domingo, 13 de março de 2022

Reparo na pequenita, que não tira os olhos da minha mão. Conheço-a de vista, de vê-la caminhar com a mãe, às vezes, nos passeios junto ao mar. A princípio, penso que é o meu verniz beringela, a causa de admiração. Mas não. Tem o mesmo ar de maravilhado espanto que o meu filho quando, pela primeira veztalvez um pouco mais novo que ela, viu um daqueles telefones em que metemos o dedo num buraquinho e rodamos para marcarmos o número. É a minha caneta de tinta permanente o objecto de assombro. Mostro-lha. Digo-lhe que, se a mãe deixar, posso eu também deixá-la experimentar, se quiser. A mãe sorri, que é melhor não, que pode estragar, mas aproveito-me do sorriso, decido correr o risco e passo-lhe a caneta para a mão. É uma das minhas canetas preferidas. Escreve sem esforço, num traço leve, fluído, não demasiado fino, num azul que o frasco de tinta diz “real” mas que eu digo cobalto. Ensino como pegar-lhe: segurar sem carregar e com o bico prateado voltado para cima. Pergunta se pode desenhar. Não é uma caneta para desenhar, mas eu não sei nada sobre desenhar: respondo que sim, que pode tentar. Desenha uma boneca, uma menina, dessas cujos braços são traços finos e horizontais, e as mãos, apenas dedos disformes noutro traçado de riscos imperfeitos como cerdas das vassouras de bruxa, e o vestido, o triângulo inacabado a que fica sempre a faltar um vértice. Nada mal, até para uma caneta que não serve para desenhar. Digo-lhe que é lindo, o seu desenho, e é mesmo. Quero arrancar a folha de papel do caderno, para que o possa levar, mas diz que é para mim e que a menina sou eu. Vou negar, já não sou menina, não uso vestido, não de momento, e o meu cabelo é mais curto que o da menina do desenho, mas há em tudo aquilo como que uma aura de deliciosa irrealidade e não me atrevo. Guardo o desenho no caderno, como uma relíquia.