terça-feira, 23 de outubro de 2018

Diz Que São Polícias

Por vezes, demasiadas, a sensação de impotência e injustiça tolda-nos a razão. Acontece, mesmo aos mais ponderados. Nos tempos actuais, dominados por mentiras habilidosas e argutas que os intelectuais modernos gostam de chamar notícias falsas e os mais cosmopolitas, fake (mas, ainda assim) news, em que as democracias parecem definhar sob o peso de todas as frustrações civilizacionais e em que todos os ódios e preconceitos saltam, a diário, dos armários como peças de roupa vintage desempoeiradas e revitalizadas pelas novas tendências, nestes tempos, dizia, é difícil manter alguma clareza de ideias e algumas noções básicas de urbanidade. Mesmo assim, ainda esperamos – pelo menos, alguns de nós – que quem tem responsabilidades acrescidas no funcionamento (cada vez menos) democrático das sociedades tidas como tal seja capaz de alguma seriedade.

Não sei bem se se tratou de uma nuvem passageira, de devaneio, no caso, ou se, pelo contrário, a leviandade veio para se instalar, de armas e bagagens, varrendo qualquer réstia de discernimento e sem poupar nenhuma área. O caso é que, indignados com a indignação do ministro da Administração Interna face à publicação e exposição gratuita de imagens de criminosos capturados e algemados e a aparente falta dela pelo estado das vítimas, alguns, pasme-se!, agentes da polícia, resolveram, também eles, publicar fotografias de idosos agredidos. No que veio a saber-se ser uma fotomontagem (cada vez melhor...), um dos sindicatos que representam agentes de autoridade, hostilizavam, de forma desonesta, irónica e vergonhosa, vozes críticas à primeira publicação. Como se não bastasse, A Associação Sócio-Profissional Independente da Guarda, veio aumentar o ruído afirmando, sem qualquer prurido, que os “criminosos não são merecedores do mesmo respeito, por parte do Estado e da comunidade, atribuídos ao cidadão comum" e que num Estado de direito democrático parece que não deve haver gritarias na promoção da defesa dos direitos humanos sem se estar na posse da realidade dos factos.

Fiquei um pouco confusa. Mas, no essencial, percebi duas coisas e ambas não auguram nada de bom. Primeiro: há agentes da lei que estão a borrifar-se para o cumprimento da dita, a mesma que juraram servir, seguramente, com honra. Segundo: aqui está um belo exemplo de decadência democrática, em que uma espécie de verdade relativa – afinal, quem é que não respeita mais uma vítima do que um criminoso? Ah, espera…–  pode ser manipulada para exacerbar os ânimos e extremar opiniões diferentes.

A democracia tem defeitos. Um deles é admitir que, sim, os criminosos também têm direito à dignidade e aos direitos humanos. Às vezes, os que ainda acreditamos nos tais Estados Democráticos, sentimos impotência, frustração e raiva e para isso é que a democracia serve. Para não sucumbirmos à cegueira brutal e crua que Saramago, um dia, tão bem retratou.