segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

(Res)Caldos Eleitorais

Há, então, meio milhão de portugueses – mais coisa, menos coisa – que se revê na pantominice histérica parida entre berros e insultos do candidato anti-sistema André Ventura. Meio milhão de “portugueses de bem” fartos disto tudo para quem o, antes, líder, agora, demissionário (ou ainda não?), amanhã, candidato e, depois de amanhã, novamente líder do Chega é o melhor de todos os mundos que alternam entre si consoante os ventos e os votos. 

“PSD, ouve bem: não haverá Governo em Portugal sem o Chega”, gritou Ventura, a voz do País e de Deus; meu Deus. Ámen. Só faltaram as lágrimas, desta vez. Mas, nem era preciso. O aviso emocionado. Rui Rio já tinha vindo a público dizer coisa mais ou menos parecida. Acho que nunca tinha visto um líder partidário tão entusiasmado com a vitória de um adversário político. Bem sei que exagero no “entusiasmo” e na “vitória”, mas, é preciso ter em conta o tal contextonão é? Abençoado. Afinal, no primeiro caso, trata-se do actual líder do que resta do PSD e há sempre uma espécie de costela alemã ou lá o que é que o impede de grandes efusividades, de modo que, o que lhe vi e ouvi pareceu-me bastante próximo de entusiasmo, ou, pelo menos, de uma ameaça de; no segundo caso, doa mais ou doa menos, o eleitorado do Chega – ou de Ventura, não sei se será bem a mesma coisa, mas, de momento, não interessa mesmo nada – cresceu sete vírgula qualquer coisa vezes em pouco mais de um ano. É uma vitória. Deixou, por isso, de ser muito importante, no momento, tentar perceber por que votou em André Ventura quem votou em André Ventura. Na retorcida amálgama de todos os argumentos, podemos, facilmente, lá encontrar um dos nossos: um desabafo, um remorso, um momento de raiva. Será mais urgente e avisado tentar perceber onde é que falhámos. Para criar este monstro e, não contentes, alimentá-lo e engordá-lo. 

O que aí vem, a reboque da não gestão da pandemia – o eterno desenrascanço português, correndo sistematicamente (e sistemicamente) atrás do prejuízo em vez de o acautelar – e da violentíssima crise económica que se avizinha, acabará por consolidar um caminho de revolta e ódio sem pudores. Como se viu na América de Trump, abriu-se um esgoto e o cheiro vai incomodando cada vez menos.  

De resto, não ganhou um "candidato de centro direita": ganhou Marcelo. Ponto. Perderam todos os outros, com excepção do tal, cujo nome alguns não querem pronunciar. E Marcelo ganhou umas eleições presidenciais. Eu, que não percebo nada de política, tenho muitas dúvidas acerca do "esmagamento" a que, supostamente, a esquerda, foi sujeita, seja lá o que isso for. Ainda assim, o que faremos daqui para a frente determinará se, ao burro, continuará a ser permitido zurrar.


E mais de 60% dos eleitores não foram votar. Claro que há a pandemia, o confinamento, o medo e mais não sei o quê, e, por isso, há quem se alegre com a participação dos portugueses. Podia ter sido pior. Podia. Pode sempre ser pior. 

Também tenho alguma curiosidade em saber quantos votos terá arrecadado o candidato não candidato, essa outra curiosidade portuguesa, com certeza. 

E, em época de eleições, lembro-me sempre do Ensaio sobre a Lucidez, de José Saramago. Do seu imaginado presidente da mesa da assembleia eleitoral número catorze, primeiro, pasmado por não ver vivalma que acudisse ao chamamento do dever cívico; depois, deslumbrado com a afluência, finalmente, à sua urna; e, no fim de um dia longo, noite fora, estupefacto pelo número de votos em branco. E se fosse a sério? Se decidíssemos, por uma vez, trocar 60% que fosse de abstenção por 60% de votos em branco, o que mudaria?