Não sinto qualquer simpatia, nem empatia, por quem, vivendo em democracia e em liberdade (tanto quanto as duas sejam possíveis nos seus incontáveis desmandos – diria “incontornáveis”, mas estou cada vez menos segura disso), se manifesta com intencional violência, destruindo, incendiando, mutilando, como se vê recorrentemente nas ruas de Paris e arredores a propósito de tudo e de nada. Mas posso sentir repúdio idêntico por quem – e aqui me incluo, por absurdo que pareça –, nessa mesma liberdade democrática, tolera ao poder político eleito nas urnas o que temos vindo a tolerar a este poder político nos últimos tempos.
O caso TAP é escabroso, mas é o retrato clarinho clarinho do abuso, do menosprezo e da leviandade com que o Governo de António Costa, ou o PS de António Costa, ou talvez as duas coisas juntas e outras antes destas, tratam a cousa pública e, naturalmente, os dinheiros públicos; no que toca a dinheiros públicos há uma ligeireza criminosa cuja responsabilidade nunca se apura, dos trezentos mil euros do pavilhão do senhor Moutinho aos um ponto trinta e cinco milhões de euros daquele outro senhor, o Maximilian Otto Urbahn – quinhentos mil euros para Alexandra Reis mal chegam para os sapatos Louboutin que tantos dentes fizeram ranger. E veremos em quanto será o Estado obrigado a indemnizar Christine Ourmières-Widener; depois dos três e não sei quê mil milhões de euros que doámos colectiva e serenamente para salvar qualquer coisa que era estratégica e fundamental para o país até deixar de o ser exactamente com a mesma veemência.
O Presidente da República não se atreve a dissolver o Parlamento porque não confia em Montenegro nem um bocadinho, e não é apenas pela inevitável aliança que o PDS há-de forjar com o Chega: sou capaz de apostar que nem o próprio Montenegro se sente à altura do colossal desafio, governar um país ingovernável. "Bom dia, sei que isto é um incómodo para ti mas não podemos mesmo perder o apoio político do Presidente da República. Ele tem-nos apoiado no que diz respeito à TAP, mas se o humor dele mudar, tudo se perde. Uma frase dele contra a TAP ou o Governo e ele empurra o resto do país contra nós. Não estou a exagerar. Ele é o nosso principal aliado político, mas pode transformar-se no nosso pior pesadelo". Espantoso. E não há um abalo.
Pasmo com a postura quase cândida – mas os ingénuos somos nós – daqueles
que ainda são capazes de vir a público defender, sem gaguejar, a idoneidade destas
personagens de tragicomédia, como Pedro Delgado Alves no seu frente-a-frente semanal
com Miguel Morgado, e Deus, se existir, é testemunha do que me irrita a inflamação
discursiva de Miguel Morgado.
Não imagino como será possível ao Presidente da República – se não ao primeiro-ministro antes dele – aguentar este desgoverno até ao fim da legislatura. É verdade, só de imaginar ver o Chega integrar um próximo Governo da República Portuguesa dá-me náuseas. Desprezo gente capaz de defender, de promover, a perseguição de outra gente apenas pela cor, pelo credo, pelo berço, pelo género, pelos actos criminosos de alguns dos seus, o que não é o mesmo que aceitar o exacto oposto, dos géneros socialmente construídos aos leitores de sensibilidade, mas, de algum modo, chegámos aqui: se não é preto é absolutamente, visceralmente, branco; tentar encontrar pontes de entendimento é traição, amamo-nos ou odiamo-nos, e nunca foi tão fácil, tão simples, pese embora a garantia de muitos de que o mundo sempre foi assim de medonho, provam-no a História, os clássicos da literatura e os sketches dos Monty Python, nada deste desvario é de agora, e a internet, onde as mesmíssimas velhas injúrias viajam à velocidade da luz, tem muito pouco a ver com a tragédia. Educação. Seremos salvos pela Educação. Sou Mulher, sou Mãe, e, como se não bastasse, ganho a vida a (tentar) ensinar – nunca poderia desmerecer a Educação. Simplesmente, encontro-a demasiado lenta para os dias que correm, bela, mas perigosamente lenta, e os dias correm lestos e odiosos.