quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Salman Rushdie

O primeiro amuo sério – a sério! – que tive com a minha irmã foi a propósito d’Os Versículos Satânicos: eu tinha acabado de ler o livro, fascinava-me (talvez não seja o melhor verbo) tudo aquilo de uma forma que eu não sabia ainda dizer, inclusive a fatwa – era uma miúda na altura, parecia-me coisa acabada de sair das páginas das mil e uma noites.

Tanto contei que (aparentemente) encantei, e uma amiga da minha irmã pediu-lhe que mo pedisse. Emprestei-o e nunca mais o vi; penso que à amiga também. Não sei se foi quando decidi não voltar a emprestar os meus livros a ninguém, mas é verdade, não empresto os meus livros a ninguém: se for alguém que mereça, ofereço um novo exemplar. Por coincidência, precisamente, tinha voltado a comprar para mim um novo exemplar de Os Versículos Satânicos no início deste ano. Não queria acreditar quando soube do atentado contra Salman Rushdie; não por duvidar dos fanáticos, nunca duvidar dos fanáticos, mas por tudo o resto, a idade do rapaz, a facilidade com que levou a cabo o ataque e, sobretudo, o tempo que separa aquela extraordinária condenação à morte desta quase execução. Só não falo dos urros de embrutecido êxtase dos que celebraram o quase assassínio, porque tentar racionalizar o absurdo talvez seja mais absurdo ainda.

Salman Rushdie vem recuperando do bárbaro ataque, e ainda bem. Quase tive um acesso de ciúme e soberba, como Taika Waititi com a febre recente de Running Up That Hill (também gosto de Running Up That Hill, por sinal) e os novos estranhos fãs de Kate Bush – mas quem são estes fedelhos, que descobriram Rushdie agora e correram a comprar-lhe O livro, a carpir as suas dores, sem fazerem ideia da obra (ou do homem, mas sou quase sempre mais pela obra)? Para me redimir, recomecei os versículos, deixei Quichotte na linha de sucessão e pus na lista de compras Os Filhos da Meia-Noite. É imperdoável que nunca tenha lido Os Filhos da Meia-Noite. No fim de contas, também eu sou uma fedelha.

De resto, o jejum prolongado de actualidade requer, como o outro, moderação na hora de ser quebrado. Ainda convalesço.