Creio que nunca terei ficado acordada com o único propósito de ver ao vivo, mais ou menos, um debate entre candidatos às eleições americanas. Mas, os tempos são outros e tenho a imensa sorte de dormir muitíssimo bem e, se for caso disso (muito raramente é), retomar facilmente o sono a meio da noite. Pois bem, ontem era o caso. Tinha uma grande expectativa sobre o confronto entre Donald Trump e Joe Biden, o que prova que devo estar a ficar senil.
Partilho das opiniões generalizadas, de
que o debate foi miserável. Na verdade, para lá de miserável. Achei péssima a
prestação de Chris Wallace, não gostei de ouvir Biden chamar palhaço a Trump –
não é que a criatura não seja bem pior que isso e talvez até nem tenha sido um
deslize – e surpreende-me sempre a deferência que existe com os descaradamente
mentirosos poderosos, a quem nunca se exige, com a mesma assertividade implacável
que se reserva aos outros, que provem o que estão a dizer, que documentem, que
expliquem. Claro que isso também é difícil, quando se tenta estabelecer o
mínimo de conversa com alguém com o perfil do actual presidente dos EUA. Aliás,
se nos abstrairmos disso, Trump é, realmente, uma personalidade fascinante do
ponto de vista médico – da área da psiquiatria. O nosso protótipo nacional
só não se lhe assemelha porque, precisamente, é-lhe mais difícil fingir que é
tão ignóbil quanto pretende parecer. Já Trump é o que é, é-lhe indiferente, e lida
lindamente com todos os atropelos à verdade dos factos porque criou a sua
própria realidade virtual, que os seus apoiantes mais fiéis trazem em ombros
sobre as ruínas do que vão esmagando pelo caminho. Só lhe falta mesmo o shoot
somebody no meio da 5ª Avenida e safar-se com isso, who cares?
Claro que Trump não foi capaz de assegurar que vai aceitar os resultados das eleições se perder – não vai – nem de condenar os grupos de supremacistas brancos pelos actos de violência; usou o habitual tom jocoso (estou tão preparado, quem é que quer que eu condene) para, imediatamente a seguir, lançar achas para a fogueira que o há-de manter vivo até 3 de Novembro, pelo menos: “Proud Boys, stand back and stand by. But I'll tell you what: Somebody's got to do something about antifa and the left. Because this is not a right-wing problem — this is a left-wing problem”, e os Proud Boys, very proud, já vieram responder, heil trump, quantas cabeças partidas quer?
É importante semear o caos para, depois, impor a lei e a ordem.
Não vai acabar bem. Não vai acabar nada bem. E é penoso ver o estado a que chegou a América. Mais do que miserável.