quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Mais que miseráveis

Tem-me faltado a vontade de passar por cá. Deixei a meio uma data de resmungos endiabrados, uns mais injustos do que outros. De cada vez que pensava ter acabado, outro espanto qualquer inflamava a minha fúria e achei melhor deixar tudo em suspenso, embora lhes tivesse dado título e tudo: “Momentos eh pá, calem-se!”, que era o que me apetecia dizer, se isso valesse de alguma coisa.

Começava na historieta idiota do vencimento das crónicas de Eduardo Lourenço. Se fosse necessária uma metáfora sobre a ligeireza mole com que se produzem especialistas em série, sobre tudo e nada e mais alguma coisa, para directos sobre directos sobre directos reproduzidos ad nauseam sobre um mesmo acontecimento, seria essa; um verdadeiro espanto. Depois, foi aquele magnífico momento queridoencolhe-te mais um bocadinho até desapareceres e levares contigo o que sobra de um outrora respeitado partido político, esse que nem sequer sei a que pertences porque te vejo trocado. Por um segundo, fiquei na dúvida se o “trocado” teria que ver com a ameaça de desfalecimento provocado pela fraqueza do corpo e da alma, ou se era mesmo trocado, trocado, isto é, trocado o Chicão a prazo por um líder partidário a sério. A sério, foi demasiado penoso. Nunca é boa política metermo-nos com cretinos se não soubermos estar à altura do desaforo. Mas não sei se pode chamar cretino ao chef. Ou é chefe? Adiante.

A seguir (ou antes, já não recordo cronologia exacta) foi a Ana Gomes e a rábula das vacinas, farmacêuticas, reservas, empresas, amigos e afins. Já não é a primeira vez que o penso, digo e escrevo, como se também isso valesse de muito: gente com responsabilidade política – pelo menos essa – devia ser proibida de ter contas em redes sociais. Principalmente no Twitter. Aquilo deve ter lá qualquer coisa que deixa os utilizadores em modo embaciado, ou assim. Há quem diga que o problema não é o meio, virtual ou não virtual; um imbecil é um imbecil é um imbecil, coisa que Ana Gomes não é, e a virtualidade da outra coisa não tem nada que ver com a (des)virtualidade do carácter. Pois, talvez seja…Também não acho que seja a ocasião a fazer o ladrão, mas é possível que o ladrão nunca chegasse a sair do esgoto se a ocasião não se lhe apresentasse descaradamente a cada tremeluzir de consciência.

Depois, foi outro Rodrigues dos Santos a levantar poeira. Não vi a entrevista. Contaram-me, e fui espreitar o pedaço da polémica. O problema deste Rodrigues dos Santos, o José, já não é não haver livros que ele não goste de ler e, portanto, tenha decidido escrever uns de que goste mais. É ter-se intoxicado de si mesmo, de vaidade em causa e cousa própria. Acontece aos melhores e ele acha-se dois melhores: um no jornalismo e outro na escrita. Dois amores que amalgamou de forma brilhante numa imbatível fórmula de sucesso, mesmo que já não haja grande segredo quanto aos ingredientes da dita. É como a Coca-Cola: 90% de água ou mais e a ameaça de êxtase sobre as papilas gustativas de outros 90% da população mundial, ou lá o que é, que não fui confirmar. E não pertenço a essa estatística, seja ela qual for, porque abomino o sabor daquilo, em qualquer circunstância e/ou ocasião, embora não possa dizer exactamente o mesmo dos livros de José Rodrigues dos Santos: li alguns e gostei. Sacrilégio. Redimo-me desprezando-o, de algum tempo a esta parte, como jornalista. Também há quem me diga que o contrário seria mais inteligente. Mas a maioria desses bebe coca-cola. Além disso, quantos escritores – péssimos que sejam – são capazes de escrever àquele ritmo? Claro que há uma certa batota: misturar factos com ficção fingindo, com ou sem intenção, um conhecimento (sobre alguns temas) que, na verdade, é bastante mais modesto, o que pode baralhar os mais inocentes. Isto tudo para dizer que, sim, é, no mínimo, idiota conseguir olhar humanitariamente para aquele “e porque não com gás?”, mas, talvez o objectivo do baile tenha sido, mais uma vez, cumprido.

E, no meio de tanto ruído, ouviu-se, finalmente, o grito de horror, entre o nojo, a indecência, e a vergonha. Os contornos do dantesco episódio que culminou com o bárbaro assassínio de Ihor Homeniuk às mãos de uns rufias sebentos e cobardes, em representação do Estado Português – de todos nós, portanto – deixa uma mancha difícil de carregar. Quanto mais se atenta nos detalhes macabros, mais insuportável é olhar para Marcelo, Costa e Cabrita, ouvi-los nas suas explicações patéticas, retorcidas, totalmente desprovidas de decência. Uns fantoches. Uns fantoches, todos, da esquerda à direita. Nunca tive tanto desprezo pela nossa classe política. O silêncio ensurdecedor, cúmplice, pelo menos, com a indiferença que mereceu a descoberta da tragédia, deu, agora, lugar a um miserável discurso que tresanda à mediocridade engalanada desta classe de “servidores públicos” que pouco servem, afinal, apesar da empoeirada pompa e circunstância que gostam de esbanjar. E, Eduardo Cabrita, mesmo tresandando a podre, é bem capaz de se aguentar no cesto do Governo, ao colo do amigo Costa. Há quem não se incomode em servir de estandarte mesmo das causas mais abjectas. Deve ser o caso. O outro, é a terrível desconfiança de que o terror a que Ihor foi sujeito não seja um acto isolado, mas uma prática tão comum quanto ilegal, hedionda, cujo desfecho, mais porrada menos porrada, acabaria como acabou. É quase inevitável, quando um ou mais rufias sem escrúpulos gozam do poder de intimidar pela força bruta aliado à sensação de impunidade que vai crescendo e escalando até ser demasiado tarde para voltar atrás.

Agora, é um ror de gente a apontar dedos – porque eu disse e vós não dissestes, porque eu escrevi e vós não escrevestes, porque eu me indignei a tempo e vós indignastes-vos a reboque de modas e redes e obediências saloiasE, claro, a comparação inevitável com o alvoroço que provocou a morte de Floyd nos EUA, como se – folclores à parte e da parte dos histéricos habituais, que fique claro – não fosse entendível (sei bem que a palavra é horrível, neste contexto) ainda que não desculpável, que uma morte a que se assiste quase em directo, pelo mundo inteiro, pudesse causar mais comoção. No imediato. Pelo poder impactante da imagem. Mesmo que a violência dessa morte não tenha comparação com a violência da tortura e morte de Ihor Homeniuk. Supondo que a morte seja comparável, dentro das circunstâncias arrepiantes em que ocorreram ambas. Com excepção das jornalistas que não largaram este crime medonho, não há muito mais quem possa encher-se de brios (como se fosse essa a questão) e atirar pedras.