segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Momentos

O meu vizinho do prédio em frente voltou a tocar saxofone, à janela. No início da catástrofe, em pleno confinamento, também havia um casal de cantores de ópera, mas eu prefiro ouvir o homem do saxofone.  O casal cantava todas as noites, às 22 horas em ponto. O homem do saxofone toca pontualmente, alguns Domingos à tarde. Na verdade, não sei bem por que penso que é um homem. Nunca o vi. O prédio dele está de costas para o meu, um pouco desviado para a direita. Só o ouço. Só a ouço. Pode perfeitamente ser uma mulher. 

Um dia qualquer, atrevo-me a descer à rua e junto-me, com o distanciamento que a pandemia moldou a custo, àquela gente que se vai espalhando pelo passeio, a olhar para cima, em silêncio. Um silêncio quebrado apenas ao fim de uma hora, quando tudo termina. Os que começámos a ouvi-lo, a ouvi-la, assiduamente, já sabemos que dura exactamente uma hora. No fim dessa breve interrupção da nossa realidade agora (só agora?) desalinhada, a gente da rua aplaude, sempre timidamente, e agradece-lhe. Depois, as pessoas dispersam, rumo às suas vidas ainda suspensas, num marulhar suave como as folhas secas de Outono em alegre corrupio.

Se não chove, sento-me numa das cadeiras de madeira da varanda, com o céu diante de mim e uma linha de mar, ao longe, delineando um horizonte perfeito. Enquanto se soltam as notas, vejo-o mudar de cor. Ao céu na minha frente. Vejo-o empertigar-se. Arrumar as nuvens em espiral como num quadro de Van Gogh, dispô-las sobre os vincos de anil que a luz do sol ora torna leitoso, ora ameaça tingir de chumbo. Por um momento, as diferentes linhas que racham o ar parecem dar forma a uma partitura, guiadas pelo génio do músico. As nuvens como colcheias subitamente empalidecidas.

Hoje ainda não desço. Fico a ouvi-lo desde casa.

Mesmo sem balanços de um ano de peste – de várias pestes – guardo, também, a generosidade desta gente anónima, desconhecida, capaz de dispor do seu tempo para suavizar a tormenta. Sem contrapartidas.