domingo, 13 de março de 2022

“— Nenhum povo – começou ele, como se lesse um texto e, ao mesmo tempo, continuando a olhar com fúria para Stavróguin –, nenhum povo ainda se organizou com base na ciência e na razão; nunca houve exemplo disso, a não ser por um instante, por asneira. O socialismo, pela sua essência, tem de ser um ateísmo, porque proclama precisamente, desde as primeiras palavras, que é um sistema ateísta e tenciona organizar-se exclusivamente com base na ciência e na razão. A razão e a ciência na vida dos povos, tanto na actualidade como desde o princípio dos tempos, desempenha apenas um papel secundário e de serviço; e terão este papel até ao fim dos tempos. Os povos constituem-se e movem-se por outra força, uma força que governa e impera mas cuja origem é desconhecida e inexplicável. Esta força é a força do desejo incansável de ir até ao fim e, ao mesmo tempo, a força que nega o fim. É uma força de confirmação ininterrupta e incansável da existência e da negação da morte. O espírito da vida, como rezam as Sagradas Escrituras, é “rios de água viva”, que o Apocalipse ameaça de esgotamento. É o princípio estético, como dizem os filósofos, e o princípio moral, com que eles também o identificam. A “procura de Deus”, como lhe chamo eu, de modo mais simples. O objectivo de todo o movimento do povo, válido para qualquer povo e para qualquer período da sua existência, é unicamente a procura de Deus, do seu Deus próprio, é a fé n’Ele como único verdadeiro. Deus é a personalidade sintética de todo o povo, desde o seu início até ao seu fim. Nunca aconteceu que todos os povos, ou muitos povos juntos, tivessem um deus comum, mas cada um sempre teve o seu deus particular. O sinal do desaparecimento das etnias é a unificação de deuses. Quando os deuses se tornam comuns, morrem esses deuses e a fé neles juntamente com os próprios povos. quanto mais forte é o povo, mais individual é o seu deus. Ainda nunca existiu um povo sem religião, ou seja, sem o conceito do bem e do mal e, por consequência, o seu próprio bem e o seu próprio mal. Quando, entre muitos povos, os conceitos do bem e do mal começam a tornar-se comuns, extinguem-se esses povos, e a própria diferença entre o bem e o mal começa a desvanecer-se até desaparecer. Nunca a razão foi capaz de definir o mal e o bem, nem sequer separar o mal do bem, nem mesmo por aproximação; pelo contrário, sempre os confundiu vergonhosa e miseravelmente; quanto à ciência, as soluções que apresenta assentam nos punhos. Assim se tem caracterizado, sobretudo, a meia ciência, o mais terrível flagelo da humanidade, pior do que a peste, a fome e a guerra; ora, ela era desconhecida até o século actual. A meia ciência é um déspota que até ao momento nunca tinha aparecido. Um déspota que tem os seus sacerdotes e escravos, um déspota diante do qual tudo e todos se prostraram com um amor e uma superstição impensáveis até este momento, diante do qual a própria ciência treme, apoiando-o vergonhosamente. Tudo isso são palavras suas, Stavróguin, excepto o que eu disse sobre a meia ciência... que são palavras minhas, uma vez que eu próprio não sou mais do que meia ciência, por isso a odeio até ao extremo. Quanto às palavras da sua autoria, não mudei nada, nem uma letra.

— Não acho que não tenha mudado — observou Stavróguin, com cautela. —Aceitou-as com ardor, mas também as transfigurou com ardor, sem reparar nisso. Até pelo facto de o senhor reduzir Deus ao simples atributo da nacionalidade...

Demónios

Fiódor Dostoiévski