domingo, 24 de maio de 2020

E daí?




“Primeiro a Bíblia, depois a Constituição. Dos quatro livros que Bolsonaro tinha em cima da sua mesa, no seu primeiro discurso de vitória, a partir de sua casa e através das redes sociais, a Bíblia mereceu o primeiro lugar. “O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, haveria de repetir e reforçar.
Bolsonaro presidente falou de respeito pela Constituição brasileira, pela democracia e pela liberdade. Bolsonaro candidato tinha falado, com saudade, da ditadura militar, das virtudes da tortura e da obediência que as minorias devem às maiorias, entre outras coisas.  Entre os que apoiaram o capitão e que rejubilam, agora, com a eleição do mito, há, creio, dois tipos de gente: os que querem, realmente, sangue, e anseiam pela exterminação implacável de todos os vícios e os que, a coberto de um enorme desespero e impotência, viram no Messias o único caminho para reverter a situação dramática em que o Brasil mergulhou. Para estes, do que Bolsonaro diz, nem tudo se escreve e, por isso, desvalorizam o discurso mais extremo de hostilização dos negros, dos homossexuais, dos pobres e das mulheres.
Bolsonaro saiu à rua, mais ou menos, para agradecer a Deus e aos brasileiros a sua eleição. Deram-se as mãos e rezaram. Afinal, “essa é uma missão de Deus”. Bolsonaro lê o discurso de vitória.  “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. E a exultação da verdade arranca um ámen da boca da recém primeira dama, mesmo ali ao lado, com os olhos postos no marido e no céu. Deus é mesmo brasileiro e voltou a descer à Terra pela mão de Jair Messias Bolsonaro.
O novo presidente do Brasil foi eleito pelos seus pares. Apesar de tudo, não me parece que seja uma vitória baseada, apenas, em notícias falsas. É preciso fazer uma reflexão mais profunda. A confiança das pessoas nas instituições democráticas está profundamente abalada e é impossível continuar a olhar para o lado, chamando de ignorantes, ditadores e fascistas todos os que procuram alternativas radicais.
O Brasil elegeu um mito. E, agora? Agora, esperemos pelo melhor e façamos todos um exame de consciência.”


Fui reler o texto que escrevi em Outubro de 2018, depois da vitória de Bolsonaro nas presidenciais brasileiras. Deixo-o ali, como interlúdio para o que se me oferece dizer, depois de ter ouvido a verborreia de estrume, literalmente, com que o capitão encheu os ouvidos dos seus (a bem ou à força) ministros numa espécie de reunião de Estado. E o que se ouviu de alguns dos seu ministros. Uma classe. Em vários sentidos do termo. Fica aqui a gravação, porque também é (in)digno de ser ver.



É que eu estava enganada. São mesmo ignorantes, ditadores e fascistas todos os que procuram alternativas radicais. As dúvidas começaram a dissipar-se depois da absolvição de Donald Trump, esse outro enviado, empalideceram com o “E daí?” do Messias face ao avolumar da tragédia e, esta semana, sucumbiram sem regresso diante do discurso (se lhe podemos chamar assim) histérico de um homem tresloucado, apostado em impor a sua vontade a qualquer custo – a vida que seja, desde que não a sua – e a pilhar o Brasil para satisfazer os seus delírios. Não é a corrupção do PT que preocupa Bolsonaro e o seu séquito. Ou melhor, é. Mas não por causa da corrupção. Se for a sua não há qualquer indecência, pelo contrário. Se puder favorecer um filho, vai fazê-lo, sim, e daí? Se tiver que trocar ministro, vai trocar sim, e daí? Se tiver que interferir, vai interferir sim, e daí? Vai escutar atrás da porta, claro, então, a filha depois engravida e como é que fica? A sério. É surreal. 

Já tive algumas discussões com pessoas de quem gosto e que respeito sobre as intenções do presidente do Brasil. O clássico. Era impossível continuar a votar em gente corrupta como o PT; o que ele diz não é para ser levado à letra; ele até quer fazer, mas o Senado não deixa. E, claro, a descontextualização. Dizer a uma mulher que não merece ser violada por ser demasiado feia e que o problema da ditadura foi não ter matado mais uns quantos milhares, são afirmações que carecem de contextualização.
É preciso tentar perceber, e tentei. Se há (ou havia, até agora) gente séria a defender energúmenos como trumps e bolsonaros, é necessário escutar os argumentos, atentamente e sem falsos moralismos. Já se percebeu aonde nos leva tentar o contrário. A questão é que já não há argumentos credíveis que sustentem a tese ou a boa-vontade de alguns dos seus apoiantes. É claro que não é o combate à corrupção que move estes homens de Estado, desde que Estado lhe preste vassalagem. Nem qualquer espécie de luta anti-sistema, excepto se o sistema não lhes (leia-se "os", é mais exacto) servir. O que os move é a ambição mais selvagem, mais abjecta, porque pretendem o mesmo que todos os ditadores inebriados de poder: obtê-lo a todo o custo, usando de todos os ardis, mentindo descaradamente, desdizendo-se sem corar, sem um arrepio de arrependimento, insultando e escarnecendo de todos os que ousarem contrariá-los. A tenebrosa diferença é a possibilidade cada vez mais real de chegar o momento em que já nem precisem de mentir ou fingir. Sim, que se F#dam todos os outros, os pobres, os doentes, os velhos, os bandidos que não nos venerem, todos excepto os meus, digo-o, defendo-o e instituo-o com o poder de herdei de deus e dos homens, e daí? E o "e daí?" parece fazer o seu caminho com uma tranquilidade assombrosa, implacável. Quanto faltará para o "e daí?" já não causar qualquer sobressalto que mereça ser dissimulado, nem sequer na forma tentada?

Mais acima, Donald Trump ameaça abrir as igrejas à revelia dos governadores, se necessário for. Não é muito claro como o possa fazer, mas isso não interessa nada, como se sabe. Trump é outra entidade omnisciente, omnipotente, e também não admite contrariedades, não restam dúvidas. A explicação do presidente dos EUA para a necessidade de abrir as portas dos templos é simples: a América precisa de mais orações, não de menos. Sim, Donald Trump é capaz de ter razão, já dizia o ex-ministro Mandetta, o melhor é rezar. E até ele se deve ter arrepiado ao ouvir o gémeo dos trópicos. Pelo nível reles do vernáculo, quero dizer. Afinal, Trump sempre vai parecendo alguém com, pelo menos, parte da escolaridade obrigatória, como lembrava quase assim Pedro Mexia, num dos Governo Sombra, ainda não(?) se imaginava o que por aí vinha.

Entretanto, fica a questão: "como é que chegámos a isto"? E aonde iremos parar, sendo quase certo que, pelo menos, nos EUA, Donald Trump dificilmente deixará de ser reeleito?