Talvez
haja um certo exagero nisto, mas os tempos são de cólera e sem o lustre de
García Márquez.
O desembaraço com a nova ministra da Habitação fala do congelamento para sempre das rendas antigas (bem sei, não é para sempre para sempre) ou da definição aparentemente limpa de “casa devoluta”, causa-me uma perplexidade de digestão lenta. Dizem alguns jornais de referência, se tal ainda existe e merece a referência, que há em países como a Dinamarca, Espanha, Holanda, Canadá, Reino Unido e EUA, medidas idênticas às que o Governo pretende aplicar. Não sou proprietária de casas devolutas, se fosse, não sei com que olhos veria as propostas apresentadas, o Estado, ao contrário do que gravemente proclamava outro novo ministro, está longe de ser pessoa de bem e é um gordo proprietário de coisas devolutas, nomeadamente casas, mas não acompanho tão ferozmente a dimensão do escândalo que lavra pelos corredores da crítica. O plano é criticável em muitos aspectos, mas, como se adivinha, no que é mais melindroso, terá pouca ou nenhuma aplicabilidade, e no que poderia supor soluções ninguém parece interessado em ir além do horror, o drama, o socialismo, o atentado à propriedade, a liberdade de mercado, e etc. Portugal permanentemente adiado.
Já
não recordo bem como soube que Vladimir Putin tinha ordenado a invasão da
Ucrânia para lá das fronteiras da Crimeia. Faz amanhã um ano. Devo ter ouvido
na televisão, uma abertura de jornal, uma notícia de última hora, o som da
artilharia russa; leio agora o nome da que me dizem ter sido a primeira cidade
ucraniana bombardeada nessa madrugada de 24 de Fevereiro de 2022. Faz amanhã um
ano, e deixei de ter capacidade para tentar compreender os argumentos em defesa
da razão de Vladimir Putin, e a crise dos misseis de Cuba, e as outras guerras,
a desgraçada Palestina, a Síria, os interesses obscuros da indústria de
armamento, a hipocrisia de Biden, os negócios com a Arábia Saudita do príncipe Mohammad
bin Salman, e todos os pecados da Ucrânia, a corrupção, a perseguição, o
batalhão Azov e a irritante camisola verde-militar do endeusado Zelensky, o
último dos grandes heróis.
Felizmente,
não percebo nada de guerra, de geopolítica, de crises inter-Estados. Não
poderia viver com a responsabilidade da decisão. Da indecisão. Teria sido
possível conter a sede de Putin sem a provocação que representava a possibilidade
da adesão da Ucrânia à NATO? Alguém sabe? A NATO "é uma organização terrorista" e
os EUA são a última encarnação do Diabo, não há bons nem maus, eu percebo que não há
bons nem maus, e a propaganda do Ocidente, mas não é na Rússia nem nos países que apoiam a Rússia que
podemos escrever livremente (disparates, como aqui), pensar livremente, rejeitar livremente, viver
livremente. E como é que um país invadido, bombardeado, violentado, se defende
sem usar a força? Sem matar e sem morrer, sem chorar, sem sangrar, sem usar de
todos os meios para resistir, resistir, resistir?
Mas
o Ocidente também se enganou, já o escrevi por aí algures. A vitória da Ucrânia seria possível e
seria iminente. Um ano depois, a Rússia não parece nem tão isolada nem tão frágil
como nos querem fazer crer, e não sei bem o que significa a renovada promessa do
apoio à Ucrânia as long as it takes. A Rússia não pode ganhar esta
guerra, a Rússia não pode perder esta guerra, e ninguém parece saber, afinal,
como sair daqui.
E desde algum tempo que alguém me lê na Croácia. Bela Croácia. E na Irlanda, que não conheço ainda. Uma das vantagens de manter um blogue com um número de leitores que não chega para encher um salão de baile de uma festa de aldeia depois do Verão é que as novidades raramente passam despercebidas.