sexta-feira, 11 de setembro de 2020

As Guerras do Mundo

 

Por acaso, voltei a encontrar e voltei a ver a única, creio, entrevista que Joaquin Phoenix deu ao programa 60 minutos, pouco depois da estreia de “Joker”.

É um momento fantástico, o da entrevista. Joaquin Phoenix não é um entrevistado fácil. Não gosta de falar de si próprio; não sabe e, se soubesse, talvez lhe sobrasse ainda menos paciência para tentar explicar de onde lhe vem aquela centelha de loucura que faz dele um actor para lá de genial: monstruoso. Li, algures, que não gosta de ensaios, ou de ler guiões em grupo, do estrelato estéril da fama. É um homem soberbamente só. Imagino que seja dessa solidão que nasça a simbiose natural entre ele e as personagens a que se entrega; “há algo de libertador na humilhação pública”, confessou a Anderson Cooper, a propósito do fiasco – parte filme, parte documentário – de “I´m Still Here”. No caso de “Joker”, a fusão perfeita entre o homem e os seus demónios. Deve ser o que explica que o filme seja só dele. Que o filme seja ele. E a compulsão que o levou a improvisar aquela dança na casa de banho, depois de Arthur Fleck ter ousado matar pela primeira vez. Não fazia parte do guião. A dança. Lenta, silenciosa, catártica. Impôs-se, naquele momento, por vontade própria, a que Phoenix deu expressão, corpo e alma. Sobretudo a alma.




Há filmes que só vejo uma vez; às vezes, por motivos opostos: ou porque são desoladoramente maus – “Assim Nasce Uma Estrela” foi uma decepção tremenda – ou são tão intensos que, para repetir a experiência, é preciso domar cada um dos sentidos; acautelar, para o que aí vem, cada pedaço de mim, sob pena de não sair inteira da experiência que já uma vez me esmagou. “Joker” é um destes. Com a diferença de que, ao contrário de outros a que, até agora, não fui capaz de voltar por esses mesmos motivos (“A Lista de Schlinder”, por exemplo), “Joker” tem-me refém. Será uma questão de tempo.

 

Tudo isto vinha a propósito de guerras, e não sei por que terei começado por ali; talvez pela violência extrema do filme. Das guerras que nunca cessaram, embora nem todos as víssemos. 

Uns vivem infernos permanentes, outros, mais afortunados, vivem-nos de tempos a tempos. Num atentado terrorista que, às primeiras horas da manhã, num ponto nevrálgico do mundo a que chamamos mundo, esventra dois edifícios icónicos, semeando o caos e o espanto, a morte e o assombramento, a incredulidade (19 anos, a sério que já se passaram 19 anos?!). A mesma incredulidade que nos atingiu agora, implacavelmente, com duas diferenças que nos confundem: não há ninguém a quem culpar (a não ser que embarquemos nas teorias da treta, teoremas e corolários inclusive) e também não há ninguém que possa sentir-se verdadeiramente a salvo. Mas, apesar do alarme, do choque e dos destroços, esta guerra não é bem uma guerra. Entretanto, para lá das guerras – mesmo guerras – que nos habituámos a ver apenas nas páginas de alguns jornais e nas imagens de alguns telejornais, o mundo agita-se em uníssono, em fúrias diferentes mas legítimas, todas elas; muitas inadiáveis, urgentes, sob pena de perdermos mais do que a normalidade; mesmo aquela que muitos rejeitam, com escândalo, que se diga nova.

A Bielorrússia continua a ferro e fogo, com um presidente que reclama 80% dos votos contra ruas inteiras de manifestantes apostados em dizer basta! e em resgatar o que lhes sobra de liberdade. “Por amor”, Svetlana Tikhanovskaya tomou o lugar do marido e desafiou o poder  absoluto de Alexander Lukashenko. Há homens de máscara e identidades desconhecidas à caça de dirigentes da oposição, a bem da segurança nacional. A UE ameaça com sanções que, dizem, não terão qualquer efeito dissuasor sobre o tirano.

Vladimir Putin, cujos adversários tendem a deixar-se envenenar, deseja que tudo se resolva rapidamente, mas vai avisando que qualquer tentativa de interferência externa será inadmissível, seja lá o que isso for, em russo.

Hong Kong. Alguém se lembra de Hong Kong? Um país, dois sistemas? Quando comecei a ver as primeiras imagens das manifestações maciças pró-democracia, há mais de um ano, lembro-me de acreditar, por momentos, que poderia vir a ser verdade.

Na Grécia, na ilha de Lesbos, num campo de migrantes onde se ensaia a sobrevivência como ela jamais poderia ser tolerada, um incêndio agravou a indescritível miséria em que já jaziam milhares de pessoas até aí. Não sei como vai ser possível continuar a acolher(?!) milhares e milhares de farrapos de vidas destroçadas, sem alterar nada, sem procurar uma solução que não passe por converter num inferno a vida dos habitantes de Lesbos (sim, provavelmente, nunca chegará a ser um inferno idêntico, mas, e se fosse aqui, nas nossas ilhas ou nas nossas costas?), ou em recusar, liminarmente, prestar auxílio àqueles corpos amarrotados, esgotados, e ainda assim, cheios de esperança. Alguém, coisa ou pessoa, no singular ou no plural, tem que unir esforços para encontrar um caminho que não passe por ali. Que não passe por lado nenhum em que homens, mulheres e crianças sejam despejados como trapos imundos, sem utilidade ou remendo, digladiando-se por um pedaço rançoso de alento.

Há mais, muito mais, mas esgota-nos, olhar apenas para as misérias do mundo. Vou ficar por aqui. Não sem antes dar um pulinho a Istambul. Outro. Li, já há algum tempo, que Erdogan decidiu capturar, em nome do Islão, outra jóia bizantina de Istambul: a Igreja de São Salvador de Chora. Alegro-me por tê-la visitado há dois anos. O exterior estava tapado, em obras de restauro, mas o interior, apesar de algumas limitações, permitia aos visitantes o assombro devido. É tão bonita, tão bonita! 



Devia ser possível, a toda a humanidade, pelo menos uma vez na vida, entrar num sonho que escolhesse. Uma igreja, uma cidade, um rio, um parque, uma qualquer relíquia que entendesse única, onde pudesse rir e chorar, sobressaltar-se de espantos. Viver sem amarras, um instante que fosse.