Parte da direita portuguesa que renega com enfático nojo a corrupção de Lula da Silva e, consequentemente, a sua reeleição no Brasil, convive bem com a escolha do ex-presidiário Isaltino Morais para a presidência da câmara de Oeiras. É só uma Câmara Municipal, eu sei, não é o mesmo que o (des)governo de um país inteiro. Ainda assim, já existe um precedente, não é preciso fantasiar com o regresso de José Sócrates, que, na verdade, ainda não foi condenado, provavelmente nunca será julgado, e, portanto, até "prova em contrário", é inocente, mesmo que ninguém em pleno uso das suas faculdades mentais (se calhar, basta um uso assim-assim) acredite na extraordinária história do amigo e da mãe e do cofre. Essa é outra parte interessante da coisa: os mesmos que não duvidam da patifaria de Sócrates, também não duvidam da seriedade do "dinheiro vivo" com que a família Bolsonaro comprou umas dezenas de imóveis. Eu duvido da lisura de qualquer um daqueles quatro, mas há uns patifes mais (ou menos) insuportáveis do que outros e, aparentemente, é entre esses que andamos condenados a escolher.
Imagino que nunca chegaremos ao dilema Sócrates ou Ventura. E se não tenho dúvidas quanto ao primeiro, não sei bem se o segundo merece tão ameaçador estatuto: comparado com os seus congéneres, parece um menino do coro. Nada disso, porém, me livra da presente sensação de uma espécie de orfandade de representação política, e não devo ser a única. Este fosso inconsertável entre "a direita" e "a esquerda" não me move e não me serve, mas seria incapaz de me sentar à mesa com um tipo como o ainda presidente do Brasil.
Os mais de cinquenta milhões de votos que Jair Bolsonaro conseguiu ainda, como os mais de setenta milhões de votos em Donald Trump nas últimas eleições presidenciais nos EUA, devem servir, pelo menos, para moderar a aversão dos livre-pensadores àquela ideia de rebanho: rebanho por rebanho, parece haver dois, a originalidade já não é o que era; e o mesmo para o “pensamento único”, ou a “superioridade moral”, embora, devo confessar, superioridade moral seja pecado que me assalta amiúde quando ouço os argumentos de alguns dos mais acérrimos defensores dos bolsonaros e dos trumps: não são contra a "ideologia do género" – eu também sou –, a favor do controlo da emigração – eu também posso ser –, pró-família-tradicional – não sei se sou, não sei se sei, mas sei que não há nada de errado em sentirmo-nos identificados com –, ou anti-aborto: são assumida e ferozmente contra todos os que ousem beliscar o seu mundo, o seu modo de vida. "Bolsonaristas" e "Trumpistas" continuam a berrar, sem conseguirem apresentar qualquer prova, contra a fraude das eleições presidenciais, alguns por convicção, talvez, mas muitos, sem dúvida, por oportunismo: defendem a liberdade e a democracia na medida exacta da sua vontade.
Pode acusar-se do mesmo a esquerda-radical. O mal-denominado movimento woke veio impor um sem-número de regras, da linguagem ao comportamento, que pretendem salvar a Humanidade das esquinas afiadas da existência: viver deve ser livre da ofensa e da contrariedade, uma infantilização concertada para salvar o mundo dos pecados dos homens, mas sem o calvário e a Paixão de Cristo, sem crucificação. A felicidade ao alcance de um decreto. Evidentemente, não está a resultar.