa para ter um?
Um
piano público é mais do que acesso à música. É educação pela arte, é salvar
crianças da pobreza pela música, é elevador social através da educação e da
cultura, é qualidade das nossas cidades. Há jardins públicos e há bibliotecas
públicas — bens de beleza e cultura. Porque
não também pianos públicos?
Um
piano por escola seria inteligente e uma maravilha, mas é uma utopia. Mesmo um
piano por agrupamento escolar custaria quatro milhões de euros. Há 800 em
Portugal. É dinheiro.
Podemos
começar por 20 pianos públicos, de norte a sul do país. Entre público e
privado, há com certeza 100 mil euros em Portugal.
Para
Hugo Lopes ter aulas de piano, claro, é preciso bem menos."
Bárbara Reis, PÚBLICO