segunda-feira, 20 de julho de 2020

Da Sabedoria Divina

Istambul foi um namoro difícil e nem sempre consentido. O arrebatamento veio de mansinho, se é que se pode dizer assim. Nada é manso em Istambul. 



Quando cruzei a entrada principal da imponente Basílica de Santa Sofia pela primeira vez, os andaimes necessários aos trabalhos de restauro que decorriam no interior do templo conviviam com os ancestrais mosaicos bizantinos, em representações de Cristo, da Virgem e dos Arcanjos e, estes, em paz aparente com gracioso mihrab, apontando a Meca, e os mahfilis dos muezins, enquanto os imensos painéis circulares, maciços, de madeira negra, exibiam elegantes arabescos dourados evocando Alá, Maomé e versos do Corão. Candeeiros assombrosos caíam do tecto magnífico, vertiginosamente e em equilíbrio perfeito, impossível, debruando um quadro de urnas de mármore e tapetes flamejantes. Era mais, muito mais, do que um museu, mais que basílica, mais que mesquita, uma metamorfose de diferentes estilos e fés, de império em império, opulenta, esplêndida, cobiçada e adorada por todos na sua majestosa natureza singular, na beleza dos mosaicos geométricos, na profusão frenética de luzes e cores e reflexos irrequietos, ouro, prata, vidro, terracota, pedras coloridas, mármores riquíssimos, repartindo histórias, um colosso de arquitectura e de resistência teimosa e sobranceira.




Há em Santa Sofia, como em todos os locais sagrados não necessariamente por uma qualquer lei ou ordem religiosa, uma convergência palpitante, densa, esmagadora, entre o real e o imaginado, o virtuoso e o herético, onde até as pedras desfiam lendas de sabedoria divina ou profana, pois tudo se mistura em encantadora harmonia, em Aya Sophia. Ou misturava. Erdogan resgatou o templo, submeteu-o aos seus caprichos, a jóia bizantina de Istambul, e devolveu-lhe o estatuto de mesquita. Há quem tema pelas consequências da transferência do monumento para a Directoria de Assuntos Religiosos e a sua consequente entrega ao culto religioso. Nomeadamente, a proibição de entrada a não muçulmanos e a ocultação, novamente, dos mosaicos bizantinos. 

Dia 24 de Julho terá lugar a primeira oração naquele possante e pulsante santuário, obra admirável de engenho, arte, da devoção que alimenta ambos, e fala-se em usar cortinas ou recorrer a técnicas de iluminação adequadas, durante o ritual, de forma a ocultar os símbolos cristãos, que o Governo Turco promete preservar. Hagia Sophia continuará, asseguram-nos, aberta a todos os visitantes, incluindo, turistas. Veja-se a Catedral de Córdova, sossegam-nos outras tantas vozes, onde tudo se harmoniza em apaziguada coexistência! 

Insha'Allah. Esse, ou outro qualquer, desde que Aya Sophia continue a sobreviver à cobiça.

Fotos próprias