Há muito tempo que
não lia um livro de um trago. Desses livros que não nos dão descanso enquanto
não virarmos a última página e no fim ainda nos deixam a latejar. Numa espécie
de embriaguez. Só mais uma página, como um ébrio diria só mais um
copo. Li ontem A Trilogia da Cidade de K., de Agota Kristof, e ainda
estou de ressaca.
Eu sei que o acto de ler deve fazer-se sem impaciência. No tempo do texto, das linhas, das regras. No tempo da história. Como quem saboreia um bom whisky de malte: observar-lhe a cor, sentir-lhe o cheiro, sorver um pequeno gole e mantê-lo na boca o tempo suficiente, apenas, para que se espalhe generosamente sobre a língua. Engolir. Repetir. Agora um pouco de água – gelo, nunca – e repetir. Degustar. Também se aplica à leitura. Às vezes. Outras vezes, a leitura é sôfrega como a sede.
Não é um livro fácil,
apesar de se fazer sobre frases curtas e simples e linguagem clara. Aliás, não
é bem um livro, são mais ou menos três livros, e é, precisamente, na linguagem clara, seca, que
reside grande parte da sua dureza. A outra parte é o que sobra da condição
humana, talvez não só em tempo de guerra. É o equilíbrio entre a necessidade e
a imoralidade, entre a ingenuidade e a devassa, a provocação e a ausência.
Ausência de afecto, ausência de amor. Sobretudo, ausência de amor. Mesmo cumprindo
um dever, sobra apenas a rudeza de uma intenção crua. É objectivamente perverso: a necessidade acima de tudo. Sobreviver. A guerra tem sempre histórias
terríveis para contar, reais ou imaginadas.
Já não posso dizer o mesmo de O País dos Outros, de Leïla Slimani. Não gostei nada.
Parte do encantamento a que me entrego quando leio como passatempo – seja lá o que isso for, e será coisas muito diferentes para quem gosta realmente de ler – faz-se de acreditar. Enquanto dura, acreditar. Sem reservas. Não foi o caso, com aquele livro. Não acreditei suficientemente. Não acreditei na intensidade nem do amor nem do ódio. Não acreditei na Mathilde nem no Amine, mesmo sabendo do abismo que separa as relações entre os dois mundos. Do cheiro a couro e a decomposição que sufoca as ruas estreitas da medina, não apenas da medina de Meknés. Da figura sinistra dos talhantes com os aventais cobertos de sangue, pelo fim do Ramadão. Tive (não "tive"; não eram meus) dois ou três cordeiros guardados vários dias na garagem do meu prédio e o local habitual de sacrifício dos bichos era no terraço comum que ficava mesmo por cima do meu apartamento.
Não acreditei na Selma saída do estudo acompanhado, mesmo sabendo que Selma, provavelmente, mentia sobre o assunto para escapar à fúria do irmão Omar. Não acreditei em demasiadas coisas. Se calhar porque Marrocos foi, em tempos, o meu país, mas, que sei eu, tão longe daqueles anos do protectorado francês, uma estrangeira, tratada como estrangeira, protegida como uma estrangeira. Apesar de todos os desafios, de todos os obstáculos, o meu Marrocos foi um conto de fadas. A minha comparação é pouco justa. Vale o que vale. Nada.
E vi Mare of Easttown. Kate Winslet é tudo o que Miguel Esteves Cardoso diz dela, e mais ainda. Acreditar. Também serve para séries de televisão.