terça-feira, 28 de julho de 2020

Coincidências do Diabo





“No dia 8 de Novembro de 2017, uma quarta-feira, António João Barata da Silva Barão, engenheiro de formação e pintor, que fundou e dirige a tertúlia artística Parlatórioem Lisboa, e a sua companheira, Ana Paula da Costa Lapa, registaram cinco sociedades imobiliárias de uma só vez. Todas com a mesma morada onde já tinham muitas outras, na loja 19 do Shopping Columbia, na Avenida Júlio Dinis, n.º 14, perto do Campo Pequeno, em Lisboa.

Cada um ficou com 50% das quotas das imobiliárias, mas António ficou como gerente de todas. Não que isso lhe viesse a ocupar muito tempo. Apesar do "boom" nos preços do imobiliário em Lisboa, daquelas cinco sociedades que criaram só uma registou uma venda, no valor de 200 euros. As outras acabaram o ano a zero.

Cinco dias antes deste registo em Lisboa, nas distantes ilhas Caimão, mais concretamente no Cayman Corporate Centre, número 27 da Hospital Road, em George Town, foi criado um "hedge fund", um fundo de investimento muito mais arriscado do que os tradicionais. Chama-se "Anchorage Illiquid Opportunities Master VI (A) LP". Os valores que ostenta na data da sua criação são muito diferentes dos cinco mil euros de capital social das empresas criadas no Shopping Columbia em LisboaMil duzentos e cinquenta milhões de dólares é o valor do fundorepartido por mais de 18 investidores anónimos, tal como vem descrito na documentação entregue à Securities and Exchange Commission dos EUA

Para reforçar o anonimato e para pagar ainda menos impostos do que nas Caimão (um dos mais conhecidos “paraísos fiscais” do mundo), o hedge fund atravessou o Atlântico e registou, no dia 11 de Dezembro, no Luxemburgo, uma sociedade de responsabilidade limitada, chamada AIO VI S.a r.l., com sede na Avenue J.F. Kennedy, 43. 

Para completar esta história, que parece não ter qualquer tipo coerência, o fundo das Caimão ordenou à sua filial do Luxemburgo, no dia 8 de Outubro de 2018, que comprasse as cinco sociedades imobiliárias lisboetas a António Barão e Ana Paula Lapa.

Dois dias depois desse negócio, fechou-se o círculo destas entidades, menos de um ano depois de terem sido criadas. A venda, pelo Novo Banco, anunciada no dia 10 de Outubro de 2018 à CMVM, de 5552 imóveis e 8719 fracções às sociedades lisboetas, detidas pela sociedade luxemburguesa, que, por sua vez, pertence ao fundo de investidores anónimos nas ilhas Caimão.”

 

É assim que começa a notícia do PÚBLICO onde se expõe o negócio da China, perdão, o negócio da “pechincha” portuguesa, com certeza, que permitiu que um fundo de investimento, detido por 18 investidores anónimos comprasse, ao Novo Banco, milhares de imóveis por metade (mais coisa menos coisa) do valor da avaliação ditada pelo próprio banco. Consequentemente, o Fundo de Resolução foi chamado, outra vez, a cobrir as perdas de tal negócio. Parece que não directamente, como já esclareceu o Novo Banco, naquela ladainha ambiciosa e oca, para encher chouriços, sem desprimor para os chouriços, evidentemente. Qualquer coisa sobre a generalidade dos imóveis a saldo – ou a saque – estar "fora do mecanismo de protecção de capital". Pois. A riqueza da língua portuguesa não serve só poetas e escritores brilhantes, também serve causas menos nobres e circuitos mais habilidosos. Ao lado do desenrascanço, o engonhanço é outro portento luso. Intraduzíveis, ambos. Bestialmente legais, um e outro.

Aliás, a única ilegalidade neste magnífico negócio, e noutros de parto idêntico, seria, dizem, a venda de activos, pelo Novo Banco, a entidades relacionadas com a Lone Star, coisa que, como é sabido, é passível, não só, de implacável regulação, como de escrutínio cerrado e fácil. Sobretudo fácil. O PÚBLICO perguntou ao Banco de Portugal como é que se faz: “Quando os adquirentes dos activos são fundos de investimento ou fundos de "private equity", o que se procura apurar é se o fundo em causa é um adquirente credível, nomeadamente tendo em conta as suas credenciais e o seu historial”; “Por outro lado, essas situações — i.e. as situações em que os adquirentes são fundos de investimento ou fundos de "private equity — são precisamente aquelas em que a venda normalmente resulta de processos organizados, abertos e competitivos, em que o adquirente é o concorrente que oferece as melhores condições”; “esta conjugação de elementos (para além da análise que é feita quanto ao desenrolar dos processos de venda) minimiza a probabilidade de haver aquisição de activos pelo accionista privado do Novo Banco, mas em qualquer caso, se porventura viesse a ser detectado, mesmo após a transacção, que o adquirente de activos abrangidos pelo mecanismo de capitalização contingente era uma parte relacionada com a Lone Star, então nesse caso o Fundo de Resolução poderia invocar que teria havido violação do contrato”. Se alguém perceber, que me explique... foi o que pensei.  

Por uma – ou várias – coincidências, daquelas que um conhecido senhor, especialista na mesma matéria, atribuía ao diabo, a notícia do PÚBLICO dá, ainda, conta do seguinte: “Durante a apresentação das propostas para a compra dos imóveis do Novo Banco (houve duas propostas vinculativas na fase final, tendo ganho a do Anchorage), um dos vice-presidentes da Lone Star era David Bartlett. Já era um quadro do fundo norte-americano que comprou o Novo Banco, e ficou nessa posição exactamente no ano em que este negócio se fez, entre Dezembro de 2017 e Dezembro de 2018Em Janeiro de 2019, já com o negócio contratualizado, Bartlett foi contratado pelo Anchorage Capital, onde exerce agora as funções dedirector.” O que não prova nada, claro, são apenas os fastidiosos detalhes em que se esconde o famoso diabo. O das coincidências. Com um enorme rabo de fora.

Já o disse de outras vezes. Há alturas em que se torna difícil expressar indignação com a mesma eloquência com que somos insultados, se quisermos manter o nível acima do deboche descarado, sem deixar, ainda assim, que nos tomem por papalvos. E talvez assim se perceba o discurso repugnante dos auto-proclamados frugais, "tolerados" por uns, "desprezados" por outros

A fraude elegante, de fraque riscado à medida, talhado e costurado nos melhores escritórios de advocacia, onde nenhuma linha sai do rigorosíssimo traço legal, não é um exclusivo português. Mas é apenas nos países desgraçadamente corruptos, imundos, que a fraude é embalada por aqueles que tinham o dever primeiro de a repudiar.