terça-feira, 22 de março de 2022

"Eu estava rígido e frio, era uma ponte, estava estendido sobre um abismo, deste lado tinha cravadas as pontas dos pés, do outro as mãos, mordia com força no barro esboroado. As abas do meu casaco flutuavam de ambos os lados do meu corpo. Lá no fundo rugia o gelado ribeiro das trutas. Nenhum turista vinha perder-se até esta altura intransponível, a ponte ainda não estava assinalada nos mapas. Assim estava, estendido, e esperava; tinha de esperar; enquanto não cai, nenhuma ponte pode deixar de ser ponte. Um dia, ao anoitecer, era o primeiro ou o milésimo, não sei, os meus pensamentos eram sempre uma confusão e sempre, sempre a andar à roda – era Verão, anoitecia, o fragor do riacho tornara-se mais cavo – ouvi os passos de um homem! Vinha para mim, para mim. Estica-te, ponte, põe-te em posição, tabuleiro sem corrimão, segura o que te foi confiado, firma-lhe discretamente os passos incertos, mas se vacila, mostra quem és e, como um deus da montanha, põe-no em terra firme. Ele veio, bateu em mim com a ponta de ferro da bengala, depois levantou com ela as abas do meu casaco e dispô-las bem arranjadas sobre mim, com a ponta da bengala remexeu longamente no meu cabelo crespo e deixou-a lá ficar, provavelmente de olhar fixo na distância. Mas então – seguia-o justamente em sonho por vale e montanha – saltou com os dois pés a meio do meu corpo. Estremeci com uma dor atroz, sem saber o que acontecia. Quem era? Uma criança? Um acrobata? Um caminheiro? Um suicida? Um tentador? Um destruidor? E voltei-me para o ver. Uma ponte que se volta! Ainda não tinha completado a volta e já estava a cair, desabava e um momento depois rasgavam-me e trespassavam-me os seixos pontiagudos que sempre me fitavam tão pacificamente da água em fúria."

A Ponte

Franz Kafka