domingo, 20 de fevereiro de 2022

"Rogério Casanova". Who else?

Como assinante, tenho direito a oferecer até seis artigos por mês. Ofereço este. É uma interpretação abusiva do direito, eu sei, mas não passa por aqui tanta gente que ameace com atirar este meu gesto vil para a categoria de crime. É como emprestar o jornal à mesa do café. Crime, crime é correr o risco de não ler isto. E isto é um esbanjar indecente e invejável de talento; no fundo e na forma. Em ortografia da boa, que é como quem diz, daquela em que “espectáculo” e “directo” se escrevem com as belíssimas mudas da discórdia e os meses do ano em venerada e venerável letra maiúscula. Tudo como deve ser, portanto. Até o novo retrato, e o outro já era extraordinário.

 

"Os melhores espectadores do mundo

“Expulsem A Porca.” Foi este elegante apelo que o The Sun fez aos seus leitores a 3 de Julho de 2002. A “porca” em questão era uma assistente dentária de 20 anos chamada Jade Goody, concorrente da 3.ª edição do Big Brother. Era comicamente ignorante sobre geografia, tinha uma voz irritante, gritava muito, bebia em excesso, e despia-se com frequência. Depressa se percebeu que seria a figura central do programa. A mera alusão ao seu nome tornou-se piada de referência em tablóides e talk shows. Ninguém a suportava, e ninguém desviava os olhos. Numa das galas, alguém na multidão empunhou um cartaz a sugerir “Matem a porca”.

De repente, ocorreu a todos que talvez fosse melhor ter calma. Assustada com a dimensão que a coisa ganhou, a produção ajustou os resumos diários, passando a mostrá-la a uma luz mais favorável. O público arrependeu-se e adoptou-a como mascote. Jade deu entrevistas, vendeu perfumes, publicou autobiografias. Foi convidada para outro Big Brother, versão Famosos, onde se envolveu numa violenta discussão com uma actriz indiana, que insultou com epítetos racistas. A segunda tempestade mediática fez a primeira parecer uma brisa estival. Os insultos abriram telejornais. Autoridades abriram inquéritos. Patrocinadores rasgaram contratos. Manifestantes queimaram efígies. Tony Blair repreendeu-a no Parlamento. Jade internou-se numa clínica psiquiátrica. Quando saiu, foi penitenciar-se num terceiro Big Brother (na Índia). Foi lá, em directo para milhões, que soube o resultado de um exame médico: cancro no útero — do qual morreu meses depois, aos 27 anos.

Talvez seja uma estarrecedora novidade para os cidadãos preocupados que assistiram a um reality show pela primeira vez em Fevereiro de 2022, mas é isto que os reality shows são, é isto que fazem, é para isto que servem: organizar fragmentos caóticos de realidade até que obedeçam aos ritmos de um melodrama, repletos de intensidades reconhecíveis (choque, repulsa, raiva, sentimentalismo). Para ajudar, despromovem pessoas de carne e osso a uma condição semifictícia, tão pré-determinada como num auto vicentino: a Porca, a Coitadinha, o Bobo, o Mártir, o Vilão.

Não era um processo desconhecido para Bruno de Carvalho (B. de C.), muito antes de ter passado pela Venda do Pinheiro. A sua ascensão a figura pública, em Fevereiro de 2011, foi coordenada por duas forças paralelas de estereotipagem. De um lado, a agência Cunha Vaz, que assessorou a campanha de um dos adversários na corrida à presidência do Sporting. Do outro, a atrofiada retórica parafutebolística, que só tem meia dúzia de fórmulas para qualquer personagem nova, e as vai reciclando com amnésico entusiasmo (O Messias, O Aventureiro, O Papagaio Que Quer Protagonismo, etc.). B. de C. foi designado “O Novo Vale e Azevedo”, um arrivista charlatão que só queria desfalcar o clube. Para todos os efeitos, a sua imagem foi fixada naquelas semanas. Que depois, no primeiro mandato, tenha conseguido melhores resultados financeiros que década e meia de antecessores é menos um elogio à sua competência do que uma impugnação da aristocracia decrépita que governara o Sporting e o condenara ao serôdio purgatório do “saber estar” e do “clube diferente”. O que B. de C. prometia era um clube igual aos outros.

Uma insólita quantidade de pessoas decidiu, no entanto, ver nele uma anomalia no ambiente ao qual chegou, e não alguém que parecia criado em laboratório para o habitar. Eis um homem grosseiro, destravado, melindroso, megalómano, fundamentalmente esquisito, com apetite pelo confronto, e com a vigorosa presunção de quem se acha muito mais esperto do que é. Como é que se pode olhar para uma pessoa assim e não concluir que o lugar indicado para ela é precisamente o futebol português? (A única alternativa razoável seria uma qualquer autarquia remota de média dimensão, onde pudesse passar 20 anos a discursar em coretos, a triturar apparatchiki de PS ou PSD, e a ser reeleito por sucessivas maiorias.)

Mas foi aqui que o caso adquiriu uma das suas dimensões mais intrigantes. O país de José Sócrates, Alberto João Jardim, Eduardo Cabrita, Miguel Relvas, Ascenso Simões, Avelino Ferreira Torres, Mesquita Machado, Valentim Loureiro, Pinto da Costa, Luís Filipe Vieira e Pereira Cristóvão olhou para Bruno de Carvalho e exclamou a uma só voz: “Não poluas a nossa Arcádia! Nós somos melhores do que isto!”

É evidente que não, não somos. Mas, com o tempo, as balizas mudaram de sítio, e pessoas que pouco sabiam ou queriam saber sobre o futebol português dedicaram-se ao turismo metafórico. Neste e noutros jornais, os explicadores profissionais das “causas do extremismo” e dos “perigos do populismo” usaram-no como bengala para a sua arrepiante falta de imaginação, com dissertações sobre o “Trump de Alvalade” e o “Sporting Clube de Pyongyang”.

No mesmo período, um primeiro-ministro aposentou-se com 20 milhões de euros que ninguém sabe de onde vieram; outro foi à arrecadação parafutebolística repescar um candidato autárquico para orar sobre “os ciganos” e reinventar a extrema-direita; e dois presidentes de clubes grandes foram investigados por desviarem milhões dos próprios clubes. Nenhum dos casos gerou o mesmo consenso de rejeição atávica; esses e outros foram serenamente inseridos nas escaramuças sectárias habituais: defende-se a nossa equipa, ataca-se a outra equipa, faz-se silêncio, quando já não dá. B. de C., por seu lado, tornou-se cada vez menos real, um boneco onde se podiam pendurar opiniões a custo zero. Quando finalmente expurgado daquela hedionda metonímia, o futebol português ficou saudável, e os turistas puderam regressar a casa, até eclodir nova emergência.

O precocemente falecido #MeToo nacional (paz à sua alma) resumiu-se a um par de denúncias sem nome e à acusação concreta de uma jornalista a um editor — esta recebida por uma eloquente orquestra de grilos. Ao testemunho de uma mulher que garantiu ter sido vítima foi atribuído o mesmo valor que agora se atribui ao testemunho de uma mulher que garante não o ser: zero. São questões “complexas” que devem ser avaliadas por entidades “competentes”. Maquilhada por formalismos, o que esta lógica faz é privatizar: privatizar atenção, privatizar diagnósticos, e privatizar sentenças, delegando-as às convulsões emocionais de uma audiência (e a quem decide o que ela vê) — e obrigando organismos sérios e necessários a funcionar a reboque de ondas, embirrações e hashtags.

Claro que neste caso há imagens e isso faz toda a diferença. Não porque as imagens “provem” o que quer que seja, mas porque a sua mera existência acautela os direitos de quem verdadeiramente importa em toda esta situação: nós, espectadores, e a santidade das nossas opiniões. O aspecto mais transcendente desta facilidade com que identificamos à distância comportamentos manipuladores (e vítimas de manipulação que o negam ser) é a convicção implícita de que nós próprios nunca somos manipuláveis: nem por imagens televisivas, nem por escolhas editoriais, nem por acidentes biográficos, nem por deformações profissionais. Acima de tudo, nunca estamos sujeitos à automanipulação: aquela que opera em função das nossas vontades secretas, das nossas pulsões inconscientes, dos nossos ódios de estimação, dos nossos excessos de confiança, das opiniões que queremos ter, e das que herdámos sem sequer dar conta. Tudo isso pode acontecer aos outros, mas não a nós. Como poderia? Somos os melhores espectadores do mundo. Os nossos instintos são infalíveis, as nossas conclusões são inerrantes — e a nossa única e imparcial motivação é a justiça. É só por isso, aliás, que passamos tanto tempo a olhar para ecrãs."