domingo, 27 de fevereiro de 2022

Ucrânia

A primeira e, até agora, única vez que permaneci horas e horas plantada em frente aos canais de notícias tentando assimilar o inacreditável foi no dia 11 de Setembro de 2001. Estava em casa e liguei a televisão no momento em que um canal qualquer, já não recordo qual, mostrava imagens das torres gémeas: uma nuvem de fumo negro e uma das torres ainda intacta. Acho que havia alguém, jornalistas, com certeza, a comentar as imagens, mas, durante muito tempo, não ouvi nada. Continuei a olhar para aquele cenário estapafúrdio até surgir no écran aquele que eu ainda não sabia ser o segundo avião, aproximando-se da segunda torre. Lembro-me perfeitamente de pensar que havia qualquer coisa estranha naquela investida, naquele voo certeiro que cortou de um lado ao outro o topo da torre boa, uma estranheza que eu não soube definir imediatamente. Mas quando o meu cérebro começou, finalmente, a desentorpecer, a ouvir, tive a certeza absoluta de que aquilo não era um acidente; foi essa a sensação que me assaltou naqueles minutos, segundos, não sei, que antecederam o embate, e que só depois fui capaz de identificar: aquilo não parecia a (a)normalidade de um avião em apuros.

Depois desse acontecimento assombroso, que teria mudado o mundo para sempre, chegou-nos uma pandemia. Juraram-nos e talvez tenhamos julgado que era esse, afinal, o grande desafio do novo mundo, moderno e civilizado. E foi, para demasiada gente que viu a sua vida desabar – as vítimas nunca caem todas ao mesmo tempo. Era uma guerra. Estávamos em guerra.

Há quem nunca se canse de nos alertar para o uso indevido das palavras. Claro que não havia guerra nenhuma. É agora que estamos em guerra. Uma guerra que foi fazendo o seu caminho, antes de mais, na cabeça ensandecida de Vladimir Putin, uma loucura atrás de outra. 

Kiev resiste. Frente a uma das Forças Armadas mais poderosas de mundo, sob o comando de um déspota que convinha não provocar, fosse lá o que isso fosse, mas cuja perigosa arrogância se tornou insuportável. Ceder-lhe é abrir um caminho ainda mais obscuro para o futuro não apenas dos ucranianos. E, no entanto, não há nada de claro no resto. O êxodo trágico de milhares de pessoas, mulheres e crianças porque há coisas que nunca mudam, os homens que ficam para trás, por vontade própria ou contra ela, miúdos, o drama, a impotência dos que nada podem, o canto sinistro das sirenes como aves de mau agoiro, garagens e estações de metro convertidos em bunkers imprevistos e improvisados. Há bunkers, em Portugal?

É a resistência espantosa de Volodymyr Zelensky (com que Putin jamais contou, seguramente) que anima os ucranianos e obriga a Europa a reagir. Ouço que Elon Musk disponibiliza à Ucrânia “o melhor e mais resistente” serviço de Internet, ouço que Kiev está cercada, que a União Europeia fecha o espaço aéreo a aviões russos e que será proibida a emissão das principais televisões internacionais russas, que a Alemanha vai fornecer armas à Ucrância quebrando uma política de não envio de armas para zonas de guerra que vigorava desde o fim da Segunda Guerra Mundial, que Vladimir Putin ordenou que se activasse “em modo especial de combate” o seu arsenal nuclear. O urso encurralado joga outra cartada de risco; tal como no poker, nunca se sabe até onde vai o bluff, se é realmente bluffHá manifestações em toda a Europa. Há manifestações na Rússia contra a guerra de Putin, porque esta guerra é de Putin. E é novamente impossível desviar o olhar, pensar noutra coisa qualquer.