Começava na historieta idiota do vencimento das
crónicas de Eduardo Lourenço. Se fosse necessária uma metáfora sobre a
ligeireza mole com que se produzem especialistas em série, sobre tudo e nada e
mais alguma coisa, para directos sobre directos sobre directos
reproduzidos ad nauseam sobre um mesmo acontecimento, seria
essa; um verdadeiro espanto. Depois, foi aquele magnífico momento querido, encolhe-te
mais um bocadinho até desapareceres e levares contigo o que sobra de um outrora
respeitado partido político, esse que nem sequer sei a que pertences porque te
vejo trocado. Por um segundo, fiquei na dúvida se o “trocado” teria que ver
com a ameaça de desfalecimento provocado pela fraqueza do corpo e da alma, ou
se era mesmo trocado, trocado, isto é, trocado o Chicão a prazo por um líder
partidário a sério. A sério, foi demasiado penoso. Nunca é boa política
metermo-nos com cretinos se não soubermos estar à altura do desaforo. Mas não
sei se pode chamar cretino ao chef. Ou é chefe? Adiante.
A seguir (ou antes, já não recordo
cronologia exacta) foi a Ana Gomes e a rábula das vacinas, farmacêuticas,
reservas, empresas, amigos e afins. Já não é a primeira vez que o penso, digo e
escrevo, como se também isso valesse de muito: gente com responsabilidade
política – pelo menos essa – devia ser proibida de ter contas em redes sociais.
Principalmente no Twitter. Aquilo deve ter lá qualquer coisa que
deixa os utilizadores em modo embaciado, ou assim. Há quem diga que o problema
não é o meio, virtual ou não virtual; um imbecil é um imbecil é um imbecil, coisa que Ana Gomes não é, e a virtualidade da outra coisa não tem nada que
ver com a (des)virtualidade do carácter. Pois, talvez seja…Também não acho que
seja a ocasião a fazer o ladrão, mas é possível que o ladrão nunca chegasse a
sair do esgoto se a ocasião não se lhe apresentasse descaradamente a cada
tremeluzir de consciência.
Depois, foi outro Rodrigues dos Santos a
levantar poeira. Não vi a entrevista. Contaram-me, e fui espreitar o pedaço da
polémica. O problema deste Rodrigues dos Santos, o José, já não é não haver
livros que ele não goste de ler e, portanto, tenha decidido escrever uns de que goste mais. É
ter-se intoxicado de si mesmo, de vaidade em causa e cousa própria. Acontece
aos melhores e ele acha-se dois melhores: um no jornalismo e
outro na escrita. Dois amores que amalgamou de forma brilhante numa imbatível
fórmula de sucesso, mesmo que já não haja grande segredo quanto aos
ingredientes da dita. É como a Coca-Cola: 90% de água ou mais e a ameaça de
êxtase sobre as papilas gustativas de outros 90% da população mundial, ou lá o
que é, que não fui confirmar. E não pertenço a essa estatística, seja ela qual
for, porque abomino o sabor daquilo, em qualquer circunstância e/ou ocasião,
embora não possa dizer exactamente o mesmo dos livros de José Rodrigues dos
Santos: li alguns e gostei. Sacrilégio. Redimo-me desprezando-o, de algum tempo
a esta parte, como jornalista. Também há quem me diga que o contrário seria
mais inteligente. Mas a maioria desses bebe coca-cola. Além disso, quantos
escritores – péssimos que sejam – são capazes de escrever àquele ritmo? Claro
que há uma certa batota: misturar factos com ficção fingindo, com ou sem
intenção, um conhecimento (sobre alguns temas) que, na verdade, é bastante mais
modesto, o que pode baralhar os mais inocentes. Isto tudo para dizer que, sim,
é, no mínimo, idiota conseguir olhar humanitariamente para
aquele “e porque não com gás?”, mas, talvez o objectivo do baile tenha sido,
mais uma vez, cumprido.
E, no meio de tanto ruído, ouviu-se,
finalmente, o grito de horror, entre o nojo, a indecência, e a vergonha. Os
contornos do dantesco episódio que culminou com o bárbaro assassínio de Ihor Homeniuk às
mãos de uns rufias sebentos e cobardes, em representação do Estado
Português – de todos nós, portanto – deixa uma mancha difícil de
carregar. Quanto mais se atenta nos detalhes macabros, mais insuportável é
olhar para Marcelo, Costa e Cabrita, ouvi-los nas suas explicações patéticas,
retorcidas, totalmente desprovidas de decência. Uns fantoches. Uns fantoches,
todos, da esquerda à direita. Nunca tive tanto desprezo pela nossa classe
política. O silêncio ensurdecedor, cúmplice, pelo menos, com a indiferença que
mereceu a descoberta da tragédia, deu, agora, lugar a um miserável discurso que
tresanda à mediocridade engalanada desta classe de “servidores públicos” que
pouco servem, afinal, apesar da empoeirada pompa e circunstância que gostam de
esbanjar. E, Eduardo Cabrita, mesmo tresandando a podre, é bem capaz de se aguentar no cesto
do Governo, ao colo do amigo Costa. Há quem não se incomode em servir de
estandarte mesmo das causas mais abjectas. Deve ser o caso. O outro, é a terrível
desconfiança de que o terror a que Ihor foi sujeito não seja um acto isolado,
mas uma prática tão comum quanto ilegal, hedionda, cujo desfecho, mais porrada menos
porrada, acabaria como acabou. É quase inevitável, quando um ou mais rufias sem
escrúpulos gozam do poder de intimidar pela força bruta aliado à sensação de
impunidade que vai crescendo e escalando até ser demasiado tarde para voltar atrás.
Agora, é um ror de gente a apontar dedos – porque eu disse e vós não dissestes, porque eu escrevi e vós não escrevestes, porque eu me indignei a tempo e vós indignastes-vos a reboque de modas e redes e obediências saloias. E, claro, a comparação inevitável com o alvoroço que provocou a morte de Floyd nos EUA, como se – folclores à parte e da parte dos histéricos habituais, que fique claro – não fosse entendível (sei bem que a palavra é horrível, neste contexto) ainda que não desculpável, que uma morte a que se assiste quase em directo, pelo mundo inteiro, pudesse causar mais comoção. No imediato. Pelo poder impactante da imagem. Mesmo que a violência dessa morte não tenha comparação com a violência da tortura e morte de Ihor Homeniuk. Supondo que a morte seja comparável, dentro das circunstâncias arrepiantes em que ocorreram ambas. Com excepção das jornalistas que não largaram este crime medonho, não há muito mais quem possa encher-se de brios (como se fosse essa a questão) e atirar pedras.