"Parece que as palavras, na tua pena, se tornam carne, estremecem, pulsam, vibram! Dizes "Apetece-me!, apetece-me!", e a gente fica com fome e sede sem saber de quê... Escreves como modelas o barro e acaricias: dás vida ao que tocas. Deste-me vida a mim também, que estava morta..."
Fiz como ouvi contar e fui à minha biblioteca municipal requisitar o segundo volume
de O Milagre Segundo Salomé, de José Rodrigues Miguéis. Também só tenho
o primeiro volume, mas, no meu caso, ainda mantenho uma pequenina esperança de
vir a encontrar o segundo perdido algures entre a poeira das estantes de livros
da casa dos meus pais.
Li
tudo com a avidez do costume quando os livros me devoram.
O
país de agora não é o país turbulento e satirizado sem dó nem piedade nas
setecentas páginas do livro, dois livros, de Miguéis, mas há sempre um pedaço
de miséria que sobrevive ao passar do tempo; e não é preciso grande esforço para
encontrar, no país de agora, muito daquele atraso, muita da desesperança
dos pobres e da arrogância de rapina de uma certa elite amarelenta, que enchem
as páginas d’O Milagre. E o milagre é, como rapidamente se adivinha, em
tudo idêntico ao de Fátima, sem que nada do que se possa saber à partida
diminua a vontade e o prazer da leitura. Os regionalismos são, ao mesmo tempo, deliciosos e
contundentes. Os “entremezes” de Gabriel
Arcanjo são ácidos e, mesmo que o autor não tivesse pretendido “reconstituir
factos ou acontecimentos nem evocar pessoas”, como se lê na introdução, é
sempre possível encontrar semelhanças, antes como agora, e sem grandes abusos de imaginação.
Depois,
há Salomé. A “insondável contradição da maioria dos homens”, a “fêmea sabida,
mas pura; facilmente exaltada, mas submissa e fiel”. A meretriz eternamente virginal
que encontra, finalmente, o amor. A personificação do feminino imaginado e imaginário perfeito, por isso, irreal. Mas é bom, às vezes, um “vago sabor
de conto de fadas”, como (também) dele disse Pedro Tamen. Entregarmo-nos a uma leve embriaguez. Acreditar que cabemos
no sonho de alguém, ser a urgência da saudade, o objecto que se deseja
em segredo; que é meu o nome que morre na tua boca.