quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Do Racismo


À pergunta se Portugal é um país racista, a minha primeira resposta é, instantaneamente, não. Portugal não é um País racista. Explico-me. Não tenho a percepção de que, enquanto país, tratemos de forma diferente – para pior, entenda-se – um negro, um brasileiro, um africano (é essencialmente deles que se fala; se forem pobres, claro) por essa condição exclusivamente. O que não é o mesmo que afirmar – ou sentir – que não haja pessoas racistas em Portugal. Como há machistas nojentos, e um sem número de escumalhas várias, para todos os (des)gostos e (maus) feitios. Porque o que não há, realmente, é uma sociedade perfeita, isenta de pecados, em lado nenhum do mundo. Há sociedades que se pretendem justas, que é coisa bastante diferente.

É possível que esteja totalmente errada. Por ignorância imensa, por falta de sensibilidade, por ser ingénua, ou, simplesmente, imbecil. Os que asseguram que Portugal é um país racista, sem dúvida, argumentam com a existência de um número residual (às vezes, nulo) de negros, por exemplo, entre os jornalistas, os deputados, os principais rostos de televisão, na hierarquia das forças de segurança, e em tantas outras áreas de relevo para o bom funcionamento das sociedades democráticas, as tais que se querem condignas. Se não por racismo, porquê, então, essa inegável evidência? Não há número suficiente de negros – portugueses ou não – para que a sua presença se faça sentir fora dos empregos que designamos por pouco qualificados?
O racismo, porém, não está apenas em tratar mal o outro pela sua diferença: está, também, em ignorá-lo; ou tratá-lo com a benevolência que se reserva aos incapazes, seja qual for a incapacidade com que o vemos. Desse ponto de vista – de importância enorme, diga-se – talvez a conclusão inevitável seja a de que somos, de facto, um país racista.

Vem isto a propósito de duas notícias recentes. O racismo está na ordem de todos os dias, nem sempre com o decoro que merece.

Uma delas já fez correr imensa tinta: a morte de Giovani Rodrigues, o estudante cabo-verdiano, barbaramente agredido por um grupo de selvagens como só os cobardes mais imundos o podem ser. 
Os rebanhos que povoam e pululam pelas redes sociais foram céleres e implacáveis a classificar o ataque como um crime de ódio porque sim, sem saberem nada sobre o assunto, abrindo caminho para todo o tipo de teorias conspirativas, montando um espectáculo asqueroso à volta da morte do jovem.

A outra, li-a há pouco. Uma mulher acusa um agente da PSP de a ter agredido brutalmente na sequência de uma altercação com um motorista de autocarro da agência Vimeca; na origem, o facto de a filha de oito anos não estar na posse do necessário passe para prosseguir viagem. Na fotografia, Cláudia Simões aparece com a cara horrivelmente deformada, os olhos e os lábios inchados, sangue, feridas, o nariz esmurrado, uma imagem perturbadora. 
Cláudia é uma mulher negra e diz-se vítima de racismo por parte, quer do agente policial, quer do motorista do autocarro. A PSP sustenta que Cláudia agrediu o agente Carlos Canha (mordendo-o), constituíram-na arguida, e afirma-se que Carlos Canha utilizou a força estritamente necessária para proceder à algemagem da mulher.

A descrição que Cláudia faz dos acontecimentos e da agressão a que foi sujeita é, no mínimo, assustadora. Mais uma vez, não sabemos exactamente o que terá acontecido. Mas é difícil entender que a força estritamente necessária para um polícia treinado manietar uma mulher normal tenha sido capaz de desfigurá-la, mesmo que esta o tenha mordido – Cláudia confirma-o: mordeu o agente porque ele estaria a sufocá-la. 
Além disso, o vídeo que circula nas redes sociais mostra, claramente, a desproporção de forças entre um e outro. Não sei é assim que se faz, mas não parece. Não se trata de uma perigosíssima criminosa, mesmo que tenha havido insultos, empurrões ou mordidelas.
Também não sei se foi ou não foi racismo o que motivou a agressão de que Cláudia foi vítima. Mas, seguramente, não foi o estrito cumprimento da lei e do dever. Se fosse esse o caso, nenhum de nós estaria seguro com esta força de segurança. Nem sequer aqueles que não se inibem de dizer que Cláudia Simões estava a pedi-las, ou não entrasse no autocarro sem bilhete. Onde é que já se viu, não cumprir regras. A mania que as vítimas têm de se porem a jeito.

É mais "fácil" – leia-se, "horrível", "absurdo", "macabro" – perceber (sem que perceber seja possível) que o jovem cabo-verdiano morreu de forma criminosa às mãos de um bando  de delinquentes cobardes a quem pouco interessaria a cor da vítima, do que compreender que aquele agente estava no cumprimento escrupuloso das suas funções. Portugal não precisa deste tipo de autoridade