quinta-feira, 16 de julho de 2020

Não nos livrem d'Os Maias

“Com a mania francesa e burguesa de reduzir todas as regiões e todas as raças ao mesmo tipo de civilização, o mundo ia tornar-se uma monotonia abominável. Dentro em breve um touriste faria enormes sacrifícios, despesas sem fim, para ir a Tungubutu – para quê? – para lá encontrar pretos de chapéu alto, a ler o Jornal dos Debates.”

Os Maias

Já confessei algures que, periodicamente, volto à leitura d’“Os Maias”. Supostamente, uma remissão tardia do que me custou a obra nos meus tempos de escola. Na altura, não havia resumos de resumos, análises de análises e, a não ser que tivéssemos quem nos contasse a história em detalhes relevantes para o estudo da coisa, lê-la era o único remédio. Li-a. Contrariada. Saltando páginas. Como quem lê os títulos gordos das notícias, qualquer coisa no princípio, duas linhas no meio e outro pouco no fim, na expectativa, ora tosca, ora imbecil, de ficar informado. No meu caso, naquele tempo, a expectativa era apenas passar, com a melhor nota possível, num teste de português. Ponto final, e a história acabava ali. Mas há histórias que nos consomem, e livros que nos espreitam com a paciência dos predadores mais atentos e hábeis, cercando a presa que se passeia em trilhos descuidados e alheada dos perigos do caminho, até se ver emboscada e perdida para sempre. Acontece-me frequentemente e não só com a astúcia de Eça. 

No momento em que rebentaram as manifestações anti-racismo na sequência da morte de George Floyd – esse criminoso perigoso e infame que, por isso, não deixa pena, nem marca, a não ser, eventualmente, a do joelho do executor no seu pescoço, viva a democracia cujas regras se ajeitem à nossa medida – estava eu tomada de amores, e horrores, de outra obra que aguardara, até aí, a sua vez no pó da estante, já lá iam vários anos. O Sonho do Celta, de Mario Vargas Llosa, narra a história (conhecida de muitos) de Roger Casement, cônsul britânico no Congo Belga corriam anos do século XIX, anjo e demónio, herói e traidor, que como traidor acabou condenado à morte e executado, não sem antes denunciar as atrocidades do regime colonial do rei Leopoldo II cometidas sobre os trabalhadores-escravos do Congo subjugado à lei da mais (im)pura e implacável ganância. Daí que, quando me perguntam se acho mal que se destruam estátuas que simbolizam o poder esmagador, tirânico, de uns homens sobre outros, na forma mais ignóbil e cobarde como foi e ainda é, no nosso tempo e em muitos sítios, a escravatura, a resposta óbvia, mais do que correcta, seria claro que não acho mal, como poderia achá-lo alguém que despreze tal conduta? Consequentemente, não sofro, francamente, pela remoção das estátuas de Leopoldo II, nem mesmo sabendo que o rei nunca pôs os pés no Congo e foram outros, e não o próprio, quem fez sofrer os congoleses ao serviço de sua majestade. 

A discussão em torno das estátuas que merecem a forca, dos livros que merecem a fogueira dos infernos que evocam e revolvem, da erradicação eterna dos símbolos que nos lembram do que fomos e somos capazes a troco da superioridade que, julgamos, nos assiste não é, por isso, descabida. E é difícil encontrar o equilíbrio entre a preservação das memórias – mesmo das que nos assombram e insultam – e a busca de uma sociedade mais igualitária, sem lugar à violência sobre o outro com base numa diferença que cremos intolerável à luz da nossa civilidade, seja ela qual for. Há um tempo de reconciliação com o passado. Sem essa reconciliação, tornamo-nos nos mesmos monstros que pretendemos combater.

E, assim, voltamos ao tema central das sociedades modernas, covid-19 à parte. Quando é que a expressão deixa de poder ser livre, quando é que a censura passa a ser aceitável.  A resposta óbvia – como nas estátuas – será nunca! Nenhuma voz pode ser calada e qualquer forma de censura é abominável. E eu tendo a concordar. A imposição de um “politicamente correcto” maquilhado que nos tornou reféns das palavras (talvez subscrevesse isto) e tem vindo a minar os debates políticos e sociais ameaça tornar-se a pior emenda para um soneto de desigualdades que devem ser combatidas, sim, mas não há custa da castração do pensamento. A questão é onde fica a fronteira entre a opinião e o insulto, a verdade e a farsa, a liberdade e o abastardamento. O limite – a existir algum – não é de traço simples, mas tem, forçosamente, de acompanhar a sofisticação dos tempos, e é também por isso que acredito que perdemos mais em destruir estátuas, mesmo aquelas que desprezamos, ou em censurar livros, mesmo os que branqueiem (não sei se é o caso, não o li) partidos como o de Ventura, do que em usá-los como tomadas de consciência para o que não queremos ver repetido. Deixemos a História contar os seus marcos, com os seus defeitos e virtudes, deixemo-la viver e morrer através dos seus heróis e dos seus vilões, sem falsetes nem retoques, e, talvez, possamos entender-nos melhor.

Tudo isto me leva ao recente boicote de que foram alvo o Facebook e o Instagram, depois de o Twitter ter decidido começar a assinalar as publicações do presidente norte-americano que violem as regras de conduta da plataforma, enquanto, por cá, a ministra Mariana Vieira da Silva anunciava a intenção do Governo de passar a monitorizar discursos de ódio online. E há discursos repugnantes. Que vão além da discordância de opiniões. O dos novos heróis de uma certa direita torta, arvorada da coragem clarividente que falta aos outros, hipócritas, deve ser repudiado. Como se a revolta desses paladinos brilhantes contra o sistema e o poder instalado não fosse apenas um logro: o que pretendem não é abater os vícios do sistema, é moldá-lo à sua imagem e semelhança. Calar vozes que apelam à violência pura e dura, com base no ódio ao outro, porque sim, porque se pode, não é bem o mesmo que calar vozes discordantes, por mais mordazes ou incómodas. Ainda assim, talvez seja melhor não tentar calar ninguém. Pelo menos, sabemos de onde vêm os golpes.

E tudo isto vinha a propósito de estátuas e livros indigestos. E filmes, esqueci-me dos filmes. E da música. Mas, acho que poderia viver sem o resto, se não me levassem os livros. 

Há um momento em que a penitência se cumpre com imenso prazer e deixa de servir o seu propósito. Essa é uma fronteira mais fácil de traçar, aquela entre a culpa e o prazer. Ou talvez não, tendo em conta que já perdi a noção do tempo em que me rendi ao génio de Eça. Isto falando daquela culpa e deste prazer. Espero que a ninguém ocorra a lembrança de branquear Os Maias, ou contextualizá-los. Historicamente, estoicamente que seja, é um paternalismo escusado. Quem leu Os Maias não se livra de males, não tem salvação.