quinta-feira, 9 de julho de 2020

Vírus e outras (bi)charadas

Tenho-me sentido como o Coelho Branco de Lewis Carrol. Mais ou menos. Mais atrasada e menos lúcida. Muito menos. O mundo em sobressalto e eu enfiada no meu casulo, menos figurativamente do que desejava. Pensei escrever sobre rabanetes, embalada pela loucura das personagens em que por vezes me perco sem perceber porquê, mas falta-me a inteligência, o sentido de humor, a arte de muitos, ou poucos, dependendo da exigência do palco, e a deliciosa arrogância de alguns. 

Lembrei-me do Coelho Branco porque, há tão pouco tempo que, neste tempo, se eterniza, comprei uma edição ilustrada de Alice no País das Maravilhas para oferecer ao meu filho. O miúdo trocou-me as voltas e as quedas e preferiu começar a ler O Diário de Anne Frank, o meu exemplar velhinho, ainda ninguém andava a decapitar estátuas, a espichá-las de vermelho-ultraje e a afogá-las nos rios, sem olhar a quem, como se não tivesse havido o ontem com que se constrói o amanhã e a História não tivesse nada para nos ensinar e pudesse ser retocada como um quadro antigo às mãos de aprendizes. Não tem dado bons resultados. 

E lembrei-me da entrevista do Miguel Esteves Cardoso sei lá bem porquê. É a parte da lucidez que me tem faltado, ou a memória do prazer com que a li, o descaramento desempoeirado, destapado em amena conversa e os consequentes acometimentos, à data, macilentos, inevitáveis, contra tudo o que mexe para aqueles lados que dormimos pior. Sei, no entanto, que, nessa altura, escrevi qualquer coisa sobre a falta de tempo para acompanhar a vertigem da actualidade. Nesta - que também era essa - altura do ano padeço sempre do mesmo mal. Desse, pelo menos. Com a idade, vão chegando outros. O mais recente – para lá da covid de que tenho escapado – tomou-me parte do juízo, com toda a certeza. Passei a acreditar em (algumas) teorias da conspiração. Por exemplo, quando li que Kanye West se apresentava como candidato a presidente dos EUA nas próximas eleições a realizar em Novembro naquele país, ocorreu-me que o golpe poderia ter sido acertado com o ídolo em falecimento a quem o cantor não pretende realmente suceder, apenas ressuscitar. O tremendous genius daqueles tipos! E quando li que Bolsonaro se declarava contaminado – com covid, entenda-se , mas se sentia perfeitamente bem, pensei, querem ver que o homem arranjou maneira de provar que a bicha é mesmo uma gripezinha que se cura com hidroxicloroquina e, no fim, vai mesmo ficar tudo bem? Tentava estancar a demência quando vi o sketch publicitário, e piorei. Mas, ele confia, aleluia, que descanso, só faltou a sanfona, essa expressão maior de homenagem aos que se foram. Entretanto, o presidente do Brasil também veio dizer que nenhum país preservou vidas e empregos como o seu. Excepto, talvez, os EUA. Mas, isto, quem diz sou eu. O outro magnânimo diz que ele é que é o presidente do país que fez um great job no combate à doença que ia desaparecer em Abril, com o calor. Nada de confundir o tamanho das américas.

Por falar em bom trabalho. Depois de termos conseguido trazer a Champions para Lisboa, poupando-nos um ror de dinheiro em publicidade para gastar em isenções fiscais, que o tempo não está para extravagâncias, passámos a figurar na lista de indesejados de alguns países que críamos e queríamos amigos. Enquanto Marcelo e Costa, o primeiro, se multiplicam em lamentos sobre a falta de turistas ingleses no Algarve, a polícia do Algarve vê-se a braços com a falta de responsabilidade dos jovens holandeses em viagens de finalistas. Parece que os miúdos andam aos magotes, abraçam-se e beijam-se sem pudor nem temor, enchem os bares à noite e as raparigas não querem usar máscara porque lhes estraga a maquilhagem. Que horror! A bem da nossa saúde pública, que não tarde a troca dos adolescentes holandeses pelos adultos britânicos, jovens e menos jovens. Esses sim, sabem ir a bares sem colocar vidas em risco. Desde que o Reino Unido e outros nos mantenham na lista negra, devemos estar a salvo. Até porque não há evidências de contágios nos transportes públicos, a saber, autocarros e comboios. E aviões da TAP, que também são públicos. Quem disse que o milagre português não era milagre português?

Deixemos a covid e os turistas em paz.

Mário Centeno foi ao Parlamento fingir que prestava os esclarecimentos que os deputados fingiram exigir a fingir que pretendiam fazer-lhes caso, aos esclarecimentos, para terminar fingindo uma discordância com que todos fingem concordar. Com excepção do Iniciativa Liberal, que ainda não sei bem o que finge. Tudo isto depois de António Costa fingir que ouvir uns e outros era importante para uma decisão que todos fingiam não estar tomada ainda Centeno não tinha acabado de limpar a secretária de Ministro das Finanças. A política é uma maçada. Fingida.

A SATA pediu auxílio ao Estado, no valor de mais uns milhões de euros a somar a outros pedidos de auxílio milionários. Conhecidos. Como, há tempos, carpia outro senhor, aplicam coimas de milhões como se fossem bagatelas. A questão é que nem todos merecíamos. As bagatelas. 

Também ficámos a saber que essa outra entidade estratégica para o sustento financeiro do país, o Novo Banco, vendeu a preço de saldo, outra vez, uns tais de activos a “entidades” ligadas a um tal de fundo norte-americano que é o principal accionista de um banco austríaco que foi gerido por outro tal de Byron Haines, actualmente, chairman do Novo Banco. Confuso? É capaz de ser intencional, para nos garantirem que tudo está em conformidade com tudo e não há qualquer motivo de desconfiança. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, e o mesmo se passa com a gente e com todas as outras coisas que sobram. Uma entidade é uma entidade, uma instituição é uma instituição, um fundo é um fundo, até os de resolução, e esta gente sabe muito bem distinguir umas coisas das outras coisas. Sem conflitos, tudo dentro da lei e dos inevitáveis “processos de restruturação e desalavancagem de activos não produtivos”, parece que é assim. Dependendo do que se entende por “não produtivo”, evidentemente.

Houve mais coisas. A ministra Mariana Vieira da Silva destapou a possibilidade de o Governo poder vir a "monitorizar discursos de ódio" publicados nas redes sociais, o que, em tempos bastante anormais, levanta mais desconfianças do que certezas, sendo certo que há uma liberdade que há muito deixou de ser de expressão; Rui Rio propõe acabar com os debates quinzenais na Assembleia da República e fez saber que encontra pouca utilidade na manutenção das reuniões do Infarmed, que, entretanto, foram suspensas, e o Ministro da Educação tem sido criticado por não ter um plano sério (a sério?) para o início do próximo ano lectivo. Talvez não venha a ser preciso. Da maneira como tudo está a correr tão bem cá dentro e lá fora, em Outubro, é possível que estejamos todos em casa outra vez e muito mais aptos a televiver em todas as suas variáveis, inclusive, a escolar. Educação também será outra coisa.