quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Regressos

 



Sobressalto-me sempre que me encontro nas memórias de outros. Memórias que outros escrevem sem saberem nada de mim, nem sequer que eu existo; nem nestas páginas, nem para além delas. E, no entanto, aquele filho é o meu; sou eu, aquela mãe; já desci aquelas ruas, frequento aquelas lojas, reconheço vários daqueles actores que enchem o nosso quotidiano, aquele que partilho sem pertença nem dolo com esses desconhecidos com quem me vou cruzando num acaso virtual. Até as histórias, algumas, juro que já mas deixei contar. Sou capaz de desenterrar-me dos recantos mais áridos, das esquinas mais nuas, transportar-me inteira entre mundos remotos. Ontem mesmo vi, numa rua das nossas, bem portuguesas ainda (ainda?), uma rua de Marrocos, numa viagem de há três anos, entre Tânger e Fez, numa cidade interior onde parei para levantar dinheiro e meter gasolina. Há mais anos ainda reconheci uma rua do Porto numa rua de Praga; bastava trocar a Torre da Igreja dos Clérigos pelos pináculos da Catedral de São Vito, e a ilusão era mais que perfeita. 

Mas, por muito que se viaje, não se descobrem facilmente praias como as nossas. Talvez aquelas a que chamamos exóticas, como as Maldivas que conheço e as Maurícias que imagino, mas serão apenas acasos felizes. Mas, isto sou eu. Muito de férias e pouco de praias, dois conceitos, aliás, que nunca passaram do “primeiro estranha-se”; estranho-os sempre que os imagino juntos e junto-os, apenas, muito raramente, por acordo tácito, às vezes táctico, com o meu filho. O meu, mesmo meu, no caso. E neste caso, neste verão, foi o acordo possível.


Entretanto, vi que deixei um rol de textos por acabar. Um, sobre o que gosto de conduzir e como viajaria de carro, exclusivamente, se dependesse apenas da minha vontade. Outro, sobre a rapariga da papelaria e do esforço que fez e faz para se aguentar de portas abertas, já que não aguenta as lágrimas. Outro, ainda, sobre as aventuras de Marcelo, uma colecção do género "Anita vai às compras", ou à praia, ou a outro lado qualquer, que o Presidente é mais que Rei e a Anita, afinal, sempre foi Martine. Só não me digam que os estrunfes são smurfs, que sou capaz de me enervar. Mais.

Também tenho um texto principiado sobre as aventuras e desventuras de Rui Pinto, herói ou vilão?, e outro sobre os pais de Famalicão mais as suas objecções de consciência, mas, parece que finalmente, lá saiu, mais ou menos, a auditoria da Deloitte às contas do Novo Banco e, aparentemente, vai continuar tudo tão bem como até agora, pelo que, de momento, estou com pouca paciência. Estamos em pleno regresso às aulas e creio que a última vez que vi o ministro da Educação foi naquele magnífico evento que anunciava outro magnífico evento com que o país ia premiar os profissionais de saúde, ou lá o que era. Pelo meio, continuamos a contar contágios e mortos e a ensaiar indignações estafadas contra os males do país; previsíveis por uns, do conhecimento de muitos, encobertos por quase todos. É mais do que só nos lembrarmos de santa bárbara quando troveja; é fingir que nem sequer nos lembrávamos do que é um trovão. Mas, estou como a ministra da Cultura, não li jornais portugueses (nem outros, não por acaso) durante uma data de dias e foi óptimo, bebi uns drinques de fim de tarde e de meio da tarde também, e não gosto nada, mesmo nada, de touradas.