Entre o espanto com
o espanto dos números que nos cercaram os dias, encurralando-nos, ditando, definitivamente, o fim
do "milagre português" e que elevaram Portugal à categoria do “pior do mundo” em
quase todas as macabras modalidades desta miserável doença que ameaça não deixar
pedra sobre pedra, pergunto-me se, no meio dos que acusam o Governo de ser tudo
e mais alguma coisa menos o que dele se esperava que fosse tendo em conta o
cenário dantesco, não andarão alguns daqueles que acudiram em massa aos centros
comerciais para as últimas compras de Natal, engordando filas e filas pouco ou
nada distanciadas às portas das lojas a que prestavam culto, descumprindo,
escrupulosamente, pelos extensos corredores, todas as regras sanitárias exibidas
nas montras das ditas, com excepção do uso de máscara. Do pouco que vi – quando
calhou sair do supermercado em cima da hora de abertura do restante comércio
(sim, já a essa hora) –, vi o mesmo que noutros normais passados. Não fossem as
caras semi-ocultas e o facto de os atropelamentos consumistas típicos da
época terem passado do interior das lojas para o exterior, pouco parecia ter
mudado. Sem esquecer as celebrações da Passagem de Ano com toda a pompa e circunstância que todas as circunstâncias já, na altura, desaconselhavam.
Não sei se o descalabro a que vamos assistindo, já algo anestesiados, terá tido o seu ponto de ignição nessa abertura tão desejada por todos, mesmo por aqueles que, agora, arrancam cabelos com a incompetência dos outros, mas não acho nada absurdo pensar que sim. Para não comprometer a tradição, comprometeu-se tudo o resto, como se o vírus pudesse, de repente, ser ele próprio sensível às nossas urgências festivas. Ou afectivas que fossem e, em muitos casos, eram-no.
Não
quero, com isto, dizer que o Governo está isento de culpas. Não está. Se não
por mais nada, por demonstrar demasiadas inabilidades e incompetências, numa estratégia dramaticamente
errática que se arrasta também há demasiado tempo. Tão errática que deixou de parecer estratégia: é uma navegação à
vista no meio de um intenso nevoeiro, num mar pejado de destroços. Uma tempestade mais que perfeita. Vai
continuar a correr mal. Mas a culpa não é apenas do Governo. No meio da
pandemia e da tragédia, há um conflito de liberdades inconciliáveis. Não é
apenas por cá. E não tem que ver apenas com a falta de empatia, ou
solidariedade, o estar-se nas tintas, o não querer fazer parte do
rebanho, e, sim, há disso tudo. É o desespero de quem se vê impedido de
trabalhar, de ganhar o seu sustento, obrigado a viver de caridade ou de
esmolas. É vermos morrer os nossos velhos nos lares, sem abraços e sem tempo
para despedidas. É televivermos os afectos dos que mais amamos, sem prazo e sem
sabermos se, de repente, aquela videochamada é a última. É verdade que já não o
sabíamos antes, mas é agora que a ideia de que podemos perder os nossos sem
aviso se tornou omnipresente; é agora que a ameaça paira sobre todos os dias, abocanhando-nos como um abutre.
Também não sei como vamos sair disto. Um mundo do avesso, um país em frangalhos, vidas a desfazerem-se como uma manta de tricot quando se puxa um fio. Mas não é só este Governo que não está à altura do desastre. E, só para que conste, não o escolhi, não é disso que se trata.