terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Um amigo diz-me que o melhor dos velhos discos de vinil eram as capas. As dos LP, especialmente. Enormes. Desdobráveis, algumas. “O melhor” é aquele comparativo a que se recorre quase sempre no espanto exagerado, intraduzível de outro modo na ilusão de um instante. Eu gostava sobretudo de fixar o movimento lento, levemente ondulado, hipnótico, da agulha deslizando suavemente para o centro, de rotação completa em rotação completa sobre os sulcos gravados no vinil, lendo alto um bordado de notas invisíveis. Vinil é  como pecado  outra palavra extraordinária. Não é? 

Ando a soprar a poeira ao gira-discos antigo. Não sei se sou capaz de pô-lo a funcionar outra vez, mas, enquanto tento, vou também redescobrindo velhas músicas, velhas notas. Memórias. Ao contrário do que ouço dizer a muita gente ilustre e a outra, não canto no duche. Canto no carro. Às vezes. À semelhança de outro tanto de gente. No duche, gosto do silêncio nublado e húmido, móvel, que se dissolve no estalar seco da água corrente. Entre muitas outras coisas muito mais importantes, a pandemia sabotou parte abundante das minhas melhores intenções para com o meio ambiente. Troco de máscara freneticamente, consciente (ou inconsciente) de que o faço mais por compulsão do que por necessidade absoluta; e passei a demorar-me indecentemente no duche. Não sei se pelo desejo de diluir a soma de todos os meus vícios – covídicos ou não covídicos –, se apenas pelo prazer. Prazer é outra palavra de que gosto muito.