segunda-feira, 4 de maio de 2020

Tele(sobre)viver


Fiquei em casa assim que fecharam as escolas. Por questões de trabalho, algo contrariada, e com a sensação de que o caso não era para tanto, embora fosse bastante mais do que a gripezinha que se fez refrão dos que cospem as entranhas contra a mansidão do povo. Afinal, já se desenhava a lágrimas a tragédia em Itália, as mortes iam ganhando contornos alarmantes e, logo no início de Março, ampliaram-se, aí, as medidas da quarentena que se tornou, subitamente, o eixo do mundo. Mas resistia. Sem grande escolha, na verdade. Sem os habituais pupilos a quem explicar presencialmente os meandros das ciências exactas e inexactas e o contrabalanço das regras por que se regem os labirintos da educação, por força do vírus e dos seus desígnios não fui capaz de prosseguir adiando os dias de cárcere e dos silêncios com que me bastava quando eram outras as circunstâncias.
Entre o teletrabalho, a telescola, a televigilância, a telecensura, enfim, esta telexistência insalubre que nos invadiu os dias e nos assoberbou de desassossego e histeria, limitei drasticamente o número de saídas à rua. Uma vez por semana para compras no sítio de sempre, onde, com a excepção do álcool, das luvas que usei toda a minha vida emancipada, e a outra inclusive, e do desinfectante de que me fiz aliada contra bactérias, ainda este vírus não era vírus, nunca vi faltar nada, sem nunca ver, porém, carrinhos de compras esmagados pelo peso do apocalipse anunciado na forma de açambarcamento (até a palavra é reles) de bens de primeira e última necessidade. Talvez seja uma questão de sorte, ou da hora do dia a que vou, manhã cedo, ao abrir da normalidade que resta e se arrasta.
Mas, falava das saídas escassas. As das compras, por necessidade, e, mais raramente, as do lazer possível para manter uma réstia de sanidade.

Ainda não consegui habituar-me ao distanciamento que nos obriga a fugir dos outros. Constantemente. Ao trocar de passeio à menor suspeita de que nos cruzaremos com alguém a menos dos 2 metros higiénicos, redentores; a ser olhada com arreganho soberbo se não tomo a iniciativa de me afastar o suficiente para manter a nova ordem.
Esta náusea com que aprendemos a medir-nos sem pudor, a diário, permanecerá para lá deste tempo, ou o medo que nos despedaça a vida impedir-nos-á, também, de colar os cacos do que sobrar de nós e dos outros?
Pesa-me esta desconfiança surda, palpável. Temo-a mais que ao vírus.